domingo, 18 de fevereiro de 2024

248 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo Segundo (Capítulos 1 - 14)

Demétrius, Genisson, Isaac, Nathalie, Ani, Alex, Gilson, Marisa e Edson

 



248

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo Segundo (Capítulos 1 - 14)

 


 

O livro XII fala do nascimento eterno do Verbo e termina com a Oração que resume a sua fé na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a súplica para que Deus conserve a sua fé. São 57 capítulos.

 

LIVRO DOZE

Capítulo 1.

1.      Dirigimo-nos já, guiados pelo Espírito Santo, para o abrigado e tranquilo porto de uma fé segura.

2.      Como acontece muitas vezes, os que são balançados pelo mar agitado e pelo vento, ao aproximar-se do litoral, são impedidos e retardados por altíssimas ondas, mas, finalmente, são arremessados por um forte e terrível impulso das águas, para a conhecida e segura praia. Espero que o mesmo nos aconteça, neste duodécimo livro, no qual nos esforçamos por lutar contra a tempestade da heresia, opondo-o, como a popa de um navio bem fortificado, às enormes ondas da impiedade, de modo que ela mesma nos empurre para a tranquila e desejada enseada.

3.      Todos foram sacudidos pelo vento da falsa doutrina, daí o medo, daí o perigo, daí, muitas vezes, o naufrágio, porque alguns afirmam que o Deus Unigênito foi chamado pela autoridade profética de criatura, e que Ele não existe por geração, mas por criação, porque, pela Sabedoria, foi dito: O Senhor me criou para o início de seus caminhos (Pr 8,22).

4.      Esta é a maior de suas ondas, esta é a mais forte vaga do tortuoso turbilhão; mas, depois de enfrentada e dominada por nossa poderosa nau, chega conosco ao seguro porto da praia desejada.

 

Capítulo 2.

5.      Não nos apoiamos, porém, em esperanças vagas e ociosas, como navegantes que muitas vezes são conduzidos mais por seus desejos do que pela confiança, ou são abandonados ou impelidos por ventos instáveis.

6.      Nós temos a assistência do Espírito, dom do Deus Unigênito, que nos conduz por um caminho imutável para a tranquilidade, pois afirmamos que o Senhor Jesus Cristo não é criatura, visto que não o é.

7.      Ele é o Senhor de tudo o que foi feito e nós o conhecemos como Deus, Filho verdadeiro, geração de Deus Pai.

8.      Nós, pela condescendência de sua bondade, somos clamados e adotados como filhos de Deus, mas Ele é o verdadeiro e único Filho de Deus Pai, a verdadeira e absoluta natividade, que permanece oculta e somente é conhecida pelos dois.

9.      Nossa fé consiste unicamente em confessar que o Filho não é adotivo, mas nascido; não é eleito, mas gerado. Não o pregamos como feito nem como não nascido, porque nem comparamos o Criador às criaturas, nem enganamos com uma natividade sem geração. Não existe por si mesmo quem existe em virtude do nascimento e quem é Filho não poderá sê-lo, a não ser nascendo, porque é Filho.

 

Capítulo 3.

10.  Ninguém duvida de que as razões da impiedade sejam sempre opostas às razões da verdadeira fé. Não se pode aceitar religiosamente o que se revela ter sido impiamente recebido, como acontece agora com estes novos reformadores da fé apostólica, que dividem e opõem o Espírito evangélico e o profético, e os consideram separados por litígios, dizendo que uns profetizam umas coisas, e outros, outra diferente, porque Salomão nos convida a venerar a criatura, e Paulo censura os que servem à criatura.

11.  Segundo a compreensão da impiedade, estas coisas não parecem combinar, pois para os hereges, o Apóstolo, instruído pela Lei e separado antecipadamente (cf. Gl 1,15) e que falava por Cristo, que nele falava, teria ignorado a profecia, ou, conhecendo-a, tê-la-ia rejeitado.

12.  Não conheceu o Cristo como criatura, ao chamá-lo de criador; e proibiu a adoração à criatura, advertindo que só ao Criador se deve servir: Trocaram a verdade de Deus pela mentira, e serviram a criatura, deixando de lado o Criador, que é bendito pelos séculos dos séculos (Rm 1,25).

