Hilário de Poitiers (315-368)
O
Tratado da Santíssima Trindade
Livro Décimo Segundo (Capítulos
1 - 14)
O livro XII fala do
nascimento eterno do Verbo e termina com a Oração que resume a sua fé na
Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a súplica para que Deus conserve a
sua fé. São 57
capítulos.
LIVRO DOZE
Capítulo 1.
1.
Dirigimo-nos
já, guiados pelo Espírito Santo, para o abrigado e tranquilo porto de uma fé
segura.
2.
Como
acontece muitas vezes, os que são balançados pelo mar agitado e pelo vento, ao
aproximar-se do litoral, são impedidos e retardados por altíssimas ondas, mas,
finalmente, são arremessados por um forte e terrível impulso das águas, para a
conhecida e segura praia. Espero que o mesmo nos aconteça, neste duodécimo
livro, no qual nos esforçamos por lutar contra a tempestade da heresia,
opondo-o, como a popa de um navio bem fortificado, às enormes ondas da
impiedade, de modo que ela mesma nos empurre para a tranquila e desejada
enseada.
3.
Todos
foram sacudidos pelo vento da falsa doutrina, daí o medo, daí o perigo, daí,
muitas vezes, o naufrágio, porque alguns afirmam que o Deus Unigênito foi
chamado pela autoridade profética de criatura, e que Ele não existe por
geração, mas por criação, porque, pela Sabedoria, foi dito: O Senhor me
criou para o início de seus caminhos (Pr 8,22).
4.
Esta
é a maior de suas ondas, esta é a mais forte vaga do tortuoso turbilhão; mas,
depois de enfrentada e dominada por nossa poderosa nau, chega conosco ao seguro
porto da praia desejada.
Capítulo 2.
5.
Não
nos apoiamos, porém, em esperanças vagas e ociosas, como navegantes que muitas
vezes são conduzidos mais por seus desejos do que pela confiança, ou são
abandonados ou impelidos por ventos instáveis.
6.
Nós
temos a assistência do Espírito, dom do Deus Unigênito, que nos conduz por um
caminho imutável para a tranquilidade, pois afirmamos que o Senhor Jesus Cristo
não é criatura, visto que não o é.
7.
Ele
é o Senhor de tudo o que foi feito e nós o conhecemos como Deus, Filho
verdadeiro, geração de Deus Pai.
8.
Nós,
pela condescendência de sua bondade, somos clamados e adotados como filhos de
Deus, mas Ele é o verdadeiro e único Filho de Deus Pai, a verdadeira e absoluta
natividade, que permanece oculta e somente é conhecida pelos dois.
9.
Nossa
fé consiste unicamente em confessar que o Filho não é adotivo, mas nascido; não
é eleito, mas gerado. Não o pregamos como feito nem como não nascido, porque
nem comparamos o Criador às criaturas, nem enganamos com uma natividade sem
geração. Não existe por si mesmo quem existe em virtude do nascimento e quem é
Filho não poderá sê-lo, a não ser nascendo, porque é Filho.
Capítulo 3.
10.
Ninguém
duvida de que as razões da impiedade sejam sempre opostas às razões da
verdadeira fé. Não se pode aceitar religiosamente o que se revela ter sido
impiamente recebido, como acontece agora com estes novos reformadores da fé apostólica,
que dividem e opõem o Espírito evangélico e o profético, e os consideram
separados por litígios, dizendo que uns profetizam umas coisas, e outros, outra
diferente, porque Salomão nos convida a venerar a criatura, e Paulo censura os
que servem à criatura.
11.
Segundo
a compreensão da impiedade, estas coisas não parecem combinar, pois para os
hereges, o Apóstolo, instruído pela Lei e separado antecipadamente (cf. Gl
1,15) e que falava por Cristo, que nele falava, teria ignorado a profecia, ou,
conhecendo-a, tê-la-ia rejeitado.
12.
Não
conheceu o Cristo como criatura, ao chamá-lo de criador; e
proibiu a adoração à criatura, advertindo que só ao Criador se deve servir: Trocaram
a verdade de Deus pela mentira, e serviram a criatura, deixando de lado o
Criador, que é bendito pelos séculos dos séculos (Rm 1,25).
Capítulo 4.
13.
