domingo, 25 de fevereiro de 2024

249 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo Segundo (Capítulos 15 - 26).

 




249

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo Segundo (Capítulos 15 - 26)

 


 

O livro XII fala do nascimento eterno do Verbo e termina com a Oração que resume a sua fé na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a súplica para que Deus conserve a sua fé. São 57 capítulos.

 

Capítulo 15.

1.      O povo de Israel nasce para ser feito. Pelo fato de se dizer que nasceu, não se deve entender que não tenha sido feito, pois é filho por adoção, não por geração. Não é filho por natureza, mas porque recebeu esse nome.

2.      Embora esteja escrito a seu respeito primogênito meu, é grande a diferença entre meu Filho dileto e filho primogênito meu.

3.      Onde há natividade, aí está Meu Filho dileto. Quando se trata de eleição dentre as nações, e a adoção vem da vontade, aí se diz: filho primogênito meu. Aqui, a palavra se refere ao primogênito, lá, ao Filho.

4.      Na natividade, Filho é, em primeiro lugar, seu e, por isso, dileto. Na eleição, é, em primeiro lugar, primogênito, depois é seu. Porque foi adotado como Filho entre todos os povos, é próprio de Israel ser primogênito.

5.      Já ao Filho único, que nasceu como Deus, é próprio ser Filho. Não há verdadeira e perfeita natividade, onde a geração é apenas atribuída. Não há dúvida de que aquele povo que nasceu como filho tenha sido feito filho. Porque se fez o que não era, e porque dele foi dito que nasceu como filho, porque foi feito filho, não se trata de verdadeira natividade, visto que, antes de nascer, era outra coisa.

6.      Por isso não era filho antes de nascer, isto é, antes que fosse feito filho. O filho retirado dentre os povos é mais um povo do que um filho, não é verdadeiro filho, visto que não foi sempre filho.

7.      Ao contrário, o Deus Unigênito nem existiu em tempo algum sem ser Filho, nem foi coisa alguma antes de ser Filho. Como é sempre Filho, não se pode entender que não tenha existido em algum tempo.

 

Capítulo 16.

8.      Os homens, quando nascem, não existiam no tempo, primeiro, porque todos nascem daqueles que não existiam antes. Embora cada um dos que nascem tenha na sua origem alguém que existia, este mesmo do qual ele nasce não existia antes de ter nascido.

9.      Além disso, aquele que nasce nasceu depois de não ter existido, porque antes que nascesse já existia tempo, pois, tendo nascido hoje, não existia ontem.

10.  Começou a ser a partir do que não era. Vê-se claramente que o que hoje nasce não existia ontem. E assim, seu nascimento, pelo qual existe, vem depois do tempo no qual não existia. Porque é forçoso que ontem venha primeiro e depois venha hoje, deve ter havido um tempo em que não tenha existido.

11.  Isto é comum à origem da existência humana. Tudo teve seu início, porque antes não existia. Isto acontece em primeiro lugar, como ensinamos, em relação ao tempo, em seguida em relação à causa.

12.  Quanto ao tempo, não há dúvida de que aquilo que agora começa a ser antes não existia; quanto à causa, porque consta que sua existência não é devida a uma causa.

13.  Estuda todas as causas das origens e volta tua inteligência para o que é anterior: nada encontrarás que tenha começado por uma causa.

14.  Tudo é criado para ser o que é pela força de Deus, não nasce de outra coisa. Pertence à natureza de cada gênero de seres, por esta mesma sucessão, não ter existido e começar a ser, pois existem depois do tempo e no tempo.

15.  Como todas as coisas começaram a existir depois do tempo, recebem seu princípio daquilo que antes não existia, pois nascem dos que em algum tempo não existiam.

16.  O próprio pai do gênero humano, Adão, saiu da terra, que veio do nada, e depois do tempo, isto é, depois do céu, da terra, do dia, do sol, da lua e dos astros. Não teve origem pelo nascimento e começou a existir depois de um tempo em que não existia.

Capítulo 17.

17.  Como não existiu tempo algum anterior ao Deus Unigênito, não se pode admitir que, em algum tempo, não tenha existido, pois Ele mesmo é anterior a algum tempo.

