terça-feira, 27 de agosto de 2019

108 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 19)


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108
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 19)


HOMILIA 19 - Lc 2.40-46
Novamente sobre o que está escrito: “O menino crescia e fortalecia-se” até aquela passagem em que ele interroga os anciãos no templo.

A divindade de Jesus
Porque alguns, que parecem crer na Santa Escritura, negam a divindade do Salvador com relação, dizem esses alguns, à glória do Deus onipotente, parece-me justo que recebam, pela autoridade das próprias Escrituras, o ensinamento de que algo divino veio para um corpo humano; e não somente para um corpo humano, mas para uma alma também humana.
Aliás, se consideramos com cuidado o sentido das Escrituras, aquela alma teve algo a mais que as outras almas dos homens, pois toda alma humana, antes de chegar à virtude, encontra-se manchada pelos vícios.
Ora, a alma de Jesus nunca foi maculada pela impureza do pecado.
Porquanto, antes que tenha chegado ao décimo segundo ano de idade, o Espírito Santo escreve sobre ele no Evangelho de [São] Lucas: “O menino crescia, porém, e fortificava-se e estava cheio de sabedoria”.
A natureza dos homens não recebe isto, que antes dos doze anos esteja repleto de sabedoria.
Uma coisa é ter uma parte de sabedoria, outra coisa é estar repleto de sabedoria.
Logo, não duvidemos de que algo divino tenha aparecido na carne de Jesus que ultrapassava não somente o homem, mas também toda criatura racional.
“Ele crescia”, diz [o Evangelho]. “Ele tinha se humilhado, com efeito, tomando a forma do escravo” e, pela mesma virtude, com a qual “tinha se humilhado”, cresce.
Ele tinha aparecido fraco, porque tinha tomado um corpo fraco e, por isso, recobrava a força. O Filho de Deus “tinha se aniquilado” e, por isso, ele está de novo repleto de sabedoria.
“E a graça de Deus estava sobre ele.” Não estava sobre [só] quando chegou à adolescência, não [só] quando ensinava publicamente; mas já desde que era ainda pequenino tinha a graça de Deus; e, como todas as coisas nele tinham sido admiráveis, sua infância foi também admirável, a tal ponto que possuía em plenitude a sabedoria de Deus.

Jesus fica no templo
“Seus pais iam, portanto, segundo o costume, a Jerusalém para a solenidade do dia da Páscoa. Quando o menino completou doze anos.”
Observa bem que, antes do seu décimo segundo ano, ele já possuía em plenitude a sabedoria de Deus e os outros dons que lhe são atribuídos na Escritura.
Portanto, conforme dissemos, como fosse o seu décimo segundo ano e, segundo o costume, os dias da solenidade tivessem expirado e os pais voltassem, “o menino ficou em Jerusalém, sem que seus pais soubessem”.
Há aí, compreende-o, algo mais sublime do que a natureza humana é capaz de apreender.
Não basta, pois, simplesmente dizer “ele ficou” e seus pais ignoravam onde estava.
Mas conforme está escrito no Evangelho de [São] João, quando escapou do meio deles e não apareceu, no momento em que os judeus lhe punham em armadilha, também agora acredito que o menino ficou em Jerusalém assim e que seus pais ignoravam onde ele tinha ficado.
Não nos admiremos que tenham sido chamados pais os que mereceram o título de pai e mãe, um por sua maternidade e outro pelos serviços prestados.

