domingo, 24 de fevereiro de 2019

87 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 20-21)


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87
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 20-21)


CAPÍTULO XX 
Para concluir nossa digressão, transmitimo-vos isto de maior importância. Apontamo-vos o poder de nossas Escrituras, se não por sua antigüidade, no caso de duvidardes que sejam tão antigas como dizemos, pela prova que damos de que são divinas. Assim, podereis vos convencer disso de uma vez por todas, sem que nos estendamos mais.
Vossos mestres, o mundo, a antiguidade e os acontecimentos estão todos à vossa vista. Tudo aquilo que vos cerca, estou na vossa dianteira anunciando. Tudo o que vos cerca e agora vedes foi previamente anunciado. Tudo o que agora vedes já foi anteriormente predito aos ouvintes humanos.
A destruição de cidades da terra, a submersão de ilhas pelos mares, guerras que trouxeram convulsões internas e externas, o embate de reinos contra reinos, as epidemias de fome e de pestes, os massacres em certos lugares, as desolações disseminadas das mortalidades, a exaltação dos pobres e humildes sobre os orgulhosos, a decadência da honestidade, a disseminação do pecado, os instrumentos da ambição deslavrada dos bens, as próprias estações e atividades elementares naturais escapando a seus normais cursos, monstros e prodígios tomando o lugar de formas naturais - isso tudo foi previsto e predito antes que acontecesse. Enquanto sofremos as calamidades, estamos lendo sobre elas nas Escrituras.
Se verificarmos, elas estão sendo confirmadas. Sim, a verdade de uma profecia, julgo, é a demonstração de seu acontecimento posterior. Daí termos entre nós uma fé confirmada a respeito do eventos que vêm como coisas já confirmadas, porque foram preditas e igualmente cumpridas em nosso dia a dia.
Elas foram proferidas pelas mesmas vozes, escritas nos mesmos livros - o mesmo Espírito as inspirou. Constantemente há alguém predizendo os acontecimentos futuros. O tempo é um só para a profecia que prediz o futuro.
Entre os homens, talvez, há uma distinção dos tempos, já que o seu cumprimento vem depois. Sendo eventos do futuro, nós os consideramos como presentes e, então, quando se fazem presentes, nós os consideramos como pertencendo ao passado.
Como podemos ser censurados, dizei-nos, porque acreditamos nas coisas que virão como se já tivessem acontecido, com essas provas para nossa fé nesses dois instantes. »