 

Capítulo 4.

13.  Acaso Cristo Deus, que fala em Paulo, não censura fortemente a impiedade de tais mentiras? Condena pouco a mentira que distorce a verdade? Por meio do Senhor Cristo, tudo foi criado e por isso lhe é próprio o nome de criador.

14.  Não convém a Ele a natureza e o nome de sua criatura. Para nós, é testemunha disso Melquisedeque, que anuncia Deus, o criador do céu e da terra: Bendito seja Abraão pelo Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra (Gn 14,19).

15.  Testemunha também é o profeta Oséias: Eu sou o Senhor teu Deus, que firmei e criei a terra, cujas mãos criaram toda a milícia do céu (Os 13,4; LXX). E Pedro escreve: Confiam suas almas ao fiel criador (1Pd 4,19). Por que impor ao artífice o nome da obra? Por que dar nossos nomes a Deus? É nosso Criador, o criador de toda a milícia celeste.

 

Capítulo 5.

16.  Referindo-se estas palavras ao Filho, por quem tudo foi feito (que é o que se deve entender pela fé evangélica e apostólica), como poderá ser Ele igual às coisas que fez e como poderá receber o nome que corresponde à natureza de todas elas?

17.  Em primeiro lugar, o simples bom senso rejeita que o Criador seja criatura porque a criação vem do criador. Mas, se fosse criatura, também estaria sujeito à corrupção, dependendo da esperança, e submetido à escravidão. Pois diz o mesmo santo Apóstolo Paulo: Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade, não por sua vontade, mas pela vontade daquele que a submeteu, na esperança de também ela ser libertada da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus (Rm 8,19-21).

18.  Se, portanto, Cristo for criatura, forçoso será que esteja na incerteza de uma longa expectativa e sua longa espera tenha por objeto o que nós receberemos e que, enquanto espera, esteja submetido à vaidade, e que, sendo a sujeição obrigatória, não lhe seja submetido por sua vontade.

19.  Mas, se não está submetido por sua vontade, então tem de ser necessariamente servo e, sendo servo, permanecerá também na corrupção da natureza, pois tudo isso é próprio da criação, que, ao ser libertada destas coisas pela longa expectativa, será glorificada com a glória humana, conforme ensina o Apóstolo.

20.  Trata-se de uma imprudente e ímpia declaração sobre Deus a que lhe atribui o nome de criatura, de maneira ofensiva, acreditando que esteja obrigado a esperar e servir, que possa ser coagido, que deva ser libertado, naquilo que corresponde a nós, não a Ele, quando nós somos elevados a outra coisa a partir do que pertence a Ele.

 

Capítulo 6.

21.  A impiedade progride e aumenta em falsidade ela audácia desta palavra ilícita. Se o Filho é criatura, o Pai não será diferente da criatura. Cristo, que existia na forma de Deus, assumiu a forma de servo, mas se é criatura, o que existe na forma de Deus não é distinto da criatura, porque a criatura está na forma de Deus.

22.  Mas existir na forma de Deus não significa outra coisa senão permanecer na natureza de Deus. Sendo assim, Deus também seria criatura, porque a criatura existe na sua natureza.

23.  Porém, Aquele que existia na forma de Deus não reteve ciosamente o ser igual Deus, porque, sendo igual a Deus, isto é, existindo na forma de Deus, rebaixou-se até a forma de servo.

24.  Não podia rebaixar-se de Deus para ser Homem, a não ser que se esvaziasse da forma de Deus. Mas ao esvaziar-se de si mesmo não se aniquilou, de forma a não existir, pois passou a ser algo diferente do que era.

25.  Nem deixou de ser o que era, por ter-se esvaziado de si mesmo, já que o poder de sua força permanece no mesmo poder esvaziar-se de si mesmo. Passar para a forma de servo não significa perder a natureza de Deus, pois esvaziar-se da forma de Deus manifesta o poder da força divina.

 

Capítulo 7.