A procura de Jesus
O texto continua: “Nós te procurávamos dolorosamente”.
Não penso que eles se condoíam por acreditar que o menino vagasse sem rumo ou tivesse morrido.
E não podia suceder que Maria temesse que seu filho se perdesse vagando sem rumo, ela que sabia que concebera pelo Espírito Santo, que ouvira o anjo lhe falar, e os pastores correndo e Simeão profetizando.
Afasta absolutamente essa interpretação também a respeito de José, que recebera do anjo o preceito de tomar o menino e se encaminhar para o Egito, que ouvira estas palavras: “Não temas em tomar Maria por esposa, pois o que nela nasceu é o fruto do Espírito Santo”.
Nunca poderia acontecer que ele temesse que a criança, que ele sabia ser divina, estivesse perdida.
O sofrimento dos pais e as perguntas que se fazem nos sugerem um sentido diferente daquele que o leitor comum concebe.
[Esse sofrimento é] como quando tu, se lês às vezes as Escrituras, buscas nelas um sentido com certa dor e tormento, não porque consideres que as Escrituras tenham se enganado ou contenham asserções falsas, mas porque elas contêm intrinsecamente a linguagem e a razão da verdade, cujo sentido tu não podes descobrir, mas que, entretanto, é o verdadeiro.
Assim Maria e José buscavam a Jesus, temendo que por acaso tivesse se apartado deles, temendo que, deixando-os, tivesse transmigrado a outros lugares e – o que mais creio – que retornasse aos céus para novamente de lá descer quando lhe aprouvesse.
“Dolorosamente”, portanto, buscavam o Filho de Deus. E como buscavam, não o encontraram “entre os parentes”.
E não podia o parentesco humano reter o Filho de Deus. Não o encontraram entre os conhecidos, porque a virtude divina era maior que o conhecimento e a ciência mortal.
Onde, então, o encontram? No templo; aí é encontrado, de fato, o Filho de Deus. Se um dia também tu buscares o Filho de Deus, busca primeiramente o templo, para lá apressa-te; aí encontrarás o Cristo, a Palavra e a Sabedoria, isto é, o Filho de Deus.

Sabedoria de Jesus
Porque ele era um pequenino, é encontrado “no meio dos mestres”, santificando-os e instruindo-os.
Porque era um pequenino, é encontrado “no meio deles”; não lhes ensinava, mas “os interrogava”.
E nisso, segundo as obrigações de sua idade, ele nos ensinava o que convém às crianças: ainda que sejam sábios e instruídos, que escutem seus mestres antes de desejarem ensinar, e não se jactem por uma vã ostentação.
Ele interrogava, digo, os mestres, não para que aprendesse algo, mas para que instruísse, interrogando.
Interrogar e responder com sabedoria emanam de uma só e mesma fonte de doutrina; e é a marca de uma mesma ciência saber o que interrogas ou o que respondes.
Foi necessário que primeiramente o Salvador se tornasse mestre da interrogação instruída, para que posteriormente respondesse às interrogações, segundo a razão e a Palavra de Deus, “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua espiritualidade?


terça-feira, 13 de agosto de 2019

107 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 18)


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107
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 18)


HOMILIA 18 - Lc 2.40-49
Sobre o que está escrito: “O menino crescia e se fortificava” até aquela passagem que diz: “Não sabeis que eu devo estar na morada de meu pai?”

O crescimento de Jesus
Nasceu meu Senhor Jesus, seus pais subiram a Jerusalém, para cumprir as prescrições da Lei e oferecer para ele um casal de rolas ou dois filhotes de pombas.
Simeão o segurou em seus braços, como se leu há pouco, e pronunciou a seu respeito as profecias que a história narra.
E depois que tudo se cumpriu segundo o costume, os pais voltaram.
Qual era então a idade de Jesus? Ele era ainda pequenino, porém, “crescia, fortificava-se e estava cheio de sabedoria e graça”. Ele não tinha ainda cumprido os quarenta dias de purificação, ele não tinha ainda vindo a Nazaré, e já recebia a sabedoria em plenitude.
A Escritura pôde dizer: “ele crescia e fortificava-se e recebia o Espírito”. Mas porque “ele tinha se aniquilado tomando a forma de escravo”, assim que foi oferecido o sacrifício para sua purificação, recuperou plenamente aquilo de que se tinha esvaziado; não que ele tenha começado a crescer repentinamente, mas que demonstrava alguma maior santidade, segundo estas palavras da Escritura: “o menino crescia, porém, e fortalecia-se, e estava cheio de sabedoria”.
Procuremos, se existe, outra passagem da Escritura em que se tenha escrito sobre o menino que “crescia e se fortalecia”, para que, a partir do cotejo de vários textos, consigamos compreender o que é dito a mais no caso de Nosso Senhor.
obre João [batista], lemos: “o menino, porém, crescia e fortificava-se”, e o texto não acrescenta: “ele estava cheio de sabedoria”, mas “ele se fortificava em espírito”.
Lucas diz aqui sobre o Senhor: “ele crescia, fortificava-se, estava cheio de sabedoria e a graça de Deus estava sobre ele”. Todas essas palavras foram ditas sobre o menino, que não tinha ainda completado doze anos.
Mas, tendo doze anos, ele permanece em Jerusalém. Seus pais, sem saber onde estava, procuram-no com inquietude e não o encontram. Procuram entre seus parentes próximos; procuram entre a comitiva; procuram entre os conhecidos, e entre todos esses não o localizam.
Jesus é buscado, pois, por seus pais, pelo pai, que tinha sido seu pai nutridor e o tinha acompanhado quando descia para o Egito. Entretanto, eles não o encontram imediatamente.
De fato, Jesus não se encontra entre seus parentes e seus próximos segundo a carne; não se encontra entre os de sua família carnal.
Meu Jesus não pode ser encontrado entre a comitiva de muitos.