CAPÍTULO XXI 
Agora, tendo confirmado que nossa religião está fundamentada nas escrituras dos hebreus, as mais antigas que existem, embora seja corrente e nós admitimos inteiramente que nossa religião date de um período comparativamente recente - não anterior ao reino de Tibério, talvez, devamos levantar a questão de suas bases, para não parecer que ocultamos sua origem sob a sombra de uma ilustre religião, a qual possui, sob todos os aspectos, indubitavelmente, a aceitação da lei.
Igualmente, além da questão da idade, não concordamos com os judeus em suas particularidades com respeito à alimentação, aos dias sagrados, nem mesmo no seu bem conhecido sinal da circuncisão, nem no uso de um nome comum, o que, certamente, seria o caso, já que prestamos homenagem ao mesmo Deus.
Igualmente, o povo comum tem algum conhecimento sobre Cristo, mas não o considera senão um homem, alguém que, de fato, os judeus condenaram, de modo que muitos naturalmente imaginaram que somos adoradores de um simples ser humano. Mas não estamos nem envergonhados de Cristo - porque nos alegramos de sermos contados entre seus discípulos e de sofrermos por seu nome - nem divergimos dos judeus com relação a Deus.
Faremos, portanto, uma observação ou duas quanto à divindade de Cristo. Nos tempos antigos os judeus muito gozaram do favor de Deus, quando os predecessores de sua raça se notabilizaram por sua honestidade e fé. Assim foi que floresceram muitíssimo como um povo e seu reino atingiu uma eminência sublime.
Tão abençoados eram que para sua instrução Deus lhes falou através de especiais revelações, indicando-lhes antes de tudo como deviam se fazer merecedores de Seu favor e de como evitar Seu desagrado. Mas, caíram profundamente no pecado, se ensoberbeceram na sua fé com a falsa confiança em seus nobres ancestrais, desviando-se do caminho de Deus para um caminho de transviada impiedade, e embora eles se neguem a reconhecer isso, sua ruína nacional atual poderia ser prova suficiente do ocorrido.
Dispersos mundo afora, como uma raça de errantes, exilados de sua própria terra e clima, vagam por todo o mundo sem um rei humano ou divino, não possuindo nem mesmo o direito que têm os estrangeiros de andarem em seu país nativo.
Os escritores sagrados, contudo, lhes tinham advertido previamente dessas coisas, todos com igual clareza, e até declararam que, nos últimos dias do mundo, Deus, de todas as nações, povos e países, escolheria Seus próprios e mais fiéis adoradores, aos quais conferiria Sua graça.
Faria isso mais amplamente, preservando-os com o poder de uma concessão mais sublime. Fielmente, Ele apareceu entre nós, conforme fora previamente anunciado, para renovar e iluminar a natureza humana.
Refiro-me a Cristo, o Filho de Deus. E assim o Senhor supremo, o Ministrador dessa graça e modo de vida, o Iluminador e Mestre da raça humana, Filho do próprio Deus, se fez anunciar como tendo nascido entre nós. Nascido, porém, de forma a não se envergonhar do nome de Filho ou de Sua origem paterna.
Não foi seu destino provir de Seu pai através de incesto com uma irmã, ou de violação de uma filha ou da esposa de outro, um deus na forma de serpente, ou de boi, ou de pássaro, ou de um amante, de modo que sua baixeza o transformasse no ouro de Dânaos.
Assim são vossas divindades sobre as quais recaíram tais crimes de Júpiter. Mas o Filho de Deus não teve mãe que, em nenhum sentido, fosse envolvida em impureza. Aquela que os homens têm por Sua mãe, pelo contrário, nunca teve relacionamento nupcial.
Mas, primeiro, falarei sobre Sua natureza essencial e, então, a natureza de Seu nascimento poderá ser compreendida. Já afirmamos que Deus fez o mundo e tudo o que ele contem, por Sua Palavra, Razão e Poder. É plenamente aceito que vossos filósofos também têm em vista o Logos - isto é, a Palavra e a Razão - como o Criador do universo. Zenão explicou que ele é o criador, tendo feito todas as coisas de acordo com determinado plano, que seu nome é o Destino, e Deus, e a alma de Júpiter, e a necessidade de todas as coisas. Cleanto atribui tudo isso ao espírito que, segundo afirma, pervade o universo.
E nós, de maneira semelhante, afirmamos que a Palavra, a Razão e o Poder, com as quais denominamos Deus tudo criou, é espírito com sua substância própria e essencial, da qual a Palavra provem como expressão, e a razão habita para dispor e arranjar, e o poder se sobressai para executar.
Aprendemos que a Palavra procede de Deus, e nessa processão Ela é gerada, de modo que Ela é o Filho de Deus, e é Deus, em unidade e em mesma substância com Deus. Em Deus, igualmente, há um Espírito. Mesmo quando o raio é lançado do sol, é ainda parte da massa que o gerou. O sol ainda está no raio, porque é um raio do sol. Não há divisão de substância mas simplesmente uma extensão.
Assim Cristo é Espírito do Espírito, Deus de Deus, Luz da Luz. O material matriz permanece inteiro e não diminuído, embora dele derive qualquer número de raios, possuindo suas qualidades. Assim, também, Aquele que provem de Deus é por sua vez Deus e Filho de Deus, e os dois são um só. Dessa maneira, como Ele é Espírito do Espírito, Deus de Deus, Ele é gerado como segundo no modo de existência - na posição, não na natureza.
Ele não é criado pela fonte original, mas dela foi gerado. Este raio de Deus, então, como foi sempre previsto nos tempos antigos, desceu sobre uma virgem, e se fez carne em seu ventre; é em Seu nascimento juntamente Deus e homem.
A carne informada pelo Espírito é alimentada, cresce até tornar-se adulto, fala, prega, trabalha - é o Cristo. Acolha, por enquanto, esta fábula se assim quiserdes chamá-la. É uma concepção vossa, enquanto continuaremos a mostrar como a reivindicação de Cristo foi provada, e como as versões de vosso conhecimento pelas quais tais fábulas foram apresentadas para destruir a verdade, se assemelham.
Os judeus, também, estiveram preocupados de que Cristo tivesse vindo, eles aos quais os profetas falaram. Mas não, ainda agora Seu advento continua sendo esperado por eles. Não há nenhuma dissensão entre eles e nós, senão que eles acreditam que o advento ainda não aconteceu.
Pois duas vindas de Cristo nos foram reveladas: a primeira que já se cumpriu na baixeza do destino humano, uma segunda que pende sobre o mundo, agora perto de seu fim, com toda a majestade da Divindade desvelada.
Por interpretarem mal a primeira vinda, os judeus concluíram que a segunda - objeto de predição mais manifesta, e na qual colocam suas esperanças - seria a única. Isto foi o castigo devido a seus pecados - não compreenderem a primeira vinda do Senhor - porque eles a tiveram, mas nela não quiseram acreditar. Se tivessem acreditado, poderiam ter obtido salvação.
Eles próprios leram o que foi escrito a seu respeito - que estão privados da sabedoria e do entendimento - do uso de seus olhos e de seus ouvidos. Assim, então, sob a força de sua rejeição se convenceram a si próprios desse seu baixo procedimento: que Cristo não foi mais do que um homem, seguindo-se, como conseqüência necessária, que tivessem Cristo na conta de mágico, devido aos Seus poderes que demonstrou - expulsando demônios dos homens por sua palavra, restaurando a visão aos cegos, limpando os leprosos, curando os paralíticos, trazendo de novo à vida quem já estava morto, fazendo com que os próprios elementos da natureza o obedecessem, amainando as tempestades e andando por sobre o mar, provando que era o Logos de Deus, aquela primordial Palavra de todo o sempre gerada, acompanhada pelo Poder e Razão e vinda pelo Espírito - Aquele que agora faz todas as coisas pelo poder de sua Palavra e Aquele que fez que do anterior proviesse um e o mesmo.
Mas os judeus ficaram tão exasperados com seus ensinamentos, pelos quais seus governantes e chefes se convenceram da verdade, principalmente porque muitíssimos O seguiram, que, por último, O levaram ante Pôncio Pilatos, naquele tempo governador da Síria. Então, pela violência de seus gritos contra Ele, obtiveram uma sentença entregando-lhes Cristo para ser crucificado.
O próprio Cristo havia predito tudo isso, o que teria pouco sentido se não tivessem os profetas antigos dito a mesma coisa. E, no entanto, pregado na cruz, Cristo manifestou muitas maravilhas admiráveis pelas quais Sua morte foi diferente de todas as outras. Por Sua livre vontade, com uma palavra fez entrega de seu Espírito, antecipando o trabalho dos carrascos.
Na mesma hora, também, a luz do dia feneceu, enquanto o sol naquele momento, exatamente, estava fulgurando no seu meridiano. Aqueles que não estavam cientes de que isso tinha sido predito sobre Cristo, pensaram, sem dúvidas, que era um eclipse. Vós mesmos tendes ainda registro em vossos arquivos desse fenômeno da natureza.
Quando seu corpo foi descido da cruz e colocado numa sepultura, os judeus em seu ansioso cuidado cercaram-na com uma grande guarda militar, uma vez que Cristo havia predito Sua ressurreição da morte no terceiro dia. Seus discípulos poderiam secretamente retirar seu corpo e, assim, enganar os incrédulos.
Mas, no terceiro dia houve um repentino abalo de terremoto e a pedra que selava a sepultura rolou de seu lugar. Os guardas fugiram com medo. Não havendo nenhum discípulo por perto, a sepultura foi encontrada totalmente vazia exceto pelo sudário daquele que fora ali sepultado.
Mas, assim mesmo, os chefes dos judeus, a quem de perto interessava espalhar uma mentira e, por suas crenças, conservar o povo sob tributos e submissão, disseram que o corpo de Cristo tinha sido roubado pelos discípulos de Cristo. Quanto ao Senhor, vede, não apareceu à vista do público, para que os culpados não se livrassem de seus erros, porque a fé, também, merecedora de uma grande recompensa, se fundamenta na dificuldade.
Mas Ele ficou quarenta dias com muitos de Seus discípulos, na Galiléia, uma região da Judéia, instruindo-os nas doutrinas que deveriam ensinar aos outros. Depois disso, tendo lhes dado o encargo de pregarem a boa nova em todo o mundo, Ele foi cercado por uma nuvem e subiu aos céus - um acontecimento muitíssimo mais certo do que as afirmações de vossos procônsules a respeito de Rômulo.
Todas essas coisas Pilatos fez a Cristo, e agora, realmente, os cristãos têm suas próprias convicções. Pilatos escreveu sobre Cristo ao Imperador reinante que era, na época, Tibério. Sim, e os Imperadores também teriam acreditado em Cristo, caso os Imperadores não tivessem sido necessários ao mundo, ou se os cristãos pudessem se tornar Imperadores. Seus discípulos, espalhando-se pelo mundo afora, fizeram o que Seu Divino Mestre dissera, e após sofrerem muito, eles próprios, com as perseguições dos judeus, com generosidade de coração, mantendo a fé na verdade, por último, semearam pela cruel espada de Nero, com sangue cristão, a sede de Roma. Sim, provarei que mesmo vossos próprios deuses são testemunhas efetivas em favor de Cristo.
Seria de grande importância, para colocardes vossa fé nos cristãos, se eu pudesse vos demonstrar a autoridade dos próprios seres por conta dos quais recusais dar-lhes créditos. Eis que vos desvendamos a fé em que nos fundamentamos. Expusemos a origem e o nome de nossa seita, com esse relato do Fundador do Cristianismo.
Que ninguém, doravante, nos acuse com infame maldade, que ninguém pense que algo seja diferente do que apresentamos, para que ninguém possa fazer um falso conceito dessa religião. Pois se alguém adora um outro Deus, diferentemente do que diz, se torna culpado de negar o objeto de sua adoração, transfere sua adoração e homenagem a outro, e nessa transferência deixa de adorar o Deus que a repudia.
Afirmamos, clamamos diante de todos os homens, e dilacerados, sangrando debaixo de vossas torturas, gritamos: "Nós adoramos Deus por Cristo." Tende Cristo como um homem, se assim vos agrada. Por Ele e n' Ele Deus desejaria ser conhecido e adorado. Se os judeus objetam a isso, respondemos que Moisés, que não foi senão um homem, foi quem lhes ensinou sua religião. Contra os gregos arguimos que Orfeu em Piéria, as Musas em Atenas, Melampo em Argos, Trofônio na Beócia, impuseram seus ritos religiosos. Respondendo a vós próprios que costumais oscilar entre as nações, foi um homem, Numa Pompílio, que impôs aos romanos um pesado fardo de custosas superstições.
Certamente Cristo, então, tem direito de revelar a Divindade que era, de fato, Sua própria essencial possessão, não com o objetivo de manipular ignorantes e selvagens com o temor de uma multidão de deuses, cujos favores deveriam resultar numa civilização, como foi o caso com Numa, mas como alguém que gostava de iluminar os homens já civilizados e sob ilusões de sua própria cultura, para que eles pudessem conhecer a verdade. Pesquisai, pois, e vede se a divindade de Cristo é verdadeira. Se é de tal natureza que o seu acolhimento transforma o homem e o faz melhor, implicando isso no dever de renunciar como falso o que se lhe opõe.
Especialmente se oculta ele próprio, sob o nome e a imagem da morte, seus esforços para convencer os homens de sua divindade, através de sinais especiais, milagres e predições. »