18.  Além disso, não ter existido já se refere ao tempo e, portanto, o tempo não começaria a existir depois dele, mas Ele mesmo teria começado a ser depois do tempo, pois se não existisse antes do tempo anterior ao seu nascimento, este tempo em que não existia seria anterior a Ele.

19.  Em seguida, não se pode entender que o que nasceu daquele que é tenha nascido daquele que não foi, porque Aquele que é a causa do seu ser, e o não ser não pode ser origem do seu nascimento.

20.  Portanto, se Ele não existe no tempo, de tal maneira que tenha deixado de existir, e se também não está no Pai, isto é, no Criador, subsistindo a partir do nada, então não é possível que tenha nascido do nada, nem que não tenha existido antes de nascer.

 

Capítulo 18.

21.  Bem sei que muitos deles têm a mente obscurecida pela impiedade. Sua mente não entende o mistério de Deus e, dominada pelo espírito adverso, simulando professar a verdadeira religião, são levados a caluniar a Deus com furor.

22.  Costumam encher os ouvidos dos mais simples, dizendo: Nós dizemos que o Filho sempre existiu e que nada lhe faltou em tempo algum. Ensinamos que não nasceu porque sempre existiu, porque, em conformidade com o senso comum humano, o que sempre existiu não pode ter nascido, já que a causa de nascer é que venha a existir o que não existia, e o nascimento é o começo da existência do que não era.

23.  Acrescentam ainda esta sentença muito arguta e agradável aos ouvidos: Se nasceu, começou a ser, se começou a ser, não era e, se não era, não se aceita que tenha sido.

24.  Por isso, defendem estar de acordo com a fé sua interpretação, segundo a qual: Não existia antes de nascer; porque o que não existia nasceu para existir, pois não existia. O que existia não precisou nascer, já que nasceu para existir, porque não existia.

 

Capítulo 19.

25.  Em primeiro lugar seria necessário que os homens, que a tudo preferem o conhecimento da ciência religiosa das realidades divinas, quando se mostra a verdade da pregação evangélica e apostólica, rejeitassem as tortuosas questões de uma filosofia astuciosa, e seguissem a fé que tem seu fundamento em Deus; porque o sofisma da interrogação silogística deixa, facilmente, desprotegida a fé de uma inteligência fraca.

26.  A proposição capciosa apresentada em forma de interrogação pode privar de todo o sentido uma resposta simples e condizente com a pergunta, de sorte que aquilo que se perde pela afirmação já não será sentido pela consciência.

27.  Pois o que estaria mais de acordo com a interrogação de quem pergunta se algo existe antes de nascer, do que dizer que não existia antes de nascer?

28.  Nem pela natureza, nem pela necessidade o que é deve nascer, pois nascer é necessário somente para que algo exista e não porque já existe.

29.  Se isto for aceito por nós, porque temos razões para concedê-lo, ficaremos privados da consciência da fé e, já capturados, concordaremos com os ensinamentos ímpios e estranhos.

 

Capítulo 20.

30.  Prevendo isso, o Santo Apóstolo Paulo, como muitas vezes já demonstramos, nos adverte dizendo: Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo o Cristo, no qual habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Cl 2,8-9).

31.  É preciso precaver-se contra a filosofia, e as tradições humanas não devem ser apenas evitadas, mas refutadas. Não se pode permitir que, além de enganar, consigam convencer porque, pregando nós a Cristo, virtude de Deus e sabedoria de Deus, convém-nos não tanto fugir das doutrinas humanas quanto repeli-las.

32.  Aos mais simples, para que não se deixem espoliar, será preciso protegê-los e instruí-los. Já que a sabedoria tudo pode e Deus pode fazer tudo sabiamente, não faltará força à sua razão nem razão à sua força.

33.  É necessário que aqueles que pregam Cristo ao mundo oponham às doutrinas irreligiosas e imperfeitas do mundo a ciência da sábia onipotência, conforme as palavras do bem-aventurado Apóstolo: Nossas armas não são carnais, mas são o poder de Deus para destruir fortalezas. Destroem os raciocínios presunçosos e todo poder altivo que se levanta contra o conhecimento de Deus (2Cor 10,4-5).

