terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Encontro de Formação 192 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Primeiro (Capítulos 1-6)

 


192

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Primeiro (Capítulos 1-6)

 


LIVRO PRIMEIRO

Capítulo 1

1.      Procurando investigar o sentido propriamente religioso da vida humana que, ou provém da natureza, ou é descoberto pelas investigações laboriosas dos sábios, para obter o que é concedido ao conhecimento por dom divino, encontrei muitas coisas que, segundo a opinião corrente, parecem tornar a vida mais útil e desejável.

2.      Constatei, principalmente, que o ócio e a opulência são tidos pelos mortais como os melhores e mais importantes de todos os bens. Um sem a outra seria, antes, causa de mal do que de bem, pois o ócio na pobreza pode ser considerado quase como um exílio da vida, e a inquietação na opulência traz tanto mais calamidades quanto, com maior preocupação, carece daquilo que, mais do que tudo, é desejável e ambicionado.

3.      Embora a opulência traga consigo os maiores e melhores encantos da vida, não parece estar muito longe dos deleites dos animais. Estes, de fato, vagando pelos bosques repletos de alimentos, sossegados e sem trabalho, encontram a saciedade nos campos. Se o melhor e o mais importante nesta vida fosse descansar e ter fartura, seria preciso que tal gênero de vida fosse comum a nós e a todos os animais privados da razão.

4.      Para estes, a própria natureza, com imensa prodigalidade, além de segurança, livre de cuidados, fornece com facilidade o necessário.

Capítulo 2

5.      Tenho para mim que a maior parte dos mortais considera absurdo e animal este modo de viver e o rejeita. Censuram-no nos outros porque, levados pela própria natureza, julgam indigno do homem imaginar que tenha nascido, como os irracionais, apenas para o ventre e a inércia, não tendo sidos trazidos a esta vida para a realização de grandes feitos ou ótimas artes.

6.      A vida, pelo contrário, deve ter sido concedida em vista de algum proveito eterno, porque não se poderia atribuir ao dom de Deus uma existência atribulada por angústias, afligida por tantas moléstias e pela ignorância de si mesma e de seu interior, desde a meninice até se consumar nos achaques da velhice.

7.      Por isso preferem exercer as obras e virtudes da paciência, da continência e da benignidade, entendendo que viver bem consiste em bem agir e bem compreender. Não pensam ter sido dada a vida pelo Deus imortal apenas para terminar na morte, pois compreendem não provir do bom Doador a grande alegria de viver somente para o tristíssimo medo de morrer.

Capítulo 3

8.      Não considero inepto nem inútil o modo de pensar dos que procuram conservar a consciência livre de toda culpa e, com prudência, dar um sentido a todas as dificuldades da vida humana, ou deliberadamente pretendem evitá-las, ou pacientemente suportá-las.

9.      Contudo, não me parecem bastante idôneos para ensinar como viver bem e com 15 felicidade, pois apenas estabelecem os preceitos comuns das doutrinas condizentes com o espírito humano.

10.  Não compreender estes ensinamentos é coisa de animal, não exercer o que se compreendeu parece uma loucura que ultrapassa a ferocidade do animal. Apressese, pois, a alma, não apenas em agir assim, porque se não o fizesse estaria cheia de culpa e de sofrimento, mas em conhecer a Deus, Pai de tão grande dom, a quem se deve entregar totalmente, por reconhecer que servi-lo é nobilitante, nele colocando toda a esperança, nele descansando entre as calamidades das preocupações presentes, como em porto seguríssimo e familiar.

11.  Por isso, meu espírito ardia de intenso desejo, não só de compreendê-lo, mas também de conhecê-lo.

Capítulo 4

12.  Muitos afirmavam a existência de numerosas famílias de pretensos deuses e, julgando haver na natureza divina o sexo masculino e o feminino, sustentavam haver nascimentos e sucessões de deuses. Pregavam a existência de deuses, uns maiores, outros menores, diferentes quanto ao poder.

13.  Alguns afirmavam não haver absolutamente um Deus e veneravam apenas a natureza constituída por movimentos e encontros fortuitos. A maioria deles, em conformidade com a opinião popular, dizia que Deus existe, sendo, no entanto, descuidado e negligente quanto às coisas humanas. Outros ainda adoravam os corpos e formas visíveis das criaturas, nos elementos terrenos e celestes.

14.  Por fim, colocavam seus deuses em imagens de homens, animais, feras, aves ou serpentes e encerravam em metais, pedras ou troncos de árvores o Senhor do universo e Pai da imensidão. Não mereciam que se cresse serem mestres da verdade aqueles que, seguindo ridículas e irreligiosas ideias, dissentiam, eles próprios, entre si, por suas vãs opiniões.