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86 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 17-19)


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86
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 17-19)


CAPÍTULO XVII 
O objeto de nossa adoração é um Único Deus que, por sua palavra de ordem, sua sabedoria ordenadora, seu poder Todo-Poderoso, tirou do nada toda a matéria de nosso mundo, com sua lista de todos os elementos, corpos e espíritos, para glória de Sua majestade.
A essa criação, por tal razão, também os gregos lhe deram o nome de Cosmos. Os olhos não podem vê-Lo, embora seja (espiritualmente) visível. Ele é incompreensível, embora tenha se manifestado pela graça. Está além de nosso mais elevado entendimento, embora nossas faculdades humanas o concebam.
Ele é, portanto, igualmente real e magnífico. Mas o que, pelo senso comum, pode ser visto, percebido e concebido, é inferior ao que Ele é, ao que d'Ele se percebe, ao que d'Ele as faculdades vislumbram. Mas o que é infinito é conhecido somente por Ele mesmo.
Assim, damos alguma noção de Deus, enquanto, contudo, ele permanece além de todas as nossas concepções - nossa real incapacidade de completamente compreendê-Lo permite-nos ter a idéia do que Ele realmente seja. Ele se apresentou ao nosso conhecimento em sua transcendental grandeza, sendo conhecido e sendo desconhecido.
E tal coisa é a suma culpa dos homens, porque eles não querem reconhecer o Único a quem não podem ignorar. Poderíeis ter a prova pelas obras de Suas mãos, tão numerosas e tão grandes, que igualmente vos contém e vos sustentam, que proporciona tanto vosso prazer quanto vos comove com temor.
Ou poderíeis melhor senti-lo pelo testemunho de vossa própria alma? Embora sob o opressivo cativeiro do corpo, embora transviada por costumes depravados, embora enfraquecida pela concupiscência e paixões, embora na servidão de deuses falsos, contudo, quando a alma O procura, libertando-se do tédio e do torpor, movida por uma doença, e consegue um pouco de sua pureza natural, ela fala de Deus, não usando nenhum outro nome, porque este é o nome próprio do verdadeiro Deus.
"Deus é imenso e bom", "Que possa Deus dar", são as palavras que brotam de cada boca. Dão testemunho d'Ele, também, quando exclamam: "Deus vê", "Eu me recomendo a Deus" e "Deus me recompensará". Ó nobre testemunho da alma, por natureza cristã! Então, igualmente, usando palavras semelhantes a essas, a pessoa olha não para o Capitólio mas para os céus. Ela sabe que ali está o trono do Deus vivo, como se d'Ele e dali tudo proviesse. »