Acaso
Cristo Deus, que fala em Paulo, não censura fortemente a impiedade de tais
mentiras? Condena pouco a mentira que distorce a verdade? Por meio do Senhor
Cristo, tudo foi criado e por isso lhe é próprio o nome de criador.
14.
Não
convém a Ele a natureza e o nome de sua criatura. Para nós, é testemunha disso
Melquisedeque, que anuncia Deus, o criador do céu e da terra: Bendito seja
Abraão pelo Deus Altíssimo, que criou o céu e a terra (Gn 14,19).
15.
Testemunha
também é o profeta Oséias: Eu sou o Senhor teu Deus, que firmei e criei a
terra, cujas mãos criaram toda a milícia do céu (Os 13,4; LXX). E Pedro
escreve: Confiam suas almas ao fiel criador (1Pd 4,19). Por que impor ao
artífice o nome da obra? Por que dar nossos nomes a Deus? É nosso Criador, o
criador de toda a milícia celeste.
Capítulo 5.
16.
Referindo-se
estas palavras ao Filho, por quem tudo foi feito (que é o que se deve entender
pela fé evangélica e apostólica), como poderá ser Ele igual às coisas que fez e
como poderá receber o nome que corresponde à natureza de todas elas?
17.
Em
primeiro lugar, o simples bom senso rejeita que o Criador seja criatura porque
a criação vem do criador. Mas, se fosse criatura, também estaria sujeito à
corrupção, dependendo da esperança, e submetido à escravidão. Pois diz o mesmo
santo Apóstolo Paulo: Pois a criação em expectativa anseia pela revelação
dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade, não por sua
vontade, mas pela vontade daquele que a submeteu, na esperança de também ela
ser libertada da escravidão da corrupção, para entrar na liberdade da glória
dos filhos de Deus (Rm 8,19-21).
18.
Se,
portanto, Cristo for criatura, forçoso será que esteja na incerteza de uma
longa expectativa e sua longa espera tenha por objeto o que nós receberemos e
que, enquanto espera, esteja submetido à vaidade, e que, sendo a sujeição
obrigatória, não lhe seja submetido por sua vontade.
19.
Mas,
se não está submetido por sua vontade, então tem de ser necessariamente servo
e, sendo servo, permanecerá também na corrupção da natureza, pois tudo isso é
próprio da criação, que, ao ser libertada destas coisas pela longa expectativa,
será glorificada com a glória humana, conforme ensina o Apóstolo.
20.
Trata-se
de uma imprudente e ímpia declaração sobre Deus a que lhe atribui o nome de criatura,
de maneira ofensiva, acreditando que esteja obrigado a esperar e servir, que
possa ser coagido, que deva ser libertado, naquilo que corresponde a nós, não a
Ele, quando nós somos elevados a outra coisa a partir do que pertence a Ele.
Capítulo 6.
21.
A
impiedade progride e aumenta em falsidade ela audácia desta palavra ilícita. Se
o Filho é criatura, o Pai não será diferente da criatura. Cristo, que existia
na forma de Deus, assumiu a forma de servo, mas se é criatura, o que existe na
forma de Deus não é distinto da criatura, porque a criatura está na forma de
Deus.
22.
Mas
existir na forma de Deus não significa outra coisa senão permanecer na natureza
de Deus. Sendo assim, Deus também seria criatura, porque a criatura existe na
sua natureza.
23.
Porém,
Aquele que existia na forma de Deus não reteve ciosamente o ser igual Deus,
porque, sendo igual a Deus, isto é, existindo na forma de Deus, rebaixou-se até
a forma de servo.
24.
Não
podia rebaixar-se de Deus para ser Homem, a não ser que se esvaziasse da forma
de Deus. Mas ao esvaziar-se de si mesmo não se aniquilou, de forma a não
existir, pois passou a ser algo diferente do que era.
25.
Nem
deixou de ser o que era, por ter-se esvaziado de si mesmo, já que o poder de
sua força permanece no mesmo poder esvaziar-se de si mesmo. Passar para a forma
de servo não significa perder a natureza de Deus, pois esvaziar-se da forma de
Deus manifesta o poder da força divina.
Capítulo 7.
26.
