Biografia de Francisco de Assis
Tomás
de Celano
1Celano - Capítulos 16 a 19.
CAPÍTULO
16. A estadia em Rivotorto e a guarda da pobreza.
São Francisco e
os outros recolheram-se em um lugar perto de Assis, chamado Rivotorto. Havia
ali uma cabana abandonada, onde viveram aqueles homens, que não faziam questão
de casas grandes e bonitas, e lá se defendiam da chuva. "Pois, como diz um
santo, de uma cabana vai-se mais depressa para o céu do que de um
palácio".
Os filhos e
irmãos viviam nesse lugar com o bem-aventurado pai, trabalhando bastante e
sofrendo escassez de tudo. Faltou-lhes muitas vezes até o pão, precisando
contentar-se com os nabos penosamente mendigados pela planície de Assis. Sua
casa era tão apertada que mal podiam sentar-se ou descansar. Mas não se ouviam
queixas ou murmurações: calmos e alegres, mantinham a paciência.
Todo dia, para
não dizer sempre, São Francisco examinava diligentemente a si mesmo e aos seus,
sem permitir neles falha alguma, e afastando toda negligência de seus corações.
Era
constante sua vigilância sobre si mesmo
e rígida sua disciplina. Se tinha alguma tentação, como acontece, mergulhava
durante o inverno num buraco cheio de gelo e lá ficava até passar toda rebelião
da carne. E os outros seguiam com fervor todo esse exemplo de mortificação.
Ensinava-os não
só a mortificar as paixões e a reprimir os impulsos da carne, mas até os
sentidos exteriores, pelos quais a morte entra na alma. Passou por ali, naquele
tempo, o imperador
Otão, para receber a coroa do império
terreno. Apesar do enorme ruído e pompa, o santo pai e seus companheiros, cuja
cabana ficava à beira do caminho, nem saiu para vê-lo, nem permitiu que ninguém
olhasse, a não ser um, a quem mandou para anunciar-lhe repetidamente que sua
glória ia durar pouco.
Pois o glorioso
santo permanecia recolhido em si mesmo, passeando pelo espaço de seu coração,
onde preparava uma habitação digna de Deus. Por isso seus ouvidos não se
deixavam levar pelo clamor de fora, e voz alguma podia distraí-lo ou interromper
sua importante ocupação. Sentia-se investido de autoridade apostólica e por
isso se recusava absolutamente a bajular reis e príncipes.
Agia sempre com
santa simplicidade e não permitia que o aperto do lugar lhe prejudicasse a
amplidão do coração. Por isso escreveu o nome dos irmãos nos caibros da cabana,
para que cada um soubesse seu lugar quando quisesse orar ou repousar, e não se perturbasse
o silêncio espiritual pela estreiteza do ambiente.
Ainda moravam
nesse lugar no dia em que apareceu um homem conduzindo um jumento, na porta da
cabana em que o homem de Deus estava com os seus companheiros. Temendo ser
rejeitado, instigava o animal a entrar, dizendo: "Entra, que vamos
melhorar este lugar". Ouvindo isso, São Francisco ficou muito chocado,
pois entendeu a intenção do homem: pensava que os frades queriam morar naquele
lugar para promovê-lo e construir casas. São Francisco saiu imediatamente dali,
abandonando a cabana por causa da palavra do camponês. Transferiu-se para outro
lugar, não muito afastado, chamado Porciúncula, onde, como dissemos, tinha reparado
tempos atrás a igreja de Nossa Senhora.
Não queria ter propriedade
nenhuma, para poder possuir tudo no Senhor em maior plenitude.
CAPÍTULO
17. São Francisco ensina os irmãos a orar. Obediência e simplicidade dos frades.
Rogaram-lhe os frades, nesse tempo, que
os ensinasse a orar, porque, vivendo na simplicidade, ainda não conheciam o
ofício eclesiástico. Respondeu-lhes: "Quando orardes, dizei: 'Pai nosso' e
'Nós vos adoramos, ó Cristo, em todas as vossas igrejas que estão pelo mundo
inteiro, e vos bendizemos, porque por vossa santa cruz remistes o mundo'".
Discípulos do
piedoso mestre, os frades procuravam observar tudo com a maior diligência,
porque tratavam de cumprir com exatidão não só o que o bem-aventurado pai
Francisco lhes dizia quando dava conselhos ou ordens, mas até o que ele estava
pensando ou planejando, se conseguiam saber o que era.