CAPÍTULO XVIII 
Mas, porque podemos alcançar um maior e mais autorizado conhecimento tanto d'Ele mesmo quanto de Seus apelos e desejos, Deus acrescentou uma revelação escrita para o proveito de todos aqueles cujos corações se colocam à sua procura, que procurando podem encontrá-lO e encontrando acreditar e acreditando obedecer-Lhe.
Porque primeiro Ele mandou mensageiros ao mundo - homens cuja pura retidão os tornaram dignos de conhecer o Altíssimo e de revelá-Lo - homens abundamtemente iluminados pelo Santo Espírito, que alto proclamaram que há um só Deus que fez todas as coisas, que formou o homem do pó da terra.
Ele é o verdadeiro Prometeu que ordenou o mundo, estabelecendo as estações em seu curso. Aqueles homens mais provas ainda nos deram. Deus mostrou Sua majestade em seus juízos, por inundações e fogo, nos mandamentos indicados por Ele para se obter seu favor, assim como a retribuição guardada para quem os ignora, os renega ou os guarda, pois que quando chegar o fim de todas as coisas, julgará seus adoradores para a vida eterna e os culpados para a mansão do fogo eterno e inextinguível, ressuscitando todos os mortos desde o início dos tempos, reformando-os e renovando-os com o objetivo de premiá-los ou castigá-los.
Um dia, tais coisas foram para nós, também, tema de ridículo. Nós somos de vossa geração e natureza: os homens se tornam, não nascem cristãos!
Os pregadores dos quais temos vos falado são chamados profetas, por causa do ofício que lhes pertence de predizer o que virá. Por sua palavras, tanto quanto pelos milagres que fizeram, esses homens podem merecer fé em sua autoridade divina.
Conservamos, ainda, em tesouros literários que permanecem disponíveis a todos, o que eles transmitiram. Ptolomeu, dito Filadelfo, o mais letrado de sua raça, uma homem de vasto conhecimento em toda a literatura, que se iguala, acho, pelo seu amor aos livros, com Pisístrato, entre outros, sobreviveu aos tempos, e, seja por sua antigüidade, seja por seu peculiar interesse, se tornou famoso.
Esse Ptolomeu, por sugestão de Demétrio de Falero, que foi reconhecido superior a todos os gramáticos de seu tempo, lhe entregou a tarefa de tratar do assunto relacionado aos escritos dos judeus. Isto é, aos característicos escritos dos judeus e de sua língua, que somente eles falavam, como povo querido de Deus, demonstrado isso na salvação de seus antepassados, povo do qual os profetas sempre se provieram e ao qual sempre pregavam.
Nos tempos antigos, o povo que chamamos judeus usavam o nome de hebreus e falavam o hebraico, língua em que foram redigidos seus escritos. Mas como para o entendimento de seus livros assim se fizesse necessário, os judeus pediram a Ptolomeu que lhe deixassem indicar setenta e dois tradutores, homens que o filósofo Menedemos, reconhecido como indicado por uma Providência, aceitou com respeito, já que compartilhava de seus pontos de vista.
A mesma história é contada por Aristos. Assim, o rei desvendou aquelas obras a todos, na língua grega. Até nossos dias a biblioteca de Ptolomeu se encontra à disposição de todos, no templo de Serápis, na qual estão também os originais idênticos hebreus.
Os judeus, por sua vez, lêem esses livros publicamente. Pagando uma taxa de liberação, têm o hábito de ir ouvi-los todos os sábados. Quem quer que tenha ouvidos neles encontrará Deus, quem quer que se aplica em entendê-los, será levado a crer. »

CAPÍTULO XIX 
A grande antigüidade, antes de tudo, dá autoridade àqueles escritos. Vossa religião, também, pede fé baseada no mesmo fundamento.
Sim, todas as substâncias, todos os materiais, as origens, classes, conteúdos de vossos mais antigos escritos, além da maioria das nações e cidades ilustres que recordam o passado e são notáveis por sua antigüidade nos livros de anais, as próprias formas de vossas cartas, tudo que revela e conserva os acontecimentos, e - penso que falo coerentemente - vossos próprios deuses, vossos próprios tempos, oráculos e ritos sagrados são menos antigos do que a palavra de um único profeta, no qual encontrareis o tesouro da integral religião judia e, consequentemente, da nossa.
Caso tenhais ouvido falar de um certo Moisés, digo-vos que ele é muitíssimo mais antigo do que o argeu Ínaco, em aproximadamente quatrocentos anos. Ele é anterior a Dânaos, vosso mais antigo nome. Antecedeu por um milênio a morte de Príamo. Posso afirmar, também, que viveu quatrocentos anos antes de Homero, existindo fundamentos para essa afirmação.
Os outros profetas, também, embora de datas posteriores, são, mesmo os mais recentes, tão antigos quanto o primeiro de vossos filósofos, legisladores e historiadores. Aqui faço apenas uma afirmação, não apresentando as provas, não tanto porque isso é difícil, mas devido à amplitude da apresentação de toda a fundamentação.
O trabalho não seria somente árduo, mas sobretudo tedioso. Requereria o apressado estudo de muitos livros, os dedos ocupados em folheá-los. As histórias das mais antigas nações, tais como dos Egípcios, dos Caldeus, dos Fenícios teriam de ser exploradas.
Igualmente teriam de ser consultados para apresentarem seus testemunhos homens dessas várias nações, com suas informações. Mâneto, o Egípcio, Beroso, o Caldeu, e Hierão, o Fenício, rei de Tiro, assim como seus sucessores, Ptolemeu o Mendesiano, Demétrio de Falero, O Rei Juba, Apião, Thallo, e o crítico de todos eles, Josefo, da própria nação judia, o pesquisador da história antiga de seu povo, que os confirma ou os refuta. Igualmente, deveriam ser postas lado a lado as listas dos censores gregos, e esclarecidas as datas dos acontecimentos, para que as conexões cronológicas pudessem ser feitas, bem como usadas as narrativas dos vários anais para lançar mais luz sobre o assunto.
Deveríamos seguir aprofundando as histórias e literaturas de todas as nações. Mas, de fato, já vos trouxemos a prova parcial, fornecendo-vos as sugestões de como o estudo poderia ser realizado.
Parece-nos melhor deixarmos para outra ocasião a discussão disso tudo, com receio de que em nossa pressa não possamos aprofundá-lo suficientemente, ou de que no manuseio disso tudo façamos uma digressão demasiadamente extensa. »

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domingo, 17 de fevereiro de 2019

85 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 15-16)


Cidade de Ji-Paraná - RO

85
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 15-16)


