terça-feira, 24 de setembro de 2019

112 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 23)


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112
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 23)


HOMILIA 23 - Lc 3.9-12
Sobre o que está escrito: “Eis que o machado foi posto na raiz das árvores”, até aquela passagem que diz: “Publicanos vieram, porém, para receber dele o batismo”.

A recusa de Israel
João já dizia naquele tempo: “Eis que o machado foi posto na raiz das árvores”.
Se a consumação dos séculos já estava iminente e o fim dos tempos, próximo, nenhuma questão para mim surgiria.
Eu diria, com efeito, que essas palavras: “eis que o machado foi posto na raiz das árvores”, e aquelas: “toda árvore, portanto, que não produz bom fruto será cortada e jogada ao fogo” são profecias do que se cumpria naquele tempo.
Mas depois que tantos séculos se escoaram e tão inumeráveis anos, desde aquele tempo até o dia presente se passaram, devemos nos perguntar como o Espírito Santo pode dizer por seu profeta: “eis que o machado foi posto na raiz das árvores”.
Eu penso que é profetizado ao povo de Israel que o seu corte está próximo.
Com efeito, “àqueles que saíam para receber o batismo”, entre outras coisas, dizia: “Produzi frutos que sejam dignos da conversão”, e, dirigindo-se a eles como a judeus: “Não comeceis a dizer em vós mesmos: nós temos por pai a Abraão; pois vos digo que Deus pode suscitar filhos de Abraão destas pedras”.
Isto, portanto, que é dito: “eis que o machado foi posto na raiz das árvores”, é dito aos judeus.
Esse versículo se juntou a este pensamento do Apóstolo [Paulo]: são ramos infiéis que esse machado quebrou e cortou para amputar da árvore não a raiz, mas aquilo que da raiz deitava renovos, para que na raiz da primitiva árvore pudessem ser
inseridos ramos de oleastro.
“Toda árvore que não produz bom fruto será cortada e jogada ao fogo.” É assim que deve acabar, queimando em chamas.
Em seguida são introduzidas três categorias de pessoas das que vêm indagar a João sobre a sua salvação: uma que a Escritura chamou de “multidões que saem para receber o batismo”, outra que ela nomeia como “publicanos”, e a terceira que ela designa com o nome de “soldados”.
“As multidões o interrogavam dizendo: O que faremos? Ele, respondendo, diz-lhes: ‘Quem tem duas túnicas, dê uma àquele que não tem, e quem tem víveres, faça o mesmo’”.
O que, evidentemente, não sei se convém preceituar à multidão.
Com efeito, foi mais conveniente aos apóstolos do que ao povo, dizer “que aquele que tem duas túnicas dê uma a quem não tem”. E para que saibas que isso convém mais aos apóstolos que às multidões, ouve o que lhes é dito pelo Salvador: “Não leveis duas túnicas pela estrada”.
E assim essas duas vestimentas, das quais cada um está revestido, e é preceituado que uma seja dada a quem não a tem, deve ter outro entendimento.
Como não devemos “servir a dois senhores”, assim o Salvador não quer, de fato, nos ver possuir duas túnicas, nem sermos envolvidos por uma dupla veste, para que não seja uma vestimenta a do velho homem e outra a do novo.
Ao contrário, deseja ardentemente, porém, que “nós nos despojemos do velho homem e nos revistamos do novo”.  Até aí a explicação é fácil.
Mas uma pergunta surge: como, segundo essa interpretação, nos é ordenado dar uma veste a quem não tem?
Qual é o homem que não tem sequer uma vestimenta sobre sua carne, que é nu, que não está coberto absolutamente por nenhuma veste?
Mas não digo isso para que não seja preceituada a liberalidade e a misericórdia para com os pobres e a clemência levada às últimas consequências, isto é, que também protejamos os nus com uma de nossas túnicas.
Mas afirmo isto: essa passagem pode suscitar também um entendimento mais profundo e pode ser necessário que demos uma túnica àquele que absolutamente seja desmunido (desprovido).
Quem é esse, então, que não tem uma túnica? Seguramente é aquele que é profundamente privado de Deus.
Devemos, portanto, nos despojar e dar àquele que está nu. Um possui Deus, o outro, isto é, o poder adverso, é absolutamente privado.
E como está escrito: “Precipitemos nossos delitos no fundo do mar”, assim é necessário que sejam banidos por nós os vícios e os pecados, e que os lancemos sobre aquele que existiu por causa deles para nós.
“E que aquele que tem víveres”, diz a Escritura, “faça o mesmo”. Quem tem víveres, dê a quem não tem, para que lhe seja liberalizado não apenas a vestimenta, mas também o que possa comer.