Onde encontrar Jesus?
Aprende, pois, onde o encontraram os que o procuravam, para que também tu, que buscas com José e Maria, o encontres.
E aqueles que buscavam, diz [o evangelista], “encontraram-no no templo”. Não em qualquer outro lugar, mas “no templo”, e não simplesmente “no templo”, mas “no meio dos doutores que ele escutava e que ele interrogava”.
Tu também, então, procura, pois, Jesus “no templo” de Deus; procura na Igreja; procura junto aos mestres que estão “no templo” e que dele não saem.
Se assim, pois, o procurares, encontrá-lo-ás. Além disso, se alguém se diz um mestre e não possui Jesus, só possui o título de mestre, e por isso não se pode encontrar Jesus, Verbo de Deus e Sabedoria, junto a tal mestre.
Jesus foi encontrado, diz [São Lucas], “no meio dos doutores”. Segundo outra passagem da Escritura a respeito dos profetas, assim compreende o que aqui isto, “no meio dos doutores”, quer dizer: “Se aquele que está sentado tem uma revelação, diz o Apóstolo, que o primeiro se cale”.
Eles o encontram “sentado no meio dos doutores”, e não somente “sentado”, mas “interrogando-os e ouvindo-os”.
E agora Jesus está presente: ele nos interroga e escuta-nos falar. “E todos ficavam admirados”, diz [Lucas]. O que “admiravam”? Não suas perguntas, que, entretanto, eram admiráveis em si mesmas, mas “suas respostas”.
Interrogar é uma coisa, responder é outra coisa.
Jesus questionava os mestres e, porque algumas vezes eles não podiam responder, ele próprio respondia às suas próprias perguntas.
“Responder” não quer dizer alternância de turnos em uma conversação, mas significa, na Sagrada Escritura, um ensinamento.
Possa a Lei divina te ensinar isso. “Moisés falava e Deus lhe respondia por uma voz”.
Por esse tipo de resposta, o Senhor ensinava a Moisés o que este ignorava. Algumas vezes Jesus interroga; algumas vezes responde; e, como dissemos acima, ainda que sejam admiráveis suas perguntas, suas respostas, porém, são ainda muito mais admiráveis.
Para que possamos ouvi-lo, e para que nos faça perguntas que ele próprio resolverá, supliquemos-lhe, empreguemos um esforço intenso e doloroso para procurá-lo, e então poderemos encontrar aquele a quem procuramos. Não é em vão, pois, que está escrito: “Eu e teu pai dolorosamente te procurávamos”.
É necessário, com efeito, que aquele que busca Jesus não o faça com negligência e moleza, de maneira intermitente, como o fazem alguns e, por isso, não o encontram. Nós, porém, digamos: “Dolorosamente te procuramos”.
E quando tivermos dito isso, ele responderá e dirá à nossa alma, que se esforça e dolorosamente procura: “Não sabeis que eu devo estar na morada de meu pai?”
Onde estão os hereges, onde estão os ímpios e os insensatos que afirmam que a Lei e os Profetas não dependem do Pai de Jesus Cristo?
É certo que Jesus estava no templo, que foi construído por Salomão, e ele confessa que aquele templo é de seu pai, que ele nos revelou e de quem ele diz ser o Filho. Que nos respondam: como um é o Deus bom e o outro o Deus justo?
Porque o Salvador é o filho do Criador, louvemos em comum o Pai e o Filho de quem dependem a Lei e o templo e “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

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Como ele serve para sua espiritualidade?


quarta-feira, 7 de agosto de 2019

106 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 17)


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106
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 17)


HOMILIA 17 - Lc 2.35-38
Novamente sobre o que está escrito: “Seu pai e sua mãe estavam admirados com as coisas que eram ditas sobre ele”, até aquela passagem onde está escrito acerca de Ana.