CAPÍTULO XV
De vossos escritores, outros, em seus desregramentos sempre vos proporcionam prazeres vilipendiando os deuses. Vede aquelas encantadoras farsas de Lêntulo e Hostílio se nas brincadeiras e facécias não são os bufões e as divindades que vos causam divertimentos.
Farsas assim, penso, levam-nos ao ridículo, como a de Anúbio, o adúltero, Luna, do sexo masculino, Diana debaixo do chicote, as interpretações dos desejos de Júpiter falecido e os três famigerados Hércules.
Vossa literatura dramática, igualmente, retrata as vilezas de vossos deuses. O Sol lamenta seus filhos expulsos do céu e vós ficais cheios de júbilo. Cibele procura seu insolente namorado e vós não corais.
Levais à cena o recital dos delitos de Júpiter, e do pastor que julga Juno, Vênus e Minerva. Novamente, quando a máscara de um deus é posta na cabeça de um ignominioso e infame miserável, quando alguém impuro e experimentado na arte de toda efeminação que seja representa Minerva ou Hércules, não é a majestade de vossos deuses insultada e sua divindade desonrada? Contudo vós não somente assistis a isso, como aplaudis.
Sois, suponho, mais devotos na arena quando sob a mesma forma vossas divindades dançam sobre o sangue humano, sobre os ferimentos causados pelas punições infligidas, como se interpretassem suas histórias e aventuras, cedendo sua vez aos pobres condenados, com a diferença de que esses muitas vezes se colocam como a divindade e no momento representam os próprios deuses.
 Temos visto presentemente uma representação da mutilação de Átide, o famoso deus de Pessino, e de um homem queimado vivo como Hércules. Faz-se gozação em meio a burlescas crueldades na exibição do meio-dia, com Mercúrio examinando os corpos dos mortos com sua lança ardente.
Temos testemunhado o irmão de Júpiter, com malho na mão, rebocando os cadáveres dos gladiadores. Mas quem pode assistir a tudo isso? Se por tais coisas a honra da divindade é atacada, se estão a macular qualquer traço de sua majestade, temos de entender isso como desprezo com os quais os deuses tratados por aqueles que ora fazem tais coisas e, igualmente, por aqueles para cujo divertimento são feitas. Isto, todavia, dizem, é tudo brincadeira.
 Mas, acrescento - todos sabeis e admitis prontamente como fatos que nos templos são arranjados adultérios, que nos altares são praticadas alcovitices, que muitas vezes nas casas dos guardas dos templos e dos sacerdotes, sob os ornamentos de sacrifícios, sob sagradas tiaras e sob as vestimentas púrpuras, em meio das ondas de incenso, são praticados crimes de licenciosidade.
Então, não estou seguro, mas vossos deuses têm mais razão de se queixarem de vós do que dos cristãos.
Ë certamente entre os devotos de vossa religião que sempre se encontram os perpetradores de sacrilégios; porque os cristãos não entram em vossos templos nem mesmo durante o dia. Talvez queirais, também, ser exploradores dos deuses, já que os adorais.
O que , então, vos levam a adorar, uma vez que os objetos de adoração são diferentes de vós? Fica, de fato, logo evidenciado como corolário de vossa rejeição à hipocrisia, que rendeis homenagem à verdade.
Não perseverais no erro que criastes pelo simples fato de reconhecerdes que isso é um erro. Aceitai isso, antes de mais nada, e após termos apresentado uma refutação preliminar de alguns conceitos falsos, continuaremos apresentando todo nosso sistema religioso. »

CAPÍTULO XVI
Juntamente como outros, estais na ilusão de que nosso Deus é uma cabeça de asno. Cornélio Tácito foi o primeiro a divulgar tal noção entre o povo. No 5o livro de sua História, começa a narrativa da guerra judaica com um relato da origem da nação, teorizando a seu bel prazer sobre essa origem, tanto quanto sobre o nome e sobre a religião dos judeus.
Declara que tendo sido libertados ou ainda, em sua opinião, expulsos do Egito, cruzando as vastas planícies da Arábia, onde a água era escassa, os judeus enfrentaram a sede extrema, mas, tomando por guia asnos selvagens que, imaginavam, podiam estar procurando água depois de se alimentarem, descobriram uma fonte. Desde então, em sua gratidão, passaram a sacralizar a cabeça de um animal dessa espécie. Como a cristandade está aliada ao judaísmo, por isto, suponho, aceitastes gratuitamente que nós também éramos devotos adoradores da mesma imagem.
Mas o citado Cornélio Tácito (em completa oposição ao significado de seu nome - ficar calado e não contar mentiras), informa, na obra já mencionada, que quando Cneio Pompeu capturou Jerusalém, penetrou no templo para ver os segredos da religião dos judeus, mas não encontrou nenhuma imagem ali. Contudo, certamente, se adoração era rendida a algum objeto visível, o lugar exato de sua exibição deveria ser no santuário.
Tudo o mais além da adoração, embora irracional, não se fazia necessário ali para causar medo a crentes do exterior, pois que só aos sacerdotes era permitido entrar no lugar sagrado, enquanto toda visão era impedida aos demais por um cortinado cerrado. Não podeis negar, contudo, que todas as bestas de carga e não partes delas, mas animais inteiros, são com sua deusa Epona objetos de vossa adoração.
É isso, talvez, que vos desagrada em nós, porque enquanto vossa adoração aqui é a todos, nós prestamos homenagem somente ao asno. Se alguns de vós pensais que rendemos adoração supersticiosa à cruz, nessa adoração estais compartilhando conosco.
Se dais homenagem a uma peça de madeira, importa pouco qual ela seja, porque a substância é a mesma: a forma é diferente, se nela tendes, de fato, o corpo de Deus. Entretanto, quão diferente é do madeiro da cruz Palas Atenas ou Ceres, quando levantadas para venda numa simples estaca bruta, peça de madeira sem forma!? Cada estaca fixada em posição vertical é um pedaço da cruz.
Nós rendemos nossa adoração, se quereis assim, a um Deus inteiro e completo. Mostramos antes que vossas divindades são feitas de formas modeladas na cruz. Mas vós também cultuais as vitórias, porque em vossos troféus a cruz é o sustentáculo do troféu.
A religião dos acampamentos romanos é toda dirigida ao culto de estandartes, uma coleção de estandartes acima de todos os deuses. Bem, aquelas imagens mostradas nos estandartes são ornamentos de cruzes que as sustentam. Todas aquelas coisas penduradas em vossos estandartes e bandeiras são vestes das cruzes.
Eu louvo vosso zelo: vós não prestais culto a cruzes desvestidas e desornadas. Outros, de novo, certamente com mais informação e maior veracidade, acreditam que o sol é nosso deus. Somos confundidos com os persas, talvez, embora não adoremos o astro do dia pintado numa peça de linho, tendo-o sempre em sua própria órbita.
A idéia , não há dúvidas, originou-se de nosso conhecido costume de nos virarmos para o nascente em nossas preces. Mas, vós, muitos de vós, no propósito às vezes de adorar os corpos celestes moveis vossos lábios em direção ao oriente.
Da mesma maneira, se dedicamos o dia do sol (Domingo) para nossas celebrações, é por uma razão muito diferente da dos adoradores do sol. Temos alguma semelhança convosco que dedicais o dia de Saturno (Sábado) para repouso e prazer, embora também estejais muito distantes dos costumes judeus, os quais certamente ignorais.
Mas, ultimamente a nova versão de nosso Deus foi dada a conhecer ao mundo nessa grande cidade: originou-se com um certo homem desprezível que tinha costume de se dedicar a trapacear com feras selvagens, e que exibiu uma pintura com esta inscrição: O Deus dos Cristãos nasceu de um asno.
Ele tem orelhas de asno, tem casco num pé, segura um livro e usa uma toga. Tanto o nome como a figura nos provoca risos. Mas nossos inimigos devem ter sido levados a logo prestar homenagem a essa divindade biforme, porque eles conhecem deuses com cabeça de cachorro e de leões, com chifres de bode e carneiro - como um corpo com pernas de dragão, com asas nas costas ou patas.
Tais coisas temos esclarecido exaustivamente, porque não podemos de boa vontade deixar passar nenhum boato contra nós sem refutação. Tendo explicado exaustivamente sobre nós mesmos, voltamos agora a uma demonstração de como é realmente nossa religião. 