34.  O Apóstolo não permite que a fé se veja desarmada e destituída de razão, porque, embora seja importantíssima para a salvação, se não for instruída pela doutrina, oferecerá, na verdade, um refúgio seguro contra a adversidade, mas não conservará sempre a firmeza para resistir.

35.  Será o que é o acampamento para os fracos que, depois da fuga, já não têm a impávida coragem dos invasores. Por isso, devem ser esmagadas as insolentes afirmações contra Deus, destruídos os falazes argumentos e subjugados os espíritos que se elevam com impiedade, não por meio de armas carnais, mas espirituais, não pela doutrina terrena, mas pela sabedoria celeste, de tal modo que o conhecimento das coisas celestes seja tão diferente das invenções terrenas quanto é diferente o divino do humano.

 

Capítulo 21.

36.  Cesse, portanto, esta pérfida solicitude e não julgue que, pele fato de não ser entendido por ela o que somente nós entendemos e cremos corretamente, nós o negamos.

37.  Quando afirmamos ter o Filho nascido, não professamos que não tenha nascido, pois não é a mesma coisa não ter nascido e nascer. Não ter nascido significa não proceder de ninguém, nascer significa vir de outro.

38.  É diferente ser sempre eterno, e ser co-eterno com o Pai, isto é, o Princípio. Onde está o Pai, como princípio, aí há nascimento, e onde o princípio é eterno, há eternidade de nascimento. porque, como o nascimento vem do que é o seu princípio, o nascimento eterno vem do Princípio eterno.

39.  Tudo o que é, sempre, também é eterno. Mas nem tudo o que é eterno é também não nascido, porque o que nasce do eterno é eterno porque nasceu, porém, o que não nasceu não nasceu eternamente. Se, porém, o que nasceu do eterno não nasceu como eterno, o Pai não será o princípio eterno.

40.  Se o que nasceu do Pai eterno não possui a eternidade, também Aquele que é o seu princípio não a possui, porque o que é infinito para o que gera também é infinito para o que nasce.

41.  Nem a razão nem o bom senso admitem um meio termo entre a natividade de Deus Filho e a geração de Deus Pai, porque na geração está o nascimento e, no nascimento, a geração.

42.  Ambos existem inseparavelmente, porque um não existe sem o outro. Portanto, o que não tem consistência a não ser a partir de ambos não pode permanecer senão em ambos, já que um não pode existir sem o outro de modo algum, e não se pode considerar um independentemente do outro.

 

Capítulo 22.

43.  Mas, afirmará alguém, incapaz de entender o mistério: o que nasceu não existia antes, porque para isto nasceu: para ser.

 

Capítulo 23.

44.  Quem duvida, na verdade, de que, no que se refere às coisas humanas, quem nasceu antes não tenha existido? Mas, uma coisa é nascer daquele que não era, outra coisa é nascer daquele que sempre é.

45.  Toda infância, que antes não era, começa a existir do tempo. E ainda, cresce, a partir dela, na puerícia, depois até a adolescência, e chega a tornar-se pai. E aquele que chegou à adolescência, vindo da puerícia, à qual chegou vindo da primeira infância, não foi sempre pai. Portanto, aquele que nem sempre foi pai não gerou sempre.

46.  Onde, porém, o Pai existe sempre, o Filho também existe sempre. Se tens no pensamento ou no coração um Deus, e se ao mistério do seu conhecimento é próprio ser Pai, mas não ser sempre Pai do Filho gerado, também sabes e conheces que Aquele que foi gerado nem sempre é Filho.

47.  Porém, se é próprio do Pai ser sempre Pai, forçoso é que seja sempre próprio do Filho ser Filho. E como se ajustará às nossas palavras e à nossa inteligência que Aquele a quem é próprio sempre ter nascido não tenha existido antes de nascer?

 

Capítulo 24.

48.  O Deus Unigênito, que tem em si a forma e a imagem de Deus invisível, pela plenitude da verdadeira divindade que tem em si, se iguala ao Pai em tudo que é próprio de Deus, pois, como acima ensinamos, por seu poder e dignidade Ele, como o Pai, também é digno de honra e é poderoso.