A paternidade de José
Lucas, que escreveu: “O Espírito Santo virá sobre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com sua sombra; é por isso que aquele que tiver nascido será santo, será chamado Filho de Deus” e que claramente nos transmitiu que Jesus foi filho de uma virgem e não foi concebido de semente humana, este [mesmo São] Lucas testemunhou que José era pai de Jesus, dizendo: “Seu pai e sua mãe estavam admirados com as coisas que eram ditas sobre ele”.
Que causa, então, existiu para que ele mencionasse como pai aquele que, na realidade, não foi seu pai? Quem se contenta com uma explicação singela dirá: “o Espírito Santo o honrou com o título de pai porque havia criado o Salvador”.
Quem procura um sentido mais profundo pode dizer: “porque a ordem da genealogia parte de Davi para chegar até José, para que José não parecesse ser nomeado em vão”.
[Sim,] aquele que não fora o pai do Salvador foi chamado “pai” do Senhor, para que a
ordem da genealogia tivesse o seu lugar.
“Seu pai e sua mãe estavam admirados com as coisas que eram ditas sobre ele”, tanto pelo anjo quanto pela “multidão do exército celeste” e pelos pastores. Ouvindo todas essas maravilhas, eles ficavam muitíssimo maravilhados.

A queda e o soerguimento de muitos
A Escritura diz em seguida: “Simeão os abençoou e disse a Maria, sua mãe: ‘Eis que este [menino] foi estabelecido para a queda e o soerguimento de muitos em Israel, e como sinal de contradição.
Quanto a ti, uma espada te transpassará a alma, para que sejam revelados os pensamentos de muitos corações’”. Devemos contemplar o modo como o Salvador veio “para a queda e o soerguimento de muitos em Israel”.
Quem explica singelamente pode dizer que ele veio “para a queda” dos infiéis e “para o soerguimento” dos que creem.
Mas quem é um intérprete arguto da Escritura diz que, de modo nenhum, cai aquele que antes não tiver estado de pé. Indica-me, portanto, quem terá sido aquele que terá estado de pé, para cuja “queda” o Salvador veio, e também aquele que possa se soerguer.
Na verdade, com certeza aquele que, anteriormente, havia desabado se soergue. É preciso se dar conta de que o Salvador não veio “para a queda” de uns e “para o soerguimento” dos outros, mas “para a queda e o soerguimento”.
“Eu vim”, diz ele, “para cumprir o julgamento, para que vejam aqueles que não viam e se tornem cegos os que viam”.
Há, com efeito, em nós uma parte que antes gozava da visão espiritual e depois cessou de enxergar, e outra que estava cega e depois passou a enxergar.
Por exemplo, quero enxergar com aqueles olhos com os quais anteriormente não via e que, em seguida, me foram abertos, porque, depois da desobediência, os olhos de Adão e de Eva foram abertos, sobre os quais expusemos na homilia anterior.
Agora, porém, é preciso explicar o que quer dizer este texto: “Eis que este [menino] foi estabelecido para a queda e o soerguimento de muitos em Israel”. É-me necessário primeiro cair e, uma vez caído, depois me soerguer, para que o Salvador não tenha sido para mim causa de uma queda funesta.
Por essa razão me fez cair, para que me soerga, e essa queda terá sido para mim muito mais útil do que aquele tempo em que parecia estar de pé. Eu me mantinha de pé pelo pecado naquele tempo em que vivia do pecado; e porque estava de pé pelo pecado, foi-me muito útil no início que eu caísse e morresse pelo pecado.
Por fim, também os santos profetas, quando contemplavam algo mais sublime, caíam de rosto no chão; é por isso, porém, que caíam, para que, pela queda, os pecados fossem purificados mais plenamente.
Esta graça o Salvador também te concedeu: que caias. Eras pagão, que o pagão em ti caia; amavas as prostitutas, que morra em ti o devasso; eras pecador, caia em ti o pecador, para que possas em seguida te soergueres e dizeres: “Se nós morremos com ele, com ele viveremos”, e: “Se partilhamos sua morte, nós partilharemos também sua ressurreição”.