Dizia-lhes
também o santo pai que a verdadeira obediência devia ser até descoberta antes
de manifestada e desejada antes de imposta.
Isto é: "Se um irmão que é súdito
não só ouvir a voz mas até perceber a vontade de seu superior, deve tratar de
obedecer imediatamente e de fazer o que, por algum indício, adivinhou que ele quer".
Em qualquer
lugar onde houvesse uma igreja, mesmo que não estivessem presentes, contanto
que a pudessem ver de longe, prostravam-se por terra na sua direção e,
inclinados de corpo e alma, adoravam o Todo-Poderoso, dizendo: "Nós vos
adoramos, ó Cristo, em todas as vossas igrejas", como lhes ensinara o
santo pai.
E, o que não é
menos para se admirar, faziam o mesmo onde quer que vissem uma cruz ou seu
sinal, no chão, numa parede, nas árvores ou nas cercas do caminho.
A tal ponto
tinham-se enchido de simplicidade, aprendido a inocência e conseguido a pureza
de coração, que detestavam toda falsidade e, como tinham a mesma fé, tinham
também o mesmo espírito, uma só vontade, um só amor. Eram sempre coerentes, procediam
de acordo, cultivavam as virtudes, procuravam ter as
mesmas opiniões e ser igualmente
generosos no que faziam.
Confessavam-se frequentemente
com um padre diocesano, que tinha muito má fama e merecia o desprezo pela
enormidade de seus pecados. Muita gente chamou a atenção deles para a maldade
do padre, mas não quiseram acreditar de maneira nenhuma e nem por isso deixaram
de confessar-se como de costume, nem lhe perderam
o respeito.
Uma vez, esse ou
um outro sacerdote disse a um dos frades: "Irmão, não sejas
hipócrita!" O frade, por ser a palavra de um sacerdote, logo ficou
pensando que era mesmo um hipócrita. Lamentava-se por isso dia e noite, muito
penalizado. Perguntaram-lhe, então, os frades por que estava tão triste e donde
lhe vinha esse abatimento incomum, e ele respondeu: "Um padre me disse que
sou hipócrita, e isso me doeu tanto que nem consigo pensar noutra coisa".
Para o consolar, os irmãos disseram que não devia acreditar nisso. Mas ele
respondeu: "Que estais dizendo? Foi um padre que me disse isso, e um padre
não pode mentir, por isso precisamos acreditar no que ele disse".
Permaneceu muito tempo nessa simplicidade, acalmando-se afinal pela palavra do
santo pai, que lhe explicou melhor o que o padre tinha dito e desculpou
sabiamente sua intenção.
Dificilmente
podia algum frade ficar tão perturbado que sua palavra ardente não lhe
afastasse qualquer dúvida e não lhe devolvesse a serenidade.
CAPÍTULO
18. O carro de fogo. Conhecimento das coisas ausentes
Porque
caminhavam com simplicidade diante de Deus e com segurança diante dos homens,
nessa ocasião mereceram os frades a alegria de uma revelação divina. Certa
noite, inflamados pelo Espírito Santo, estavam cantando suplicantes o pai-nosso
sobre uma melodia religiosa (pois não rezavam só nas horas marcadas mas em
qualquer hora, uma vez que não tinham preocupações terrenas), quando o
bem-aventurado pai se ausentou corporalmente deles. Lá pela meia-noite, quando
alguns frades descansavam e outros rezavam em silêncio com devoção,entrou pela
pequena porta um rutilante carro de fogo, deu duas ou três voltas para cá e
para lá na casa, tendo sobre ele um globo enorme, que era parecido com o sol e
iluminou a noite. Os que estavam acordados se espantaram e os que estavam
dormindo se assustaram, pois sentiram uma claridade não só corporal mas também
interior.
Reuniram-se e começaram
a discutir entre si o que seria aquilo: por força e graça de toda aquela luz,
cada um enxergava a consciência do outro. Compreenderam afinal que a alma do
santo pai brilhava com tamanho fulgor que, sobretudo por sua pureza e por seu
zeloso cuidado pelos filhos, tinha conseguido de Deus a graça desse enorme
benefício.
Muitas outras
vezes tinham comprovado, por sinais manifestos, que os segredos de seus
corações não eram desconhecidos por seu santo pai. Quantas vezes, sem que
ninguém dissesse, mas por revelação do Espírito Santo, soube o que estavam
fazendo frades ausentes, manifestou segredos de seus corações e penetrou as consciências!