O mistério dos publicanos
“Também vieram, porém, publicanos receber o batismo de João”.
Aqui a interpretação é imediata: os publicanos não deveriam demandar nada além do que na Lei está prescrito.
Pois quem tivesse exigido mais, transgrediu não o que foi estabelecido por João, mas o que foi estabelecido pelo Espírito Santo, que falou pela boca de João.
Porém, ignoro se essas palavras têm, segundo o sentido anagógico (em que há anagogia, passagem do sentido literal ao místico), uma significação mais rica, e se devemos, diante de um auditório como este, propor coisas tão místicas, sobretudo entre aqueles que não têm uma introspecção do cerne das Escrituras, mas se deleitam apenas pela superfície.
Sem dúvida é arriscado, mas deve-se tocar tal sentido, porém, ainda que seja sucinta e brevemente.
Quando tivermos deixado este mundo e esta nossa vida tiver sido mudada, alguns estarão sentados nas fronteiras do mundo, como no ofício de publicanos, perscrutando com o maior cuidado se acaso não encontram em nós algo que lhes pertença.
Parece-me que “o príncipe deste mundo” seja como um publicano. Por isso está escrito sobre ele: “O príncipe deste mundo vem, mas ele não possui nada em mim”.
Aquilo também que lemos no Apóstolo: “Devolvei a todos o que lhes é devido; a quem se deve o imposto, o imposto; a quem se deve o tributo, o tributo; a quem se deve a honra, a honra; não devais a ninguém nada senão o amor mutuamente”, essas palavras devem ser entendidas no sentido espiritual.
É por isso que se deve considerar a quantos perigos estamos expostos, para que não sejamos, por acaso, arrastados presos por causa de dívida, quando não tivermos tido o que devamos devolver ou o que devemos como tributo, como costuma suceder aos contribuintes do mundo, quando alguém é encarcerado por dívidas e condenado a ser escravo a serviço do Estado para
compensá-las.
Muitos entre nós devem ser pegos por publicanos dessa espécie, entre os quais Jacó, aquele homem santo, não temia muito, nem receava que algo nele fosse encontrado dos tributos devidos aos publicanos.
Por isso, Jacó dizia audaciosamente a Labão, o publicano: “Vem ver se algo das tuas coisas está em meu poder”.
Sobre isso, a Escritura dá seu testemunho, dizendo: “Labão não encontrou nada em poder de Jacó”.
Nosso Salvador e o Espírito Santo, que falou pela boca dos profetas, instruem não somente os homens, mas também os anjos e as potências invisíveis.
Por que falarei do Salvador? Os próprios profetas também e os apóstolos pregam tudo o que anunciam, não somente os homens, mas também aos anjos.
Para que saibas que isso é verdadeiro, diz a Escritura: “Fica atento, ó céu, e eu falarei”; e: “Na presença dos anjos, cantarei para ti”; e ainda: “Louvai o Senhor, céus dos céus, e as águas que estão acima dos céus louvem o nome do Senhor”; e: “Louvem-no os anjos”; e: “Em todo lugar em que se exerça seu poder, bendiz, ó minha alma, ao Senhor”.
Encontrarás em muitas passagens, e mormente nos Salmos, casos em que essas palavras são dirigidas aos próprios anjos, tendo sido dado ao homem, a ele que, todavia, possui o Espírito Santo, o poder de falar também aos anjos.
Citarei um único exemplo de tais passagens, para que saibamos que também os anjos podem ser instruídos por vozes humanas.
Está escrito no Apocalipse de João: “Escreve ao anjo da Igreja de Éfeso: eu tenho alguns agravos contra ti”. E novamente: “Escreve ao anjo da Igreja de Pérgamo: tenho alguns agravos contra ti”. Certamente é um homem que escreve aos anjos e prescreve alguma coisa.