49.  Como o Pai existe sempre, também o Filho, por ser Filho, existe sempre em comunhão com o Pai. Conforme o que foi dito a Moisés: Enviou-me a vós Aquele que é (Ex 3, 14), não há dúvida de que é próprio de Deus ser, porque não se pode dizer nem entender que o que é não seja.

50.  Ser e não ser são contrários, e estes significados diferentes não podem unir-se em um só e o mesmo, porque, existindo um, não há o outro. Por conseguinte, onde há ser, não podemos pensar nem dizer que não haja nada.

51.  Quando nosso pensamento retrocede até as origens e procura compreender o que é Deus, o próprio fato de ser é anterior a tudo o que se possa pensar, por mais que o pensamento retroceda no tempo ou no espaço, porque o que é infinito em Deus sempre se esquiva ao nosso espírito, que tenta abranger o infinito, e nosso esforço para recuar até o princípio não consegue perceber nada anterior a isto: Deus sempre é.

52.  Quando tentamos avançar para a eternidade, só nos vem ao encontro, para que se possa entender a Deus, o fato de que Ele existe sempre.

53.  Os Evangelhos nos ensinam o mesmo que é dito por Moisés a respeito de Deus, e o bom senso não permite entender nada de diferente. É próprio do Deus Unigênito o ser, porque no princípio era o Verbo, e estava junto de Deus, e era a luz verdadeira. E o Deus Unigênito está no seio do Pai, e Jesus Cristo é Deus sobre todas as coisas.

 

Capítulo 25.

54.  O Verbo era e é porque procede daquele que sempre é o que é. Proceder dele, isto é, do Pai, é nascer dele. E ser sempre, vindo daquele que sempre é, significa eternidade, que não vem de si mesma, mas do eterno.

55.  Do que é eterno, não vem nada que não seja eterno. Se não é eterno, também o Pai, que é o princípio da sua geração, não é eterno. É próprio do Pai ser sempre Pai e é próprio do Filho ser sempre Filho. Como ser significa a eternidade, é próprio dele ser eterno, pela mesma razão pela qual Ele é aquilo que lhe é próprio.

56.  Ninguém tem dúvida de que a geração indica a natividade, e a natividade não indica o que não é, mas sim o que é. Também não se pode duvidar de que quem já existia não nasce, porque não haveria razão para que nascesse Aquele que por si já existe desde sempre.

57.  O Deus Unigênito que também é Sabedoria e Poder de Deus e é o Verbo de Deus, tendo nascido, dá testemunho de que o Pai é seu princípio. Por ter nascido antes dos tempos eternos, com seu nascimento se antecipa a todo o entendimento.

58.  Por isso, não se pode dizer que não existia antes de nascer. Se pudéssemos dizer que não existia antes de nascer, então, a nossa razão e o tempo seriam anteriores ao seu nascimento porque tudo o que não existiu em algum momento está submetido ao tempo e à nossa razão, justamente pelo próprio fato de não ter existido, visto que não ter existido já se refere a um período de tempo.

59.  Aquele, porém, que é desde a eternidade, e sempre existiu, nem existe sem nascer, nem deixou de ser, já que ter existido sempre significa transcender o tempo, e ter nascido significa ser Filho.

 

Capítulo 26.

60.  Professamos, sim, que o Deus Unigênito nasceu, mas nasceu antes dos tempos eternos porque é necessário dar testemunho daquilo a que nos obrigam as palavras dos Apóstolos e dos Profetas.

61.  Contudo, a mente humana não apreende a ideia da natividade intemporal, porque o poder ter nascido antes de todos os tempos não se ajusta às realidades terrenas. Mas como é justamente isso o que nós pregamos e afirmamos, como podemos dizer, segundo a mesma doutrina, que não existia antes de nascer, se, segundo o Apóstolo, o Deus Unigênito existe antes dos tempos eternos? (Cf. 2Tm 1,9; Tt 1,2.) A afirmação de que tenha nascido antes dos tempos eternos não é uma afirmação da razão humana, mas é profissão de fé prudente, porque a natividade vem de um princípio, e o que ultrapassa os tempos é eterno.