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domingo, 10 de fevereiro de 2019

84 - Tertuliano de Cartago (155-220) - Apologia (Capítulo 12 - 14)



84
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 12 - 14)

CAPÍTULO XII
Mas, deixo de lado essas observações, porque sei e vou mostrar o que vossas divindades não são, mostrando o que realmente são. Com referência, então, a eles, examinarei somente nomes de homens falecidos dos tempos antigos. Ouvi histórias fabulosas. Reconheci ritos sagrados cercando simples mitos.
Relacionando-os às imagens atuais, vejo-os como simples peças materiais assemelhadas aos vasos e utensílios de uso comum entre vós, ou mesmo consagrados por uma malfadada troca com aqueles úteis objetos nas mãos de descuidada arte, que no processo de transformação os tratou com absoluto desprezo, se não, com verdadeiro ato de sacrilégio. Dessa forma não poderíamos ter o menor conforto em todos os nossos castigos, padecendo como padecemos por causa desses mesmos deuses, porque em sua formação sofreram como nós sofremos.
Pondes os cristãos em cruzes e estacas: Que estátua não é primeiro formada de barro e depois plasmada numa cruz ou numa estaca? O corpo de vosso deus é primeiro consagrado num estrado. Dilacerais os corpos dos cristãos com vossas garras, mas no caso de vossos próprios deuses, machados, plainas e limas são utilizadas mais vigorosamente em cada membro de seus corpos. Colocamos nossas cabeças sobre o cepo.
No entanto, o prumo, a cola e os pregos são utilizados em vossas divindades que de início não têm cabeça. Somos lançados às feras selvagens, enquanto as pondes juntas a Baco, Cibele e Celeste. Somos queimados no fogo; assim também eles, em seu original material. Somos condenados às minas; delas provieram vossos deuses. Somos banidos para as ilhas; é comum a vossos deuses nelas nascerem ou morrerem.
Se este é o meio pelo qual se faz uma divindade, segue-se que são punidas enquanto são deificadas e serão torturadas para serem declaradas divindades. Mas é evidente que esses objetos de vossa adoração não sentem as injúrias e as desgraças antes de sua consagração, como também não tomam consciência das honras que lhes são prestadas. Ó palavras ímpias! Ó acusações blasfemas! É de ranger os dentes contra nós - espumem com louca raiva contra nós - somos as pessoas, sem dúvida, que censuraram um certo Sêneca que falou de vossas superstições longamente e muito mais agudamente! Numa palavra: se recusamos nossa homenagem a estátuas e imagens frígidas, de fato uma reprodução de seus originais falecidos, com os quais convivem falcões, ratos e aranhas, não merece isso louvor em vez de castigo? Que rejeitemos isso que acabamos de examinar é erro?
Não fazemos certamente injúrias àqueles que estamos certos de serem nulidades. O que não existe está em sua inexistência livre do sofrimento. »

CAPÍTULO XIII
 "Mas eles são nossos deuses", dizeis. Como pode ser isso, pois com absoluta inconsistência, estais cientes de vossa ímpia, sacrílega e irreligiosa conduta para com eles; menosprezais aqueles que imaginais que existam, destruindo aqueles que são objetos de vosso medo, fazendo pouco caso daqueles cuja honra quereis vingar?
Vede se agora estou mentindo. Em primeiro lugar, certamente, constatando que apenas adorais um ou outro deus, certamente ofendeis àqueles que não adorais. Não podeis dar preferência a um sem desprezar o outro, pois a seleção de um implica na rejeição do outro. Desprezais, portanto, aqueles que rejeitais, porque na vossa rejeição a eles se evidencia que não temeis em ofendê-los. Como já demonstramos, toda divindade vossa depende da decisão do Senado quanto à sua deificação.
Ninguém seria deus a não ser que o homem em seu próprio arbítrio não o tivesse desejado; assim, igualmente, rejeitado. Às divindades da família que chamais "Lares" concedeis uma autoridade doméstica, orando a elas, vendendo-as, trocando-as, fazendo às vezes fogo com Saturno, alimentando um braseiro com Minerva, se acontece que um ou outro esteja estragado ou quebrado por seu longo uso sagrado, ou se o chefe da família está premido por alguma necessidade familiar mais sagrada.
Assim, também, por lei pública, levais à desgraça vossos deuses oficializados, colocando-os no catálogo de leilão, tornando-os fontes de renda. Os homens sobem ao Capitólio, como vão ao mercado popular levados pela voz do pregoeiro, fazendo o lance do leilão, com o registro do questor.
A divindade é leiloada e arrematada pela mais alta oferta. Mas, certamente, só terras oneradas com impostos são de menor valor, só homens sujeitos à avaliação de impostos são menos nobres, porque bens assim indicam estado de servidão. No caso das divindades, por outro lado, a santidade é grande em proporção aos tributos que sobre elas são cobrados. Quanto mais sagrada a divindade, maior a taxa que paga.
A majestade se torna uma fonte de ganho. A Religião procede como os pedintes de tavernas. Cobrais preço pelo privilégio de ficar num templo, por acesso aos cultos sagrados, não se recebe conselhos gratuitos de vossas divindades - necessitais comprar seus favores.
Que honras lhes concedeis que não concedais aos mortos? Possuís templos tanto para uns como para outros, construís altares tanto para uns como para outros. Suas estátuas são vestidas da mesma maneira, com as mesmas insígnias.
Assim como os falecidos tinham sua idade, sua arte, suas ocupações, assim as tinham vossas divindades. Em que a festa de funeral difere da festa de Júpiter? O símbolo das divindades daquele dos manes? Ou o empreiteiro do funeral do vaticinador, se, realmente, o último também trata de mortos?
Com perfeita propriedade dais honras divinas a vossos imperadores quando morrem, já que os adorais em vida. Os deuses ficam em dívida convosco, pois é causa de grande regozijo entre eles que seus mestres sejam constituídos em seus pares. »