A quantos aconselhou em sonhos, dizendo o que deviam fazer ou deixar de fazer!
A quantos, que estavam manifestamente bem no presente, previu males no futuro!
Da mesma maneira, previu para muitos o fim de seus pecados e lhes anunciou a
graça da salvação. Houve até um que, distinguido por especial espírito de
pureza e simplicidade, pôde ter a consolação de contemplá-lo de maneira
especial, não dada aos outros.
Vou contar um
caso entre os muitos que soube por testemunhas de confiança. No tempo em que
Frei João de Florença foi feito por São Francisco ministro dos frades da
Provença e estava celebrando o capítulo dos frades daquela Província, o Senhor
Deus lhe abriu a boca para falar com a piedade costumeira e fez todos os frades
ouvirem com benévola atenção. Havia entre eles um irmão sacerdote, célebre pela
fama e mais ainda pela vida. Chamava-se Monaldo e sua virtude, fundamentada na
humildade e auxiliada pela oração frequente, era protegida pelo escudo da
paciência. Estava participando do capítulo também Frei Antônio, a quem o Senhor
abrira a inteligência para compreender as Escrituras, e que falava de Jesus a
todo o povo com palavras mais doces que o mel. Enquanto Frei Antônio estava
pregando com fervor e devoção aos frades sobre as palavras: "Jesus
Nazareno, Rei dos Judeus", o referido Frei Monaldo olhou para a porta da
casa em que os frades estavam reunidos e viu com seus próprios olhos o
bem-aventurado Francisco elevado no ar, com as mãos abertas em cruz, abençoando
os frades.
Sentiam-se todos
cheios de consolação do Espírito Santo e de gozo salutar, e por isso
acreditaram quando ouviram falar da presença e
da visão do glorioso pai.
Para confirmar
que conhecia os segredos dos corações, vou escolher, entre muitos, um caso que
está acima de qualquer dúvida. Um frade, chamado Ricério, nobre de nascimento e
mais ainda por sua vida, que amava a Deus e fazia pouco de si mesmo, queria piedosa
e ardentemente conseguir todo afeto do santo pai Francisco e por isso tinha
muito medo de que o santo deixasse de gostar dele por algum motivo oculto,
privando-o assim do seu afeto. Muito timorato, julgava o frade que aquele a
quem São Francisco muito amasse seria digno de merecer a graça de Deus. Pelo
contrário, achava que mereceria o castigo do juiz eterno aquele que não merecesse
sua benevolência e atenção. Estava sempre pensando nisso, e até falava consigo
mesmo em silêncio, sem revelar a ninguém o seu segredo.
Um dia, quando o
santo pai estava rezando em sua cela e o referido frade apareceu por ali,
perturbado pelo pensamento de sempre, o santo de Deus teve conhecimento tanto
de sua chegada como de sua preocupação. Imediatamente mandou chamá-lo e lhe disse:
"Filho, não te deixes perturbar por nenhuma tentação.
Nenhum
pensamento te angustie. Eu gosto muito de ti, e podes ficar sabendo que estás
entre os que mais estimo e és digno de minha amizade. Podes vir aqui quando
quiseres, e falar comigo com toda a confiança".
O frade ficou
admiradíssimo e aumentou sua veneração: começou a crescer com confiança ainda
maior na misericórdia de Deus na medida em que cresceu na amizade do santo pai.
Como deve ser
duro suportar tua ausência, pai santo, por quem já desanimou de encontrar outro
igual a ti nesta terra! Rogamos que ajudes com tua intercessão os que vês
envolvidos nos laços do pecado. Estavas cheio do espírito de todos os justos,
previas o futuro e conhecias o presente. Apesar disso, sempre te destacavas pela
simplicidade, para fugir da vanglória.
Mas, voltemos
atrás, para retomar a ordem histórica.
CAPÍTULO 19. Cuidado pelos irmãos. Desprezo
de si mesmo e verdadeira humildade.
São Francisco voltou materialmente ao convívio dos seus
frades, embora espiritualmente jamais se tivesse afastado, como dissemos.
Interessava-se continuamente pelos seus, procurando saber
com prudência e atenção o que todos estavam fazendo,e não deixava de repreendê-los
por alguma coisa errada que descobrisse. Olhava primeiro os defeitos
espirituais, depois os exteriores, e por último tratava de remover todas as
ocasiões que costumam abrir as portas aos pecados.