Presença dos anjos
Eu não hesito em pensar que em nossa assembleia também os anjos estão presentes, não somente para toda a Igreja, tomada em seu conjunto, mas também para cada um de nós, dos quais fala o Salvador: “Seus anjos veem sempre a face de meu Pai que está nos céus”.
Aqui está presente uma dupla Igreja: uma dos homens, a outra dos anjos.
Se o que dizemos é conforme o pensamento divino e a intenção das Escrituras, os anjos se alegram e oram conosco. Porque os anjos estão presentes na Igreja, naquela pelo menos que o merece e pertence ao Cristo, é prescrito às mulheres que oram que tenham “sobre a cabeça um véu por causa dos anjos”.
Quais anjos, pois? Sem nenhuma dúvida, aqueles que assistem os santos e se rejubilam na Igreja, os quais, evidentemente, nós não vemos, porque nossos olhos foram cobertos pelas impurezas dos pecados, mas veem os apóstolos de Jesus, aos quais é dito: “Em verdade, em verdade eu vos digo, vereis o céu aberto e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem”.
Se eu tivesse essa graça, [isto é,] de vê-los, assim como os apóstolos, e de contemplá-los, como Paulo os contemplou, veria claramente agora a multidão dos anjos que Eliseu via e que Giezi, que estivera de pé a seu lado, não via. Giezi estava com medo de ser preso pelos inimigos, vendo Eliseu sozinho.
Mas Eliseu, como profeta do Senhor, se põe em oração e diz: “Ó Senhor, abre os olhos deste servidor e que ele veja que há muito mais seres conosco do que com eles”. E imediatamente, às preces do varão santo, Giezi contemplou os anjos que anteriormente não via.
Por esta razão dissemos estas coisas, para mostrar que os publicanos eram instruídos por João, não apenas aqueles que servem aos impostos do Estado, mas também aqueles que vinham para se converter, dos quais uns eram mesmo publicanos e outros eram soldados, e saíam para receber o batismo da conversão.
Vieram, com efeito, não somente João e os profetas, mas também o próprio Salvador, para pregar a conversão e a salvação aos homens, aos anjos e às outras potências celestes, para que “em nome de Jesus todo joelho se dobre no céu, na terra e nos infernos, e que toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor, na glória de Deus Pai”; “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

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terça-feira, 17 de setembro de 2019

111 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 22)


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111
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 22)


HOMILIA 22 - Lc 3.5-8
Sobre o que está escrito: “Todo vale será aterrado”, até aquela passagem que diz: “Deus tem o poder de suscitar destas pedras filhos de Abraão”.

A presença de Jesus transforma aquele que crê
Examinemos as coisas que são pregadas no advento de Cristo, entre as quais primeiramente está escrito a respeito de João: “Voz daquele que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, aplanai suas veredas”.
O que se segue diz respeito unicamente ao Senhor nosso Salvador. Pois não é João que “aterrou todo o vale”, mas o Senhor nosso Salvador.
Que cada um considere a si próprio: quem era antes que abraçasse a fé, e então constatará o vale baixo, um vale precipitado e imerso nos abismos. Mas quando veio o Senhor Jesus e enviou o Espírito Santo, seu substituto, todo vale ficou aterrado.
Ficou aterrado, porém, de boas obras e dos frutos do Espírito Santo. A caridade não deixa subsistir em ti o vale; pois, se tiveres paz e paciência e bondade, não somente cessarás de ser “vale”, mas também começarás a ser “montanha” de Deus.
Nas palavras “Todo vale será aterrado”, constatamos quotidianamente que isso se realiza e se cumpre, tanto para os gentios quanto para o povo de Israel, que foi deposto de sua grandeza: “toda montanha e toda colina serão abaixadas”.
Aquele povo era outrora uma “montanha” e uma “colina”, que foi abatida e desmantelada. Mas “à sua falta, a salvação foi dada aos gentios para provocar sua emulação”. Pois não pecarás, se disseres que as montanhas e as colinas que foram abatidas são as potências contrárias que se erigiam contra os mortais.
Para que os vales de que falamos sejam aterrados, as potências contrárias, montanhas e colinas, deverão ser abaixadas. Mas vejamos se a profecia seguinte referente ao advento de Cristo se cumpriu.
De fato, o texto prossegue: “E tudo que era tortuoso se tornará reto”. Cada um de nós era tortuoso – se, pelo menos era e não persevera até hoje – e a vinda do Cristo, que se cumpre até em nossa alma, reergueu tudo o que era tortuoso.
De que pode te servir a vinda do Cristo outrora na carne, se ele não vier até tua alma?
Oremos para que cada dia seu advento se cumpra em nós e possamos dizer: “Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, é o Cristo que vive em mim”. Se, com efeito, Cristo vive em Paulo e não vive em mim, para que me servirá isso?
Mas, quando tiver igualmente vindo a mim, terei gozado como Paulo gozou dele, então eu também posso igualmente dizer: “Vivo, mas não sou eu que vivo, é o Cristo que vive em mim”. Vejamos, portanto, ainda outras coisas que são anunciadas no advento de Cristo.
Nada era mais áspero que ti. Vê tuas antigas paixões, vê a ira e outros vícios; se, porém, deixaram de ser o que haviam sido, também compreenderás que nada foi mais áspero que ti e, para que eu fale mais expressivamente, nada foi mais tosco.
Tua conduta era tosca, tuas palavras e obras eram toscas. Mas meu Senhor Jesus veio, aplainou tuas asperezas, mudou em estradas planas todo o [teu] caos para fazer em ti um caminho sem obstáculos, leve e muito limpo; para poder andar em ti Deus Pai; e para que o Senhor Jesus fizesse em ti sua morada e dissesse: “Eu e meu Pai viremos e faremos nele nossa morada”.