CAPÍTULO XIV
 Desejaria rever agora vossos ritos sagrados. Deixo passar sem censuras o fato de em vossos sacrifícios ofertardes coisas estragadas, imprestáveis, podres, quando separais a gordura, as partes sem uso, tais como a cabeça e os cascos, que em vossas casas destinais aos escravos ou aos cães; quando do dízimo de Hércules não colocais sequer um terço sobre o altar.
Sou levado mais a louvar vossa sabedoria em aproveitá-las para não as jogar fora. Mas, voltando a vossos livros dos quais tirais vossos ensinamentos de sabedoria e os nobres deveres da vida, que coisas ridículas ali encontro: que os deuses troianos e gregos brigaram entre eles como gladiadores, que Vênus foi ferida por um homem porque ela queria resgatar seu filho Êneas, quando estava ameaçado de perigo de vida pelo próprio Diomedes; que Marte definhou preso por treze meses; que Júpiter foi salvo pela ajuda de um monstro de padecer a mesma violência nas mãos de outros deuses; que ele agora lamenta o destino de Sarpédon, ora cortejando loucamente sua própria irmã, lhe falando sobre antigas amantes, não tão amadas como ela.
Depois disso, que poeta não imita o exemplo de seu Mestre? Um entrega Apolo ao rei Admeto para cuidar de suas ovelhas; um outro aluga o trabalho de construtor de Netuno a Laomedonte. Um conhecido poeta lírico, também, Píndaro, aliás, canta sobre Esculápio merecidamente ferido com um raio por pratica incorreta de sua arte, por ambição. Uma má ação foi essa de Júpiter: se arremessou um raio desnaturado contra seu avô, demonstrando sentimento de inveja contra o médico.
Coisas semelhantes não deveriam ser tornadas públicas, se verdadeiras; e, se falsas, não deviam ser levadas ao povo, que professa um grande respeito pela religião. Nem também, certamente, os escritores, trágicos ou cômicos, deveriam denunciar os deuses como origem de todas as calamidades e pecados das famílias. Não examinarei os filósofos, contentando-me com uma referência a Sócrates que, por desprezo aos deuses, tinha o hábito de jurar por um carvalho, por uma cabra ou por um cão.
De fato, exatamente por isso, Sócrates foi condenado à morte, pois subestimava a adoração aos deuses. Num tempo ou noutro, ou seja, sempre, a verdade não é amada.
Contudo, quando sentiram remorso pelo julgamento de Sócrates, os atenienses aplicaram punição a seus acusadores, e ergueram uma imagem de ouro dele num templo; a condenação foi nessa ocasião reconsiderada, e a inocência dele restaurada em seus anteriores méritos.
Diógenes, igualmente, zombou de Hércules; e o cínico romano Varro se fez proceder de trezentas imagens de Júpiter, que foram conhecidas todas como sem cabeças. »


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segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

83 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 10 - 11)



83
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 10 - 11)


CAPÍTULO X - Vós nos acusais: "Não adorais os deuses e não ofereceis sacrifícios aos imperadores". Sim, não oferecemos sacrifícios a outros pela mesma razão pela qual não os oferecemos a nós mesmos, ou seja, porque vossos deuses não são, de modo algum, referenciais para nossa adoração. Por isso, somos acusados de sacrilégio e de traição. Esse é o principal fundamento de vossa perseguição contra nós. Sim, é toda a razão de nossa ofensa.
É digna, então, de exame a respeito, se não forem nossos juizes a prevenção e a injustiça, pois a prevenção não leva a sério descobrir a verdade, e a injustiça a rejeita simples e totalmente. Não adoramos vossos deuses porque sabemos que não existem tais divindades. Eis o que, portanto, deveríeis fazer: deveríeis nos intimar a demonstrar a inexistência delas, e, então, provar que elas não merecem adoração, pois somente se vossas divindades fossem comprovadamente verdadeiros deuses, haveria toda obrigação de lhes serem rendidas homenagens divinas. Punição, igualmente, mereceriam os cristãos, se ficasse evidente que aqueles aos quais recusam adoração são verdadeiramente divinos.
Vos dizeis: são deuses. Nós negamos e apelamos para vosso próprio entendimento a respeito. Que ele nos julgue, que ele nos condene, se é incapaz de negar que todas essas vossas divindades não passam de pessoas humanas. Se vosso entendimento se atreve a negar isso, será refutado por vossos próprios livros de histórias primitivas, pelos quais tomou ciência delas, pois esses livros se constituem incontestáveis testemunhas até nossos dias, seja das cidades onde elas nasceram, seja das regiões nas quais elas deixaram marcas de suas andanças, bem como, comprovadamente elas foram enterradas.
Examinarei agora, um por um, a esses vossos deuses tão numerosos e tão diferentes, novos e antigos, gregos, romanos, estrangeiros, de escravos e de adotados, privados e públicos, machos e fêmeas, rurais e urbanos, marítimos e militares? Não. É inútil até pesquisar todos os seus nomes, de modo que me contento com um resumo, e isso não para vossa informação, mas para que tenhais em mente o que colocastes em vossa coleção, porque indubitavelmente agis como se tivésseis esquecido tudo sobre eles. Nenhum de vossos deuses é mais antigo do que Saturno. Dele fizestes provir todas as vossas divindades, mesmo aquelas de maior dignidade e mais conhecidas.
O que, então, puder ser provado sobre o primeiro, poderá ser aplicado àqueles que dele provieram. De tempos tão primitivos quanto nos informam os livros, nem o grego Diodoro ou Thallos, nem Cássio Severo nem Cornélio Nepos, bem como nenhum outro escritor que escreveu sobre as coisas sagradas primitivas, se aventurou a dizer que Saturno era alguém mais senão um homem. Tanto quanto esse assunto depende dos fatos, nada mais encontro digno de fé do que isso: sabemos o local no qual Saturno se estabeleceu na própria Itália, após muitas expedições e após compartilhar da hospitalidade da Ática, obtendo cordiais boas vindas de Jano ou Janis como os Sálicos o chamavam.
A montanha na qual ele morou foi chamada Satúrnio. A cidade que ele fundou foi denominada Satúrnia até aos nossos dias. Por fim, toda a Itália, após ter surgido com o nome de Enótria, foi chamada Satúrnia por causa dele. Foi ele que por primeiro vos ensinou a arte de escrever e de cunhar moedas. Daí, aconteceu que ele passou a governar o Tesouro Público.
Mas, se Saturno foi um homem, teve, sem dúvida, uma origem humana e tendo uma origem humana não foi rebento nascido do céu e da terra. Como seus pais eram desconhecidos, não era incomum que tenha se chamado filho desses elementos dos quais nós todos parecemos nos originar. Quem não fala do céu e da terra como de um pai e de uma mãe numa forma de veneração e homenagem?
Não há até o costume, ainda existente entre nós, de dizer que alguém que nos é estranho ou que surgiu inesperadamente em nosso meio caiu dos céus? Do mesmo modo, aconteceu com Saturno, onde apareceu como um hóspede repentino e inesperado - porque o hóspede recebe em todo o lugar a designação de nascido do céu. Mesmo a tradição popular chama de filhos da terra as pessoas de parentesco desconhecido.
Eu não sei quantos homens naqueles tempos primitivos eram levados a assim procederem quando admirados pela visão de alguém estranho que surgia em seu meio, considerando-o divino, já que naquelas eras distantes até homens de cultura transformavam em deuses pessoas que eles sabiam terem morrido como homens, um dia ou dois antes, movidos pela tristeza geral que lhes acometia. Que essas observações de Saturno, tão concisas como são, sejam suficientes. Assim, também, pode-se provar que Júpiter era certamente homem, já que nascido de homem, e que uma após outra, todas essas divindades eram mortais como o primitivo rebento. »