O sinal de contradição
Ele, portanto, “foi estabelecido para a queda e o soerguimento de muitos em Israel”,  isto é, daqueles que podem olhar com plena penetração e espiritualidade também para o “sinal de contradição”. Tudo o que é narrado na história do Salvador é sinal de contradição.
Uma virgem é mãe, eis um sinal de contradição; os marcionitas se opõem a esse sinal e afirmam com insistência que o Cristo não nasceu de uma mulher; os ebionitas se opõem a este sinal e dizem que ele nasceu de um homem e de uma mulher, como nós também nascemos.
Teve um corpo humano, e esse sinal é de contradição: uns dizem que esse corpo veio do céu, outros que teve um corpo tal qual o nosso, para que, pela semelhança de corpo, também pudesse redimir nossos corpos do pecado e dar-nos a esperança da ressurreição.
Ressurgiu dos mortos, e esse é um sinal de contradição: Como ressuscitou? Ressuscitou com seu próprio corpo e tal qual morreu, ou, sem dúvida, para um corpo formado de uma substância superior?
E é infinita a discussão, quando uns dizem: “ele mostrou a chaga dos cravos nas suas mãos a Tomé”; outros objetam, ao contrário: “se ele retomou o mesmo corpo, como ‘ele entrou com as portas fechadas e se achou lá de pé [entre eles]’?”
Vês, portanto, pela variedade dos argumentos, como a própria Ressurreição levanta controvérsias e se torna sinal de contradição.
Eu penso que também aquilo que foi  predito pela boca dos profetas é sinal de contradição. Existem, com efeito, vários hereges que afirmam que o Cristo não foi de modo algum anunciado pelos profetas.
Aliás, que necessidade há de prosseguir muito longamente? Tudo o que narra a história sobre o Cristo é sinal de contradição; contradição não para aqueles que creem nele – porque nós sabemos que o que foi escrito é verdadeiro –, mas todas as coisas que sobre ele foram escritas, para os incréus, é sinal de contradição.

O escândalo de Maria
Simeão diz em seguida: “e uma espada transpassará a tua própria alma”. Qual espada é esta que transpassou não somente o coração dos outros, mas também o de Maria?
A Escritura diz claramente que, no tempo da paixão, todos os apóstolos foram escandalizados, quando o próprio Senhor disse: “Todos vós sereis escandalizados nesta noite”. Portanto, todos foram escandalizados, a tal ponto que o próprio Pedro, o chefe dos apóstolos, renegou Jesus três vezes. Por que pensamos que, tendo os apóstolos sido escandalizados, a mãe do Senhor estaria imune ao escândalo?
Se, durante a paixão do Senhor, ela não sofreu o escândalo, Jesus não morreu por seus pecados. Se, porém, “todos pecaram e são privados da glória de Deus, se todos são justificados e redimidos por sua graça”, Maria também, naquele tempo, esteve sujeita ao escândalo.
E isto é o que agora Simeão profetiza, dizendo: “a tua alma”, que sabe teres tu, na condição de virgem, dado à luz, sem a participação de homem; que sabe que ouviste de Gabriel: “O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra”; que sabe que a espada da infidelidade a transpassará e serás ferida pela ponta da incerteza, e teus pensamentos te dilacerarão em todos os sentidos, quando vires aquele que ouviste ser nomeado Filho de Deus e que sabias que tinha sido gerado sem a semente de um homem ser pregado à cruz e morrer e ter sido sujeito aos suplícios humanos e, no momento derradeiro, queixando-se com copiosas lágrimas e dizendo: “Pai, se for possível, que este cálice passe além de mim”. “Uma espada transpassará a tua alma”.
“A fim de que sejam revelados os pensamentos nos corações de muitos”. Os pensamentos dos homens eram maus.
Por isso foram desvelados, para que, postos à clareza do dia, fossem destruídos e terminassem mortos e aniquilados, e os matasse aquele que morreu por nós.
Com efeito, enquanto nossos pensamentos eram ocultos e não postos à clareza do dia, era impossível aniquilá-los por completo.
É por isso que nós, também, se pecamos, devemos dizer: “Eu te dei a conhecer meu pecado, e não escondi a minha iniquidade. Eu disse: confessarei a minha própria injustiça contra mim mesmo”.
Se, com efeito, tivermos feito isso e tivermos revelado nossos pecados não só a Deus, mas também àqueles que podem curar as nossas feridas e nossas faltas, nossos pecados serão destruídos por aquele que diz: “Eis que dispersarei como uma nuvem tuas iniquidades e como uma cerração os teus pecados”.