62.  A inteligência terrena não apreende o que nasceu antes dos tempos eternos. Por isso exaltamos com ímpia vontade a capacidade da razão humana quando afirmamos, à semelhança do que ocorre no mundo, que não existia antes de ter nascido porque bem além da capacidade de compreensão da mente humana e da inteligência do mundo, nasce o que é eterno. Pois é eterno o que ultrapassa o tempo.

 

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domingo, 18 de fevereiro de 2024

248 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo Segundo (Capítulos 1 - 14)

Demétrius, Genisson, Isaac, Nathalie, Ani, Alex, Gilson, Marisa e Edson

 



248

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo Segundo (Capítulos 1 - 14)

 


 

O livro XII fala do nascimento eterno do Verbo e termina com a Oração que resume a sua fé na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a súplica para que Deus conserve a sua fé. São 57 capítulos.

 

LIVRO DOZE

Capítulo 1.

1.      Dirigimo-nos já, guiados pelo Espírito Santo, para o abrigado e tranquilo porto de uma fé segura.

2.      Como acontece muitas vezes, os que são balançados pelo mar agitado e pelo vento, ao aproximar-se do litoral, são impedidos e retardados por altíssimas ondas, mas, finalmente, são arremessados por um forte e terrível impulso das águas, para a conhecida e segura praia. Espero que o mesmo nos aconteça, neste duodécimo livro, no qual nos esforçamos por lutar contra a tempestade da heresia, opondo-o, como a popa de um navio bem fortificado, às enormes ondas da impiedade, de modo que ela mesma nos empurre para a tranquila e desejada enseada.

3.      Todos foram sacudidos pelo vento da falsa doutrina, daí o medo, daí o perigo, daí, muitas vezes, o naufrágio, porque alguns afirmam que o Deus Unigênito foi chamado pela autoridade profética de criatura, e que Ele não existe por geração, mas por criação, porque, pela Sabedoria, foi dito: O Senhor me criou para o início de seus caminhos (Pr 8,22).

4.      Esta é a maior de suas ondas, esta é a mais forte vaga do tortuoso turbilhão; mas, depois de enfrentada e dominada por nossa poderosa nau, chega conosco ao seguro porto da praia desejada.

 

Capítulo 2.

5.      Não nos apoiamos, porém, em esperanças vagas e ociosas, como navegantes que muitas vezes são conduzidos mais por seus desejos do que pela confiança, ou são abandonados ou impelidos por ventos instáveis.

6.      Nós temos a assistência do Espírito, dom do Deus Unigênito, que nos conduz por um caminho imutável para a tranquilidade, pois afirmamos que o Senhor Jesus Cristo não é criatura, visto que não o é.

7.      Ele é o Senhor de tudo o que foi feito e nós o conhecemos como Deus, Filho verdadeiro, geração de Deus Pai.

8.      Nós, pela condescendência de sua bondade, somos clamados e adotados como filhos de Deus, mas Ele é o verdadeiro e único Filho de Deus Pai, a verdadeira e absoluta natividade, que permanece oculta e somente é conhecida pelos dois.

9.      Nossa fé consiste unicamente em confessar que o Filho não é adotivo, mas nascido; não é eleito, mas gerado. Não o pregamos como feito nem como não nascido, porque nem comparamos o Criador às criaturas, nem enganamos com uma natividade sem geração. Não existe por si mesmo quem existe em virtude do nascimento e quem é Filho não poderá sê-lo, a não ser nascendo, porque é Filho.

 

Capítulo 3.

10.  Ninguém duvida de que as razões da impiedade sejam sempre opostas às razões da verdadeira fé. Não se pode aceitar religiosamente o que se revela ter sido impiamente recebido, como acontece agora com estes novos reformadores da fé apostólica, que dividem e opõem o Espírito evangélico e o profético, e os consideram separados por litígios, dizendo que uns profetizam umas coisas, e outros, outra diferente, porque Salomão nos convida a venerar a criatura, e Paulo censura os que servem à criatura.

11.  Segundo a compreensão da impiedade, estas coisas não parecem combinar, pois para os hereges, o Apóstolo, instruído pela Lei e separado antecipadamente (cf. Gl 1,15) e que falava por Cristo, que nele falava, teria ignorado a profecia, ou, conhecendo-a, tê-la-ia rejeitado.