26.  Existir na forma de Deus não é diferente de ser igual a Deus, de sorte que a mesma honra é devida ao Pai e ao Senhor Jesus Cristo, como Ele mesmo disse: Para que todos honrem o Filho, assim como honram o Pai. Quem não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou (Jo 5,23).

27.  Não há diversidade entre os seres, se não há diversidade na honra que lhes é devida. São objeto da mesma veneração, porque ou a honra é prestada, indignamente, a inferiores, ou, com injúria, aos superiores, por serem igualados a inferiores, na honra.

28.  Quanto ao Filho, se existe por criação em vez de nascimento e é igualado em honra ao Pai, não se prestará a honra devida ao Pai, pois, lhe foi prestada tanta veneração quanto à criatura; mas, porque é igual ao Deus Pai pelo motivo de ter nascido dele, como Deus, será também igual a Ele na honra, porque é Filho, não é criatura.

 

Capítulo 8.

29.  Sobre isto a admirável palavra do Pai é: Do seio antes da luz, Eu te gerei (Sl 109,5). Como já dissemos muitas vezes, devido à fraqueza da nossa inteligência, não podemos emitir julgamentos sobre Deus.

30.  Não podemos pensar que, por ter dito que o gerou de seu seio, consiste de partes internas e externas unidas pelos membros, como acontece com os corpos que se originam das causas materiais, pois o Senhor de todas as coisas acha-se absolutamente livre em relação às leis que regem as causas naturais.

31.  Com estas palavras indica a propriedade do nascimento de seu Unigênito, decorrente do poder de sua imutável natureza. Pois, nascendo Espírito do Espírito, nasce com a propriedade do Espírito, pela qual também Ele é Espírito, porém não há outra causa do seu nascimento, a não ser aquela dos princípios perfeitos e imutáveis.

32.  Nascendo de um princípio, embora perfeito e imutável, é forçoso que, a partir deste princípio, nasça com as características deste princípio.

33.  Pelas características da natureza humana, o nascimento se dá a partir do seio materno. Mas Deus é perfeito, sem partes, e imutável pela sua natureza espiritual, porque Deus é Espírito (Jo 4,24) e não está submetido à necessidade natural de causas internas.

34.  Contudo, porque anunciava a natividade do Espírito a partir do Espírito, quis instruir nossa inteligência pelo exemplo tirado das causas materiais, não para indicar-nos como se dá a natividade, mas para que se compreenda a geração, de modo tal que este exemplo não mostre uma necessidade, mas esclareça o seu sentido. Se, portanto, o Deus Unigênito fosse criatura, que quereria dizer esta comparação, que, a partir do modo normal do nascimento humano propõe uma ideia da divina geração?

 

Capítulo 9.

35.  Muitas vezes, pela comparação com os membros de nossos corpos e pelo uso dos modos comuns de entendimento, Deus quis mostrar a importância de suas operações, a nós, a quem queria ensinar.

36.  Assim disse: Cujas mãos criaram toda a milícia do céu (Os 13,4); ou: Os olhos do Senhor estão sobre os justos (Sl 34,16), e de novo: Encontrei Davi, filho de Jessé, varão segundo o meu coração (1Sm 13,14; At 13,22).

37.  A vontade é indicada pelo coração, ao qual Davi agradou pela probidade dos costumes o conhecimento de todas as coisas, pelo qual nada está fora da ciência de Deus, se enunciou com a palavra olhos; a eficácia de suas ações, já que tudo vem de Deus, foi comparada às mãos.

38.  Pela comparação com os órgãos do corpo devemos compreender que Deus quer, prevê e realiza todas as coisas sem o uso dos membros corporais. Ao dizer que gerou do seu seio, deve-se entender que se trata de um nascimento que não se dá a partir de um princípio corporal, do mesmo modo que a referência a outros membros do corpo aponta para o efeito de outras ações divinas.

 

Capítulo 10.

39.  O coração significa a vontade, os olhos a visão, a mão a realização; no entanto, Deus quer, prevê e realiza de um modo que vai muito além da comparação incompleta com os membros do corpo.