Com todo o cuidado e especial solicitude cuidava da santa
senhora pobreza. Para impedir que se chegasse a ter coisas supérfluas, não permitia
que tivessem em casa a menor vasilha, se fosse possível passar sem ela sem cair
na extrema necessidade. Dizia que era impossível satisfazer a necessidade sem
condescender com o prazer.
Nunca ou raramente admitiu pratos cozidos. Se os
aceitava, muitas vezes misturava-lhes cinza ou lhes tirava o tempero com água
fria.
Quantas
vezes, andando pelo mundo a pregar o Evangelho de Deus, foi convidado para
almoçar com importantes príncipes que tinham toda admiração e veneração por
ele, e apenas provava os pratos de carne para observar o santo Evangelho, mas
ia guardando o resto dentro da roupa, embora parecesse estar comendo. E punha a
mão na frente da boca,para que ninguém percebesse o que estava fazendo.
Quanto a tomar vinho, que poderei dizer, se até quando
estava morto de sede não admitia beber a água que bastasse?
Onde quer que se hospedasse, não permitia que sua cama tivesse
colchão e cobertas: era o chão nu que recebia seu corpo despido, em cima da
túnica. Nas poucas vezes que permitia a seu frágil corpo o favor do sono, era
quase sempre sentado e sem se encostar, usando no lugar do travesseiro algum
tronco ou pedra.
Quando, como é natural, tinha desejo de comer, só a custo
se permitia satisfazê-lo. Uma vez, estando doente, comeu um bocado de carne de
galinha. Logo que recuperou as forças foi até Assis.
Chegando à porta da cidade, mandou ao frade que o
acompanhava que lhe amarrasse uma corda no pescoço e o conduzisse assim, feito
um ladrão, por toda a cidade, clamando como um pregoeiro: "Vejam o comilão
que engordou com carne de galinha, que comeu sem vocês saberem".
Muita gente correu para ver o estranho espetáculo e se
pôs a chorar e a gemer dizendo: "Pobres de nós, que passamos nossa vida
cometendo crimes e que saciamos o coração e o corpo com luxúrias e
bebedeiras!" E assim, de coração compungido, foram chamados a uma vida
melhor por tão grande exemplo.
Tinha atitudes dessas com muita freqüência, tanto para desprezar-se
com perfeição como para convidar os outros a uma honra que não se acaba.
Julgava-se desprezível, sem temor nem preocupação pelo corpo, que expunha
valentemente aos maus tratos, para não ser levado por seu amor a cobiçar alguma
coisa terrena Verdadeiro desprezador de si mesmo, sabia ensinar os outros a se desprezarem
também, falando e dando exemplo. Resultado: era exaltado por todos e todo mundo
o tinha em alta conta, pois só ele mesmo se julgava o mais vil e só ele se
desprezava com ardor.
Muitas vezes sentia uma dor imensa quando era venerado
por todos e, para se livrar da consideração humana, encarregava alguém de o insultar.
Também chamava algum irmão e lhe dizia: "Mando-te por obediência que me
injuries com dureza e que digas a verdade contra a mentira dessa gente". E
quando o irmão, contra a vontade, o chamava de vilão, mercenário e parasita,
respondia sorrindo e aplaudindo bastante: "O Senhor te abençoe porque
estás falando as coisas mais verdadeiras. É isso que o filho de Pedro
Bernardone precisa ouvir!" Dizia isso para lembrar sua origem humilde.
Para mostrar quanto era desprezível e para dar aos outros
um exemplo de confissão sincera, quando cometia alguma falta, não se envergonhava
de confessá-la na pregação, diante de todo o povo.
Até mais: se tinha algum pensamento desfavorável sobre
alguém, ou por acaso tivesse dito alguma palavra mais dura, confessava na mesma
hora e humildemente o pecado à própria pessoa de quem tinha pensado ou dito
mal, e lhe pedia perdão. Mesmo que não pudesse fazer a si mesmo nenhuma
censura, pela solicitude com que se guardava, sua consciência não lhe dava
descanso enquanto não conseguia curar com bondade a ferida espiritual.
Gostava de progredir em todo tipo de empreendimentos,mas
não queria aparecer, fugindo à admiração por todos os meios, para não cair na vaidade.
Pobres de nós, que te perdemos, pai digno e exemplo de
toda bondade e humildade. Foi merecidamente que te perdemos, porque quando te
possuíamos não nos preocupamos em te conhecer!
1. O que você deseja destacar neste texto?
2. Como este texto auxilia em sua espiritualidade?
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