12.  Não conheceu o Cristo como criatura, ao chamá-lo de criador; e proibiu a adoração à criatura, advertindo que só ao Criador se deve servir: Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e serviram a criatura, deixando de lado o Criador, que é bendito pelos séculos dos séculos (Rm 1,25).

 

Capítulo 4.

13.  Acaso Cristo Deus, que fala em Paulo, não censura fortemente a impiedade de tais mentiras? Condena pouco a mentira que distorce a verdade? Por meio do Senhor Cristo, tudo foi criado e por isso lhe é próprio o nome de criador.

14.  Não convém a Ele a natureza e o nome de sua criatura. Para nós, é testemunha disso Melquisedeque, que anuncia Deus, o criador do céu e da terra: Bendito seja Abraão pelo Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra (Gn 14,19).

15.  Testemunha também é o profeta Oséias: Eu sou o Senhor teu Deus, que firmei e criei a terra, cujas mãos criaram toda a milícia do céu (Os 13,4; LXX). E Pedro escreve: Confiam suas almas ao fiel criador (1Pd 4,19). Por que impor ao artífice o nome da obra? Por que dar nossos nomes a Deus? É nosso Criador, o criador de toda a milícia celeste.

 

Capítulo 5.

16.  Referindo-se estas palavras ao Filho, por quem tudo foi feito (que é o que se deve entender pela fé evangélica e apostólica), como poderá ser Ele igual às coisas que fez e como poderá receber o nome que corresponde à natureza de todas elas?

17.  Em primeiro lugar, o simples bom senso rejeita que o Criador seja criatura porque a criação vem do criador. Mas, se fosse criatura, também estaria sujeito à corrupção, dependendo da esperança, e submetido à escravidão. Pois diz o mesmo santo Apóstolo Paulo: Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade, não por sua vontade, mas pela vontade daquele que a submeteu, na esperança de também ela ser libertada da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus (Rm 8,19-21).

18.  Se, portanto, Cristo for criatura, forçoso será que esteja na incerteza de uma longa expectativa e sua longa espera tenha por objeto o que nós receberemos e que, enquanto espera, esteja submetido à vaidade, e que, sendo a sujeição obrigatória, não lhe seja submetido por sua vontade.

19.  Mas, se não está submetido por sua vontade, então tem de ser necessariamente servo e, sendo servo, permanecerá também na corrupção da natureza, pois tudo isso é próprio da criação, que, ao ser libertada destas coisas pela longa expectativa, será glorificada com a glória humana, conforme ensina o Apóstolo.

20.  Trata-se de uma imprudente e ímpia declaração sobre Deus a que lhe atribui o nome de criatura, de maneira ofensiva, acreditando que esteja obrigado a esperar e servir, que possa ser coagido, que deva ser libertado, naquilo que corresponde a nós, não a Ele, quando nós somos elevados a outra coisa a partir do que pertence a Ele.

 

Capítulo 6.

21.  A impiedade progride e aumenta em falsidade ela audácia desta palavra ilícita. Se o Filho é criatura, o Pai não será diferente da criatura. Cristo, que existia na forma de Deus, assumiu a forma de servo, mas se é criatura, o que existe na forma de Deus não é distinto da criatura, porque a criatura está na forma de Deus.

22.  Mas existir na forma de Deus não significa outra coisa senão permanecer na natureza de Deus. Sendo assim, Deus também seria criatura, porque a criatura existe na sua natureza.

23.  Porém, Aquele que existia na forma de Deus não reteve ciosamente o ser igual Deus, porque, sendo igual a Deus, isto é, existindo na forma de Deus, rebaixou-se até a forma de servo.

24.  Não podia rebaixar-se de Deus para ser Homem, a não ser que se esvaziasse da forma de Deus. Mas ao esvaziar-se de si mesmo não se aniquilou, de forma a não existir, pois passou a ser algo diferente do que era.

25.  Nem deixou de ser o que era, por ter-se esvaziado de si mesmo, já que o poder de sua força permanece no mesmo poder esvaziar-se de si mesmo. Passar para a forma de servo não significa perder a natureza de Deus, pois esvaziar-se da forma de Deus manifesta o poder da força divina.