40.  As palavras coração, olhos, mãos expressam o que foi sugerido. Por que então a afirmação de que gerou de seu seio não mostra a verdadeira natividade? Não se quer dizer que Deus tenha gerado de seu seio, pois também não age com as mãos, não vê com os olhos, não quer com o coração, mas com esta comparação se indica que tudo realiza, vê e quer.

41.  Assim também pela menção do seio se demonstra que verdadeiramente gerou de si mesmo aquele a quem gerou, não para insistir na palavra seio, mas para afirmar a verdade, assim como não é por meio de membros do corpo que Deus quer, vê ou age.

42.  Os nomes desses membros se empregam para que, por meio das ações corporais, aprendamos o valor de suas operações.

 

Capítulo 11.

43.  Os costumes humanos não permitem, e a palavra do Senhor não aceita que o discípulo passe à frente do mestre, ou que o servo dê ordens ao senhor, porque um se submete ao outro, seja pela ignorância, como o ignorante ao conhecedor, seja pela fraqueza de sua condição, como o servidor ao senhor que domina.

44.  Sendo assim o modo comum de julgar, como diremos agora que Deus é criatura e que o Filho foi feito por Deus, quando nunca o nosso mestre e Senhor disse tal coisa de si mesmo a nós, seus servidores e discípulos, nem ensinou que seu nascimento tenha sido uma criação ou que Ele tenha sido feito? Também o Pai jamais declarou outra coisa a não ser que Ele (o Cristo) é o Filho, e o Filho afirmou unicamente que o Pai é seu próprio Pai, e que nasceu e não foi feito nem criado, quando disse: Aquele que ama o Pai, ama também o Filho, que dele nasceu (1Jo 5,1).

 

Capítulo 12.

45.  O que foi feito é criatura, não é filho, nascido por geração. O céu não é filho, a terra não é filha, e o mundo não nasceu. Sobre eles se disse: Tudo foi feito por Ele (Jo 1,3), e o Profeta disse: Os céus são obras de tuas mãos (Sl 101,26).

46.  Também disse o mesmo Profeta: Não abandones a obra de tuas mãos (Sl 137,8). Será acaso a pintura filha do pintor, o ferreiro terá por filha a espada, a casa será filha do arquiteto? Todas essas coisas são obra dos que as fabricam; mas o Pai tem somente um Filho, que nasceu dele.

 

Capítulo 13.

47.  Quanto a nós, na verdade, somos filhos para Deus, mas porque fomos feitos filhos. Pois, em certo tempo, fomos filhos da ira (Ef 2,3) e fomos feitos filhos para Deus pelo Espírito de adoção (cf. Rm 8,14-17), e, antes, somos filhos porque foi-nos concedido ser chamados de filhos, do que pelo fato de termos nascido.

48.  E porque tudo o que se faz, antes de ser feito, não existia, como não éramos filhos de Deus, fomos feitos o que somos. Antes não éramos filhos, mas, depois que nos foi concedido ser filhos, nós o somos.

49.  Não o somos por nascimento, mas porque fomos feitos filhos, não enquanto gerados, mas como adquiridos. Pois Deus adquiriu para si um povo (cf. 1Pd 2,9) e por isso nos gerou. Que Deus tenha gerado filhos, mas nunca no sentido de serem filhos por natureza, bem o sabemos, pois não disse: Gerei e exaltei meus filhos, mas: Gerei filhos e os exaltei (Is 1,2).

 

Capítulo 14.

50.  Por causa das palavras: Filho primogênito meu, Israel (Ex 4,22), talvez alguém entenda que tenha dito primogênito meu para negar ao Filho a geração que lhe é própria. Por ter dito também: meu em relação a Israel, não teria sido substituída pela geração a adoção dos que foram feitos filhos?

51.  E por isso não seria próprio somente do Filho de Deus o que dele se disse: Este é o meu Filho dileto (Mt 17,5), já que meu foi dito a respeito daqueles que, é evidente, não nasceram de Deus. Que não nasceram como filhos, apesar de serem assim chamados, também se vê por aquilo que foi dito: O povo que há de nascer, que o Senhor fez (Sl 21,32).

 

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