Preparação para o batismo
E segue-se: “E toda carne verá a salvação de Deus”. Tu outrora eras carne; e tanto outrora eras carne, que, falando mais admiravelmente, enquanto ainda estás na carne, vês “a salvação de Deus”.
O que querem, porém, dizer essas palavras: “toda carne”, sem que nenhuma esteja excluída da visão “da salvação de Deus”, o deixo à compreensão daqueles que sabem sondar os mistérios e o coração das Escrituras. É preciso notar que João fala “aos povos que saíam para receber o batismo”.
Se alguém quer receber o batismo, deve sair. Permanecendo, com efeito, em seu primeiro estado, sem mudar de conduta e de hábitos, ele carece totalmente das disposições requeridas para se aproximar do batismo. Para que entendas o que seja “sair para receber o batismo”, aceita o testemunho e escuta as palavras com as quais Deus fala a Abraão: “Sai da tua terra”, e sua sequência.
E, assim, é para as multidões saindo para o lavacro, não as que saíram, mas somente as que estão tentando sair para a ablução batismal, que João dirige as palavras que seguem.
Se, com efeito, já tivessem saído, nunca diria a eles: “Raça de víboras”. Tudo o que lhes diz, portanto, e [também] a vós o diz, catecúmenos e catecúmenas, a vós que vos dispondes a vir ao batismo.
Examinai bem se talvez também a vós se possa dizer “Raça de víboras”. Pois se vós também tiverdes alguma semelhança com as víboras que caem sob nossos sentidos e com as serpentes invisíveis, também vos será dito: “Raça de víboras”.
Mas se não expelirdes de vosso coração a malícia e os venenos das serpentes, as palavras que se seguem também vos serão dirigidas: “Quem vos ensinou a fugir da ira que há de vir?”

A ira de Deus
Uma grande ira ameaça nosso século: o mundo inteiro haverá de sofrer a ira de Deus.
A tamanha vastidão dos céus e a extensão da terra, os coros das estrelas, o esplendor do sol e as consolações noturnas da lua, tudo será subvertido pela ira de Deus.
Todas essas coisas passarão, com efeito, por causa dos pecados dos homens. E outrora evidentemente a ira de Deus veio; [mas] se limitou a castigar unicamente a terra, “pois toda carne tinha abandonado seu caminho sobre a terra”.
Mas agora a ira de Deus haverá de vir sobre o céu e sobre a terra: “Os céus passarão, mas tu permanecerás” – essas palavras se dirigem a Deus –, “e todos envelhecerão como uma vestimenta”.
Apreciai e medi a ira que há de consumir o mundo inteiro: punirá aqueles que são dignos de castigo, e encontrará matéria sobre a qual realizar-se.
Cada um de nós, naquilo que faz, preparou a matéria da ira; pois está dito na Epístola aos Romanos: “Por teu endurecimento e a impenitência de teu coração, amontoas para ti um tesouro de ira no dia da ira e da revelação do justo julgamento de Deus”.