 

Capítulo 7.

26.  Existir na forma de Deus não é diferente de ser igual a Deus, de sorte que a mesma honra é devida ao Pai e ao Senhor Jesus Cristo, como Ele mesmo disse: Para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou (Jo 5,23).

27.  Não há diversidade entre os seres, se não há diversidade na honra que lhes é devida. São objeto da mesma veneração, porque ou a honra é prestada, indignamente, a inferiores, ou, com injúria, aos superiores, por serem igualados a inferiores, na honra.

28.  Quanto ao Filho, se existe por criação em vez de nascimento e é igualado em honra ao Pai, não se prestará a honra devida ao Pai, pois, lhe foi prestada tanta veneração quanto à criatura; mas, porque é igual ao Deus Pai pelo motivo de ter nascido dele, como Deus, será também igual a Ele na honra, porque é Filho, não é criatura.

 

Capítulo 8.

29.  Sobre isto a admirável palavra do Pai é: Do seio antes da luz, Eu te gerei (Sl 109,5). Como já dissemos muitas vezes, devido à fraqueza da nossa inteligência, não podemos emitir julgamentos sobre Deus.

30.  Não podemos pensar que, por ter dito que o gerou de seu seio, consiste de partes internas e externas unidas pelos membros, como acontece com os corpos que se originam das causas materiais, pois o Senhor de todas as coisas acha-se absolutamente livre em relação às leis que regem as causas naturais.

31.  Com estas palavras indica a propriedade do nascimento de seu Unigênito, decorrente do poder de sua imutável natureza. Pois, nascendo Espírito do Espírito, nasce com a propriedade do Espírito, pela qual também Ele é Espírito, porém não há outra causa do seu nascimento, a não ser aquela dos princípios perfeitos e imutáveis.

32.  Nascendo de um princípio, embora perfeito e imutável, é forçoso que, a partir deste princípio, nasça com as características deste princípio.

33.  Pelas características da natureza humana, o nascimento se dá a partir do seio materno. Mas Deus é perfeito, sem partes, e imutável pela sua natureza espiritual, porque Deus é Espírito (Jo 4,24) e não está submetido à necessidade natural de causas internas.

34.  Contudo, porque anunciava a natividade do Espírito a partir do Espírito, quis instruir nossa inteligência pelo exemplo tirado das causas materiais, não para indicar-nos como se dá a natividade, mas para que se compreenda a geração, de modo tal que este exemplo não mostre uma necessidade, mas esclareça o seu sentido. Se, portanto, o Deus Unigênito fosse criatura, que quereria dizer esta comparação, que, a partir do modo normal do nascimento humano propõe uma ideia da divina geração?

 

Capítulo 9.

35.  Muitas vezes, pela comparação com os membros de nossos corpos e pelo uso dos modos comuns de entendimento, Deus quis mostrar a importância de suas operações, a nós, a quem queria ensinar.

36.  Assim disse: Cujas mãos criaram toda a milícia do céu (Os 13,4); ou: Os olhos do Senhor estão sobre os justos (Sl 34,16), e de novo: Encontrei Davi, filho de Jessé, varão segundo o meu coração (1Sm 13,14; At 13,22).

37.  A vontade é indicada pelo coração, ao qual Davi agradou pela probidade dos costumes o conhecimento de todas as coisas, pelo qual nada está fora da ciência de Deus, se enunciou com a palavra olhos; a eficácia de suas ações, já que tudo vem de Deus, foi comparada às mãos.

38.  Pela comparação com os órgãos do corpo devemos compreender que Deus quer, prevê e realiza todas as coisas sem o uso dos membros corporais. Ao dizer que gerou do seu seio, deve-se entender que se trata de um nascimento que não se dá a partir de um princípio corporal, do mesmo modo que a referência a outros membros do corpo aponta para o efeito de outras ações divinas.

 

Capítulo 10.

39.  O coração significa a vontade, os olhos a visão, a mão a realização; no entanto, Deus quer, prevê e realiza de um modo que vai muito além da comparação incompleta com os membros do corpo.