Ana, a profetisa
Depois da profecia de Simeão, porque era necessário que também as mulheres fossem salvas, veio uma profetisa sobre a qual está escrito: “Havia também Ana, uma profetisa, filha de Fanuel, da tribo de Aser”.
Que ordem magnífica! A mulher não vem antes do homem. Primeiramente vem Simeão, que abraçou a criança e a segurou em seus braços; em seguida, a mulher, cujas palavras, a bem dizer, não são reportadas, mas de um modo geral diz-se que “ela confessou ao Senhor e que ela falou dele a todos os que esperavam a redenção de Jerusalém”.
E justamente essa santa mulher mereceu receber o espírito de profecia, porque, por uma longa castidade e jejuns prolongados, havia ascendido a esse cume.
Vede, ó mulheres, o testemunho de Ana e imitai-o! Se um dia vos suceder que percais vossos maridos, considerai o que está escrito sobre ela: “Após a virgindade, ela viveu sete anos com seu marido”, e o que se segue; por causa disso, foi profetisa; e não foi de improviso e por acaso que o Espírito Santo habitou nela.
É bom, em primeiro lugar, se for possível, conservar a graça da virgindade; se, porém, isso não puder ser, e suceder-lhe de perder seu marido, que persevere na viuvez.
Não só depois da morte de seu marido, mas também, quando em vida, se deve ter este desejo de que também ele seja coroado pelo Senhor; mesmo que essa vontade e esse propósito não se realizem, diga: “Eu faço voto e prometo, se algo humano indesejável me suceder alheio à minha vontade, nada farei de diverso do que perseverar na continência em minha viuvez”.
Mas agora é possível encontrar na Igreja pessoas que se casam duas, três e até quatro vezes, para não dizer mais; e não ignoramos que tais casamentos nos lançarão fora do Reino de Deus.
Pois não somente a fornicação, mas mesmo as segundas núpcias nos afastam das dignidades eclesiásticas – com efeito, nem um bispo, nem um presbítero, nem um diácono, nem uma viúva podem ter-se casado duas vezes –; do mesmo modo, quem se casou duas vezes será talvez rejeitado da assembleia “dos primogênitos e dos imaculados” da Igreja “que não tem nem mancha nem ruga”, não que ele deva ser mandado para o fogo eterno, mas ele não deve ter parte no Reino de Deus.
Lembro-me, quando eu explicava o que está escrito aos Coríntios: “À Igreja de Deus, que está em Corinto, com todos os que o invocam”, de ter falado da diferença que há entre “a Igreja” e “aqueles que invocam o nome do Senhor”.
Penso, com efeito, que aquele que se casou apenas uma vez, que aquele que permaneceu virgem e que aquele que perseverou na castidade fazem parte da Igreja de Deus; mas o que se casou duas vezes, ainda que tenha tido boa conduta e se exceda em outras virtudes, não faz parte, porém, da Igreja e do número que “não tem nem ruga nem mancha nem nenhum defeito desse tipo”, mas ele é colocado na segunda posição e dentre aqueles que “invocam o nome do Senhor”, e que são evidentemente salvos em nome de Jesus Cristo, sem serem, entretanto, coroados por ele, “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua espiritualidade?