A conversão
Depois seguem estas palavras: “Quem vos ensinou a fugir da ira que há de vir? Produzi, portanto, frutos que sejam dignos da conversão”. Também a vós que vindes ao batismo é dito: “Produzi frutos dignos da conversão”.
Queres saber quais são os frutos dignos da conversão? “A caridade é um fruto do Espírito, a alegria é um fruto do Espírito assim como a paz, a paciência, a benignidade, a bondade, a fé, a mansidão, a temperança e o resto.”
Caso tenhamos possuído todas essas virtudes, teremos “produzido frutos dignos da conversão”. Foi dito ainda àqueles que vinham encontrar João para receber o batismo: “E não comeceis a dizer em vós mesmos: ‘temos Abraão por pai’.
Digo-vos, com efeito, que Deus pode suscitar destas pedras filhos para Abraão”. João, o último dos profetas, profetiza aqui a expulsão do primeiro povo e a vocação dos gentios. Àqueles, com efeito, que se vangloriavam de Abraão, ele diz: “E não comeceis a dizer em vós mesmos: temos Abraão por pai”.
E dos gentios novamente fala: “Digo-vos, com efeito, que Deus pode suscitar destas pedras filhos para Abraão”. De quais pedras?
Não são as pedras materiais e sem vida que ele mostrava, mas os homens insensíveis e duros de outrora, que, por adorarem pedras ou madeira, viram se realizar aquilo que no Salmo se cantava sobre tais adoradores: “Que os que fabricam os ídolos se tornem como eles, assim como todos os que confiam neles”.
Verdadeiramente os que fabricam ídolos e confiam neles são semelhantes a seus deuses, sem inteligência nem nenhuma razão, converteram-se em pedras e madeira.
Ainda que vejam na criação tanta ordem, tanta harmonia e disciplina, tanta beleza no mundo, eles se recusam a reconhecer o Criador a partir das criaturas e não consideram que uma organização tão perfeita é obra de uma Providência que a dirige; mas são cegos e veem o mundo apenas com olhos de animais sem razão, com olhos de bichos.
Pois eles não observam a presença de alguma razão em um mundo manifestamente regido pela Razão. Esse é o nosso comentário acerca das palavras de João: “Deus pode suscitar destas pedras filhos para Abraão”.
Quanto a nós, então, supliquemos a Deus, se alguma vez fomos pedras, que também nos tornemos “filhos de Abraão”, em lugar dos outros filhos, que foram rejeitados e que perderam por própria falta a promessa e a adoção.
Citarei, ainda, um testemunho a respeito das pedras, se evidentemente está escrito  no Cântico do Êxodo: “Que eles sejam mudados em pedras, até que atravesse teu povo, ó Senhor, até que atravesse este teu povo, do qual tomaste posse”.
E assim, roga-se a Deus que os gentios, por um momento, sejam convertidos em pedras – porque tal é bem o sentido mais expressivo da palavra grega apolithoóntosan – “até que atravesse o povo” judeu.
Não há dúvida de que, depois que eles tiverem atravessado, os gentios cessarão de ser lapídeos e receberão uma natureza verdadeiramente humana e racional no Cristo, “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

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terça-feira, 10 de setembro de 2019

110 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 21)


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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 21)


HOMILIA 21 - Lc 3.1-4
Sobre o que está escrito: “No décimo quinto ano do reino de Tibério César”, até aquela passagem que diz: “Aplanai suas veredas”.

O Evangelho se dirige a todos
Quando as profecias eram dirigidas apenas aos judeus, somente os reis de Judá eram mencionados em seu título; por exemplo: “Visão que teve Isaías, filho de Amós, contra a Judeia e contra Jerusalém, nos reinados de Ozias, Joatão, Acaz e Ezequias”.
E, excetuados os reis da Judeia, não vejo ninguém mais mencionado no tempo de Isaías.
Em alguns profetas, lemos também os nomes dos reis de Israel, como nessa passagem: “E nos dias de Jeroboão, filho de Joás, rei de Israel”.
Mas quando o mistério do Evangelho devia ser publicado e devia ser espalhada sobre toda a terra a boa nova, da qual João, no deserto, foi o primeiro mensageiro, e que o Império de Tibério governava o orbe terrestre, então, descreve a Escritura, “no décimo quinto ano de seu reinado, a palavra do Senhor foi dirigida a João”.
E se a salvação devesse ser anunciada unicamente àqueles que, entre os gentios, haveriam de abraçar a fé, e se Israel devesse ser totalmente excluído, teria bastado dizer: “no décimo quinto ano de Tibério César, sendo governador da Judeia Pôncio Pilatos”.
Mas porque da Judeia e da Galileia muitos haveriam de abraçar a fé, também esses reinos são mencionados no título e é dito: “Herodes sendo tetrarca da Galileia, Filipe, seu irmão, sendo tetrarca da Itureia e da região da Traconítide, Lisânias sendo tetrarca de Abilene, sob os príncipes dos sacerdotes Anás e Caifás, a palavra do Senhor foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto”.
Outrora, “a palavra de Deus tinha-se feito ouvir por Jeremias, filho de Helcias, membro da família sacerdotal” no tempo de tal ou de tal rei de Judá; agora é “a João, filho de Zacarias, que se dirige a palavra de Deus”.
Ora, nunca ela tinha sido dirigida aos profetas “no deserto”. Mas “os filhos da mulher abandonada” iam abraçar a fé em maior número “que os daquela que tem marido”.
E é por isso que a “palavra de Deus foi dirigida a João, filho de Zacarias, no deserto”.