40.  As palavras coração, olhos, mãos expressam o que foi sugerido. Por que então a afirmação de que gerou de seu seio não mostra a verdadeira natividade? Não se quer dizer que Deus tenha gerado de seu seio, pois também não age com as mãos, não vê com os olhos, não quer com o coração, mas com esta comparação se indica que tudo realiza, vê e quer.

41.  Assim também pela menção do seio se demonstra que verdadeiramente gerou de si mesmo aquele a quem gerou, não para insistir na palavra seio, mas para afirmar a verdade, assim como não é por meio de membros do corpo que Deus quer, vê ou age.

42.  Os nomes desses membros se empregam para que, por meio das ações corporais, aprendamos o valor de suas operações.

 

Capítulo 11.

43.  Os costumes humanos não permitem, e a palavra do Senhor não aceita que o discípulo passe à frente do mestre, ou que o servo dê ordens ao senhor, porque um se submete ao outro, seja pela ignorância, como o ignorante ao conhecedor, seja pela fraqueza de sua condição, como o servidor ao senhor que domina.

44.  Sendo assim o modo comum de julgar, como diremos agora que Deus é criatura e que o Filho foi feito por Deus, quando nunca o nosso mestre e Senhor disse tal coisa de si mesmo a nós, seus servidores e discípulos, nem ensinou que seu nascimento tenha sido uma criação ou que Ele tenha sido feito? Também o Pai jamais declarou outra coisa a não ser que Ele (o Cristo) é o Filho, e o Filho afirmou unicamente que o Pai é seu próprio Pai, e que nasceu e não foi feito nem criado, quando disse: Aquele que ama o Pai, ama também o Filho, que dele nasceu (1Jo 5,1).

 

Capítulo 12.

45.  O que foi feito é criatura, não é filho, nascido por geração. O céu não é filho, a terra não é filha, e o mundo não nasceu. Sobre eles se disse: Tudo foi feito por Ele (Jo 1,3), e o Profeta disse: Os céus são obras de tuas mãos (Sl 101,26).

46.  Também disse o mesmo Profeta: Não abandones a obra de tuas mãos (Sl 137,8). Será acaso a pintura filha do pintor, o ferreiro terá por filha a espada, a casa será filha do arquiteto? Todas essas coisas são obra dos que as fabricam; mas o Pai tem somente um Filho, que nasceu dele.

 

Capítulo 13.

47.  Quanto a nós, na verdade, somos filhos para Deus, mas porque fomos feitos filhos. Pois, em certo tempo, fomos filhos da ira (Ef 2,3) e fomos feitos filhos para Deus pelo Espírito de adoção (cf. Rm 8,14-17), e, antes, somos filhos porque foi-nos concedido ser chamados de filhos, do que pelo fato de termos nascido.

48.  E porque tudo o que se faz, antes de ser feito, não existia, como não éramos filhos de Deus, fomos feitos o que somos. Antes não éramos filhos, mas, depois que nos foi concedido ser filhos, nós o somos.

49.  Não o somos por nascimento, mas porque fomos feitos filhos, não enquanto gerados, mas como adquiridos. Pois Deus adquiriu para si um povo (cf. 1Pd 2,9) e por isso nos gerou. Que Deus tenha gerado filhos, mas nunca no sentido de serem filhos por natureza, bem o sabemos, pois não disse: Gerei e exaltei meus filhos, mas: Gerei filhos e os exaltei (Is 1,2).

 

Capítulo 14.

50.  Por causa das palavras: Filho primogênito meu, Israel (Ex 4,22), talvez alguém entenda que tenha dito primogênito meu para negar ao Filho a geração que lhe é própria. Por ter dito também: meu em relação a Israel, não teria sido substituída pela geração a adoção dos que foram feitos filhos?

51.  E por isso não seria próprio somente do Filho de Deus o que dele se disse: Este é o meu Filho dileto (Mt 17,5), já que meu foi dito a respeito daqueles que, é evidente, não nasceram de Deus. Que não nasceram como filhos, apesar de serem assim chamados, também se vê por aquilo que foi dito: O povo que há de nascer, que o Senhor fez (Sl 21,32).

 

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