Existir na forma de Deus não é diferente de
ser igual a Deus, de sorte que a mesma honra é devida ao Pai e ao Senhor Jesus
Cristo, como Ele mesmo disse: Para que todos honrem o Filho, assim como
honram o Pai. Quem não honra o Filho, também não honra o Pai que o enviou (Jo
5,23).
27.
Não
há diversidade entre os seres, se não há diversidade na honra que lhes é
devida. São objeto da mesma veneração, porque ou a honra é prestada,
indignamente, a inferiores, ou, com injúria, aos superiores, por serem
igualados a inferiores, na honra.
28.
Quanto
ao Filho, se existe por criação em vez de nascimento e é igualado em honra ao
Pai, não se prestará a honra devida ao Pai, pois, lhe foi prestada tanta
veneração quanto à criatura; mas, porque é igual ao Deus Pai pelo motivo de ter
nascido dele, como Deus, será também igual a Ele na honra, porque é Filho, não
é criatura.
Capítulo 8.
29.
Sobre
isto a admirável palavra do Pai é: Do seio antes da luz, Eu te gerei (Sl
109,5). Como já dissemos muitas vezes, devido à fraqueza da nossa inteligência,
não podemos emitir julgamentos sobre Deus.
30.
Não
podemos pensar que, por ter dito que o gerou de seu seio, consiste de partes
internas e externas unidas pelos membros, como acontece com os corpos que se
originam das causas materiais, pois o Senhor de todas as coisas acha-se
absolutamente livre em relação às leis que regem as causas naturais.
31.
Com
estas palavras indica a propriedade do nascimento de seu Unigênito, decorrente
do poder de sua imutável natureza. Pois, nascendo Espírito do Espírito,
nasce com a propriedade do Espírito, pela qual também Ele é Espírito, porém não
há outra causa do seu nascimento, a não ser aquela dos princípios perfeitos e
imutáveis.
32.
Nascendo
de um princípio, embora perfeito e imutável, é forçoso que, a partir deste
princípio, nasça com as características deste princípio.
33.
Pelas
características da natureza humana, o nascimento se dá a partir do seio
materno. Mas Deus é perfeito, sem partes, e imutável pela sua natureza
espiritual, porque Deus é Espírito (Jo 4,24) e não está submetido à
necessidade natural de causas internas.
34.
Contudo,
porque anunciava a natividade do Espírito a partir do Espírito, quis instruir
nossa inteligência pelo exemplo tirado das causas materiais, não para
indicar-nos como se dá a natividade, mas para que se compreenda a geração, de
modo tal que este exemplo não mostre uma necessidade, mas esclareça o seu
sentido. Se, portanto, o Deus Unigênito fosse criatura, que quereria dizer esta
comparação, que, a partir do modo normal do nascimento humano propõe uma ideia
da divina geração?
Capítulo 9.
35.
Muitas
vezes, pela comparação com os membros de nossos corpos e pelo uso dos modos
comuns de entendimento, Deus quis mostrar a importância de suas operações, a
nós, a quem queria ensinar.
36.
Assim
disse: Cujas mãos criaram toda a milícia do céu (Os 13,4); ou: Os
olhos do Senhor estão sobre os justos (Sl 34,16), e de novo: Encontrei
Davi, filho de Jessé, varão segundo o meu coração (1Sm 13,14; At 13,22).
37.
A
vontade é indicada pelo coração, ao qual Davi agradou pela probidade dos
costumes o conhecimento de todas as coisas, pelo qual nada está fora da ciência
de Deus, se enunciou com a palavra olhos; a eficácia de suas ações, já
que tudo vem de Deus, foi comparada às mãos.
38.
Pela
comparação com os órgãos do corpo devemos compreender que Deus quer, prevê e
realiza todas as coisas sem o uso dos membros corporais. Ao dizer que gerou do
seu seio, deve-se entender que se trata de um nascimento que não se dá a partir
de um princípio corporal, do mesmo modo que a referência a outros membros do
corpo aponta para o efeito de outras ações divinas.
Capítulo 10.
39.
O
coração significa a vontade, os olhos a visão, a mão a realização; no entanto,
Deus quer, prevê e realiza de um modo que vai muito além da comparação
incompleta com os membros do corpo.
40.