A pregação de João no deserto
Considera, ao mesmo tempo, que a significação é mais rica, se se entende “deserto” no sentido espiritual e não segundo o sentido literal puro e simples.
Pois quem prega “no deserto” aí vocifera inutilmente, visto que não há ninguém para ouvi-lo falar.
O precursor do Cristo, “a voz que clama no deserto”, prega no deserto da alma que não tem paz.
Não só então, mas também no presente, “uma lâmpada ardente e brilhante” veio e “prega o batismo de penitência para a remissão dos pecados”.
“A luz verdadeira” vem em seguida, quando a própria lâmpada diz: “é preciso que ele cresça e que eu diminua”.
A palavra de Deus é proferida “no deserto” e “estende-se a toda região circundante do Jordão”.
Quais outros lugares o Batista teve de percorrer, senão os arredores do Jordão, para que qualquer um que quisesse fazer penitência recorresse logo à ablução da água?

A preparação para o batismo
Ora, Jordão significa “que desce”. O rio de Deus “que desce”, porém, com o poder de uma grande correnteza, é nosso Salvador e Senhor, em quem somos batizados na água verdadeira, a água da salvação.
É “para a remissão dos pecados” que João prega o batismo: vinde, catecúmenos, fazei penitência, a fim de receberdes o batismo “para a
remissão dos pecados”.
Recebe o batismo “para a remissão dos pecados” aquele que cessa de pecar.
Se alguém vem ao lavacro (banho) do batismo endurecido no pecado, para ele não se faz a remissão dos pecados.
Por isso vos conjuro a que não vos aproximeis do batismo sem precaução nem reflexão atenta, mas que mostreis primeiramente “frutos dignos da conversão”!
Durante algum tempo, tende uma boa conduta, guardai-vos puros de todas as impurezas e de todos os vícios: a remissão de vossos pecados vos será dada, quando vós mesmos tiverdes começado a desprezar vossos próprios pecados. “Deixai vossos pecados, e eles vos deixarão.”

Aplainar as veredas
Porém esta passagem que agora é citada do Antigo Testamento, a lemos escrita em Isaías. Aí, com efeito, está dito: “Voz daquele que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas”.
O Senhor quer encontrar em vós um caminho para poder entrar em vossas almas e fazer seu itinerário; preparai-lhe a vereda, da qual é dito: “Endireitai suas veredas”. “Voz daquele que clama no deserto.”
Uma voz clama: “Preparai o caminho”. A voz, com efeito, é a primeira a chegar aos ouvidos; em seguida, depois da voz, ou melhor, ao mesmo tempo que ela, a palavra penetra o ouvido.
É nesse sentido que o Cristo é anunciado por João. Examinemos, portanto, o que a voz anuncia a respeito da Palavra. “Preparai”, diz a voz, “um caminho para o Senhor”.
Que caminho prepararíamos para o Senhor?
Porventura um caminho material? A palavra do Senhor pode tomar tal caminho? Ou deve-se preparar um caminho interior para o Senhor, e dispor, em nosso coração, veredas endireitadas e planas?
Esse é o caminho através do qual entrou a Palavra de Deus, que consiste na capacidade de acolhida do coração humano.