15.  No meio de tudo isso, meu espírito solícito, esforçando-se por seguir o caminho útil e necessário para o conhecimento de seu Senhor, não considerava digno de Deus o descaso pelas coisas criadas por Ele e julgava também não competir à natureza forte e incorrupta o sexo dos deuses e as sucessões de progenitores e nascidos.

16.  Também tinha por certo que, ao Divino e Eterno, competia ser somente Um e sem diferença, porque, sendo Ele mesmo o fundamento de seu próprio ser, não poderia deixar fora dele nada que fosse melhor do que aquilo que lhe é próprio.

17.  A onipotência e a eternidade não poderiam estar senão em um mesmo ser, pois não teria sentido existir, na onipotência, o mais forte e o mais fraco e, na eternidade, o antes e o depois, visto que em Deus não se deve venerar nada que não seja eterno e poderoso.

Capítulo 5

18.  Revolvendo no espírito estas e muitas outras coisas, deparei com aqueles livros escritos por Moisés e os Profetas, que transmitiam a religião dos hebreus. Neles, o próprio Deus criador, dando testemunho de si mesmo, assim se expressa: Eu sou o que sou.[...] Isto dirás aos filhos de Israel: Enviou-me a vós aquele que é (Ex 3,14). Fiquei cheio de admiração por tão perfeita definição de Deus que, de modo inteiramente apto, dava à inteligência humana o conhecimento da natureza divina e incompreensível, pois entende-se que nada é mais próprio a Deus do que ser.

19.  O que é, não se diz de alguém a quem falta algo, nem de quem teve começo, mas daquele que, com o poder da incorrupta beatitude, é perpétuo e não pode nem poderia, em algum tempo, não ser. O Ser divino não está sujeito à extinção nem ao começo e, como nada falta à eternidade de Deus, somente dele se deve afirmar a incorrupta eternidade.

Capítulo 6

20.  Com esta definição de sua infinidade, concorda aquela palavra: Eu sou o que sou. Para nós, porém, é ainda necessário entender a obra de sua magnificência e poder.

21.  Sendo-lhe próprio o ser, pois permanece sempre e não começa de modo algum, escuta-se a palavra digna do Deus eterno e incorrupto: O que tem o céu nas palmas e a terra no côncavo da mão (Is 40,12), e também: O céu é meu trono, e a terra, escabelo de meus pés. Que casa me edificareis, ou qual o lugar de meu repouso? Não foi a minha mão que fez isto? (Is 66,1-2). O céu inteiro está na palma de Deus e toda a terra está contida no côncavo da sua mão.

22.  Quanto à palavra de Deus, por mais que se aprofunde sua compreensão, seu sentido íntimo contém sempre mais do que aquilo que o ouvido percebe. Pois o céu, fechado nas palmas, é também o trono de Deus, e a terra, contida no côncavo da mão, é igualmente o escabelo de seus pés. Trono e escabelo não se podem entender como uma extensão da forma do corpo, segundo o modo de assentar-se, já que aquilo que é para si trono e escabelo é também aquilo que a infinidade poderosa encerra segurando na palma da mão. Deve-se reconhecer, nestas comparações tiradas das criaturas, que Deus está dentro e fora de todas as coisas, que transcende e está no mais íntimo de tudo e mostra o seu poder sobre a natureza exterior, contendo-a na mão.

23.  O trono e o escabelo, postos como base, manifestam que as coisas exteriores estão submetidas Àquele que está no interior, pois Deus está dentro das coisas exteriores e encerra as interiores a partir do exterior. Ele mesmo contém tudo o que está dentro e fora e, como é infinito, não está longe de nada, e nada deixa de estar dentro daquele que é infinito.

24.  Demorando-se nestas afirmações tão religiosas, com muito empenho, meu espírito se deleitava. Julgava que nenhum pensamento era digno de Deus, por estar Ele além da compreensão das coisas. Quanto mais a mente finita se dilata para além dos limites do pensamento, mais a infinidade da desmedida eternidade excede a infinidade do que procura atingi-la.

25.  Aquilo que piedosamente chegamos a entender, o Profeta confirmava claramente ao dizer: Aonde irei longe do teu espírito ou fugirei de tua face? Se subo aos céus, lá estás; se desço aos infernos, ali te encontro. Se tomasse minhas asas, antes da luz, e fosse habitar nos confins dos mares, também ali tua mão me conduziria e tua destra me seguraria (Sl 138,7-10).

26.  Nada existe sem Deus e não há lugar algum em que Deus não esteja. Nos céus está, no inferno está, além dos mares está. Está dentro do que é interior, transcende o que é exterior. Tal como contém, assim é contido. Não está em coisa alguma sem que esteja em todas.

O que você destaca no texto e como ele serve para sua espiritualidade?