As
palavras coração, olhos, mãos expressam o que foi
sugerido. Por que então a afirmação de que gerou de seu seio não mostra a
verdadeira natividade? Não se quer dizer que Deus tenha gerado de seu seio,
pois também não age com as mãos, não vê com os olhos, não quer com o coração,
mas com esta comparação se indica que tudo realiza, vê e quer.
41.
Assim
também pela menção do seio se demonstra que verdadeiramente gerou de si
mesmo aquele a quem gerou, não para insistir na palavra seio, mas para
afirmar a verdade, assim como não é por meio de membros do corpo que Deus quer,
vê ou age.
42.
Os
nomes desses membros se empregam para que, por meio das ações corporais,
aprendamos o valor de suas operações.
Capítulo 11.
43.
Os
costumes humanos não permitem, e a palavra do Senhor não aceita que o discípulo
passe à frente do mestre, ou que o servo dê ordens ao senhor, porque um se
submete ao outro, seja pela ignorância, como o ignorante ao conhecedor, seja
pela fraqueza de sua condição, como o servidor ao senhor que domina.
44.
Sendo
assim o modo comum de julgar, como diremos agora que Deus é criatura e que o
Filho foi feito por Deus, quando nunca o nosso mestre e Senhor disse tal coisa
de si mesmo a nós, seus servidores e discípulos, nem ensinou que seu nascimento
tenha sido uma criação ou que Ele tenha sido feito? Também o Pai jamais
declarou outra coisa a não ser que Ele (o Cristo) é o Filho, e o Filho afirmou
unicamente que o Pai é seu próprio Pai, e que nasceu e não foi feito nem
criado, quando disse: Aquele que ama o Pai, ama também o Filho, que dele
nasceu (1Jo 5,1).
Capítulo 12.
45.
O
que foi feito é criatura, não é filho, nascido por geração. O céu não é filho,
a terra não é filha, e o mundo não nasceu. Sobre eles se disse: Tudo foi
feito por Ele (Jo 1,3), e o Profeta disse: Os céus são obras de tuas
mãos (Sl 101,26).
46.
Também
disse o mesmo Profeta: Não abandones a obra de tuas mãos (Sl 137,8).
Será acaso a pintura filha do pintor, o ferreiro terá por filha a espada, a
casa será filha do arquiteto? Todas essas coisas são obra dos que as fabricam;
mas o Pai tem somente um Filho, que nasceu dele.
Capítulo 13.
47. Quanto a nós, na
verdade, somos filhos para Deus, mas porque fomos feitos filhos. Pois, em certo
tempo, fomos filhos da ira (Ef 2,3) e fomos feitos filhos para Deus pelo
Espírito de adoção (cf. Rm 8,14-17), e, antes, somos filhos porque foi-nos
concedido ser chamados de filhos, do que pelo fato de termos nascido.
48. E porque tudo o
que se faz, antes de ser feito, não existia, como não éramos filhos de Deus,
fomos feitos o que somos. Antes não éramos filhos, mas, depois que nos foi
concedido ser filhos, nós o somos.
49.
Não
o somos por nascimento, mas porque fomos feitos filhos, não enquanto gerados,
mas como adquiridos. Pois Deus adquiriu para si um povo (cf. 1Pd 2,9) e por
isso nos gerou. Que Deus tenha gerado filhos, mas nunca no sentido de serem
filhos por natureza, bem o sabemos, pois não disse: Gerei e exaltei meus
filhos, mas: Gerei filhos e os exaltei (Is 1,2).
Capítulo 14.
50.
Por
causa das palavras: Filho primogênito meu, Israel (Ex 4,22), talvez
alguém entenda que tenha dito primogênito meu para negar ao Filho a
geração que lhe é própria. Por ter dito também: meu em relação a Israel,
não teria sido substituída pela geração a adoção dos que foram feitos filhos?
51.
E
por isso não seria próprio somente do Filho de Deus o que dele se disse: Este
é o meu Filho dileto (Mt 17,5), já que meu foi dito a respeito
daqueles que, é evidente, não nasceram de Deus. Que não nasceram como filhos,
apesar de serem assim chamados, também se vê por aquilo que foi dito: O povo
que há de nascer, que o Senhor fez (Sl 21,32).
O
que você destaca na fala do seu irmão/ã?
O
que você destaca no texto?
Como
o texto serve para a sua espiritualidade?
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