Imensidão do coração humano
Grande é o coração do homem, imenso e capaz de acolher a Palavra, desde que seja puro! Queres conhecer sua grandeza e sua largueza?
Vê a extensão dos conhecimentos divinos que ele compreende. Ele próprio diz: “Ele me deu um conhecimento verdadeiro das coisas que há: ele me fez conhecer a estrutura do mundo, as propriedades dos elementos, o começo, o fim e o meio dos tempos, as mudanças das estações, a sucessão dos meses, os ciclos dos anos, a posição dos astros, a natureza dos animais e o furor dos animais selvagens, as violências dos espíritos e os pensamentos dos homens, as variedades de árvores e as virtudes das raízes”.
Tu vês que não é pequeno o coração do homem que pode abarcar tantas coisas.
Entende sua grandeza não de dimensões físicas, mas o poder de seu pensamento, que pode abarcar tamanho conhecimento da verdade.
Porém, para levar todas as pessoas simples a crer quão grande pode ser o coração do homem, a partir de exemplos quotidianos, continuemos.
Quaisquer que sejam as cidades que atravessamos, guardamos em nossa mente suas características: a localização das praças, das muralhas e dos edifícios mora em nosso coração; conservamos desenhada e inscrita em nossa memória uma rua em que entramos.
Abraçamos em nosso pensamento silencioso o mar que navegamos. Não é pequeno, como eu disse, o coração do homem, que pode abarcar tantas coisas.
Se, porém, não é pequeno abarcando tantas coisas, consequentemente, nele o caminho do Senhor é preparado e a vereda é aplainada, para que ande nela o Verbo e a Sabedoria de Deus.
Prepara um caminho para o Senhor por uma boa conduta; e, com obras honrosas, alisa a vereda para que, sem qualquer obstáculo, ande em ti o Verbo de Deus e te dê de presente o conhecimento dos mistérios e da vinda daquele “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

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terça-feira, 3 de setembro de 2019

109 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 20)


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109
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 20)


HOMILIA 20 - Lc 2.49-51
Sobre o que está escrito: “Por que me procuráveis?” até aquela passagem que diz: “Maria conservava todas essas palavras em seu coração”.

Jesus reencontrado
Maria e José procuravam Jesus “entre os parentes” e não o encontravam, procuravam “entre os companheiros de viagem” e não puderam encontrá-lo.
Fizeram uma busca “no templo” e não simplesmente “no templo”, mas “junto dos mestres”; de fato, é “no meio dos mestres” que eles o encontram.
Onde quer que os mestres estiverem, aí, “no meio dos mestres”, Jesus é encontrado, a menos que o mestre se assente “no templo” e nunca saia dele.
Jesus prestou serviço a seus mestres, e ensinou aqueles que ele parecia interrogar, falando “no meio deles” e, de certo modo, os estimulava a buscar o que eles ignoravam e a descobrir o que, até essa passagem, eram incapazes de saber se conheciam ou se ignoravam.
Jesus é, pois, encontrado “no meio dos mestres” e, uma vez encontrado, ele diz àqueles que o procuravam: “Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devo estar na casa de meu Pai?”.
Atendo-nos primeiramente ao sentido mais simples, armemo-nos contra os ímpios hereges que afirmam que nem o Criador, nem o Deus da Lei e dos profetas é o Pai do Cristo.
Eis que é uma asserção que o Pai de Cristo é o Deus do templo. Que se envergonhem de confusão os valentinianos ouvindo Jesus, que diz: “eu devo estar na casa de meu Pai”.
Que se envergonhem todos os hereges que admitem o Evangelho segundo Lucas e desprezam o que nele se acha escrito. Que estas palavras sejam compreendidas do modo mais simples, como eu disse.

A casa do Pai
Mas, visto que o texto traz: “Eles não entenderam, porém, o discurso”, escrutemos com mais cuidado o sentido da Escritura. Eles eram desprovidos de inteligência e sabedoria a ponto de não saber o que Jesus queria dizer – porque estas palavras, “devo estar na casa de meu Pai”, significavam “estar no templo”?
Ou então essas palavras têm um sentido mais profundo e que edificaria mais os ouvintes?
Cada um de nós, se é bom e perfeito, pertence a Deus Pai. E assim, de modo geral e a respeito de todos os homens, o Salvador nos ensinou que ele não deve estar em outra parte senão entre aqueles que pertencem ao Pai.
Se algum de vós pertence a Deus Pai, possui Jesus em seu meio. Tenhamos, pois, fé na palavra de Jesus: “Eu devo estar na casa de meu Pai”. Eu imagino que há este templo de Deus mais espiritual, mais vivo e mais verdadeiro que o templo construído a título de símbolo, pela mão dos homens.
Assim, como naquele templo Jesus esteve presente simbolicamente, sua saída também foi simbólica. “Ele saiu do templo” terrestre dizendo: “Eis vossa casa abandonada e deserta”, e, deixando aquela casa, ele se foi para o domínio de Deus Pai, as igrejas dispersas sobre toda a superfície da terra, e diz: “Eu devo estar na casa de meu Pai”.
Portanto, “não entenderam a palavra que lhes foi dirigida”.
Prestai atenção, ao mesmo tempo, [também] nisto: enquanto esteve no domínio de seu Pai, ele estava nas alturas.
E porque José e Maria ainda não tinham uma fé inteira, por esta razão não podiam permanecer com ele nas alturas, mas é dito que “ele desceu com eles”.
Frequentemente Jesus desce com seus discípulos, e não vive sempre na montanha e não ocupa indefinidamente os cumes.
Na montanha, está com Pedro, com Tiago e com João, e novamente em outro lugar com outros discípulos. E como aqueles que sofriam de várias enfermidades não tinham a força de subir a montanha, por esta razão “ele desceu e veio” até eles, que moravam embaixo.
Agora também está escrito: “Ele desceu com eles, veio a Nazaré e lhes era submisso”.

A submissão de Jesus
Aprendamos, filhos, a ser sujeitos a nossos pais: o maior se submete ao menor, que, porque via que José tinha idade maior que a dele, o honrou, por isso, com o respeito de pai, dando a todos os filhos o exemplo para que se submetessem aos pais e, se não houvesse pais, se submetessem àqueles que têm a honra de pais.
Por que falar de pais e filhos? Se Jesus, Filho de Deus, se submete a José e a Maria, eu não me submeteria ao bispo, que foi constituído pai para mim por Deus? Não me submeteria ao presbítero, que para mim foi preposto pela eleição do Senhor?
Penso que José compreendia que Jesus lhe era superior sendo-lhe submisso e, conhecendo a superioridade de seu inferior, José lhe ordenava com receio e medida.
Que cada um, então, reflita sobre isto: frequentemente um homem de menor valor é colocado acima de pessoas melhores que ele, e acontece algumas vezes que o inferior tem mais valor que aquele que parece lhe ser preposto.
Quando o mais elevado em dignidade tiver compreendido isso, ele não se inchará de soberba, por ser superior, mas saberá, assim, que o submisso pode ser melhor que ele, como Jesus também foi sujeito a José.

Os progressos de Jesus
Novamente, o texto prossegue: “Maria, porém, conservava todas essas palavras em seu coração”.
Ela suspeitava de que havia aí algo além do meramente humano.
Assim também “conservava em seu coração todas as palavras de Jesus”, não como de um menino que tivesse doze anos, mas daquele que fora concebido do Espírito Santo, daquele que ela via “progredir em sabedoria e em graça aos olhos de Deus e dos homens”.
Jesus “progredia em sabedoria” e, de idade em idade, ele parecia mais sábio.
Então ele não era sábio, para progredir em sabedoria? Ou então “porque ele se aniquilara, tomando a forma de escravo”, retomava o que havia perdido e se enchia de virtudes que parecera abandonar anteriormente, tendo assumido um corpo humano?
“Ele progredia”, pois, não somente em “sabedoria”, mas “em idade”. Pois existe também um progresso em idade.
A Escritura nos fala de duas espécies de idade, uma do corpo, que não depende de nós, mas de uma lei da natureza; outra da alma, que propriamente está em nosso poder e segundo a qual, se quisermos, crescemos quotidianamente.
Crescemos até chegarmos à perfeição, “ao ponto de não sermos mais pequeninos e flutuantes, rodando em círculo a todo vento de doutrina”.
Cessando de ser “pequeninos”, comecemos a ser homens adultos e possamos dizer: “quando me tornei um homem, fiz desaparecer as coisas que eram de criança”.
O progresso dessa idade, que redunda em crescimento da alma, está em nosso alcance. Se esse primeiro testemunho não basta, tomemos outro exemplo de [São] Paulo, que diz: “Até que tenhamos todos chegado ao estado de homem perfeito, na força da idade que realiza a plenitude do corpo de Cristo”.
Está, portanto, em nosso poder que cheguemos à medida do corpo de Cristo.
E, se está em nosso poder, esforcemo-nos com todo afinco em despojar a criança e destruí-la e ter acesso às demais idades, para que possamos, nós também, ouvir: “Tu irás em paz, junto a teus pais, tendo vivido uma feliz velhice”, velhice espiritual certamente, que verdadeiramente é a boa velhice, encanecendo e chegando até o fim em Cristo Jesus: “a quem pertencem o poder e a glória nos séculos dos séculos. Amém”.

O que você destaca no texto?
Como ele serve para sua espiritualidade?