CAPÍTULO XI - Já que não ousais negar que essas vossas divindades foram homens e deveis aceitar que foram elevadas à divindade após sua morte, examinemos no que isso implica. Antes de tudo deveis confirmar a existência de um Deus Altíssimo - alguém possuidor da divindade - que concedeu a tais homens a divindade. Pois que eles não poderiam assumir uma divindade que não lhes pertencesse e somente um Deus que a possuísse poderia conferi-la a alguém. Se não houvesse Alguém para criar divindades, seria inútil, também, sonhar em divindades criadas pois não existiria o seu Criador.
Certamente, se elas pudessem se tornar divindades por si mesmas, com uma divindade superior governando-as, elas nunca teriam se tornado homens. Se, então, há Alguém que é capaz de criar divindades, eu volto a examinar qual razão que a levaria a criálas. Não encontro outra razão senão de que o Deus Supremo precisava de administradores e ajudantes para exercer os ofícios de Deus. Mas, primeiramente, é uma idéia indigna pensar que Ele precisasse de ajuda de um homem, e, ainda, de um homem morto. Se Ele tivesse necessidade de assistência, poderia mais apropriadamente ter criado uma divindade desde seu nascimento.
Depois, nem sequer vejo algum motivo para tal. Pois todo esse universo, se existente por si mesmo e incriado, como afirma Pitágoras, ou criado por forças de um Criador, como afirmou Platão, foi, incontestavelmente, já, em sua organização original, programado, dotado, ordenado e governado com uma sabedoria perfeita. Não poderia ser imperfeito Alguém que tudo fez perfeito. Ninguém estaria esperando por Saturno e sua raça para assim fazê-lo.
Os homens ficam loucos quando se recusam a acreditar que o primeiríssimo impulso nasceu do céu, e, então, as estrelas piscaram, a luz brilhou, os trovões rugiram, e o próprio Júpiter temeu os relâmpagos que pondes em suas mãos.
O mesmo aconteceu com Baco, Ceres e Minerva, e não somente com o primeiro homem, quem quer que tenha sido, ante os quais toda espécie de frutos brotaram abundantemente do interior da terra, providenciados tão somente para prover e sustentar o homem que depois disso pôde existir. Em consonância, dizem que essas necessidades da vida foram descobertas, não criadas.
As coisas que alguém descobre, já antes existem, e o que tem uma preexistência não deve ser visto como pertencente àquele que o descobriu mas àquele que o criou, porque certamente esse Ser existia antes daquilo que poderia ser descoberto.
 Se Baco foi elevado à divindade porque foi o descobridor do vinho, entretanto Lúculo que primeiro introduziu a cerejeira do Ponto na Itália não o foi porque, como descobridor de uma nova fruta, não se arrogou o mérito de ter sido seu criador nem de se galardoar com honras divinas.
Portanto, se o universo existiu desde o início provido de seu sistema, agindo sob determinadas leis para a execução de suas funções, não há nenhuma razão para constituir a humanidade em divindade, porque as situações e poderes que atribuís a vossas divindades existiram desde o começo, exatamente como deveriam ser, embora não as tenhais nunca deificado. Mas apontais outra razão, dizendo-nos que a atribuição de divindade foi um meio dignificá-las. E daí sois concordes, concluo, de que o Deus que é Deus é de transcendente retidão - Alguém que não quer nem insensata, nem inadequada, nem desnecessariamente outorgar uma recompensa tão grande. Pediria que, então, considerásseis se as atitudes de vossas divindades são de tal qualidade que as elevassem aos céus e não antes as submergissem no mais profundo do Tártaro - o lugar que considerais, como a maioria, como um cárcere de punições eternas.
Ora, pois que nesse lugar temível são dignos de ser lançados todos aqueles que pecam contra a piedade filial, assim como os culpados de incesto com irmãs e sedutores de viuvas, os raptores de virgens e corruptores de menores, os homens de temperamentos furiosos, os assassinos, os ladrões, os enganadores, todos, em resumo, que seguem os exemplos de vossas divindades.
Não, porém, alguém que pode provar estar inocente de crimes e vícios, a não ser o de afirmar que essas divindades foram sempre humanas. Além de não poderdes negar isso, tendes, também, em seus desalmados crimes mais uma razão para não acreditardes que tenham sido elevados à divindade após sua morte. Porque se legislais com verdadeiro propósito de punir tais crimes, se cada homem virtuoso dentre vós se nega a ter qualquer correspondência, conversa, intimidade com os culpados e vis, como, diferentemente, o Deus Altíssimo os tomaria seus pares para compartilhar de sua Majestade?
Em que posição ficaria se fosse companheiro daqueles aos quais adorais? Vossas deificações é uma afronta aos céus. Deificais vossos mais vis criminosos quando quereis agradar vossos deuses.
Vós os honrais concedendo honras divinas a seus companheiros. Mas para não mais falar de uma maneira de agir tão indigna, há homens virtuosos, puros e bons. Contudo, quantos desses homens nobres não relegastes às regiões da condenação? Como fizestes a Sócrates, tão renomado por sua sabedoria; Aristides, por sua justiça; Temístocles, por sua boa sorte; Creso por sua riqueza; Demóstemes por sua eloquência.
Qual dos vossos deuses é mais notável por sua seriedade e sabedoria do que Catão; mais justo e combatente do que Cipião? Qual deles mais magnânimo do que Pompeu; mais próspero do que Silas; de maior riqueza do que Creso, mais eloqüente do que Túlio?
Quão mais digno seria para o Deus Supremo esperar que Ele pudesse tomar tais homens para serem seus pares celestes, sabedor como Ele deve ser de suas mais dignas qualidades! Ele está em vexame, suponho, e fechou os portões celestes. Agora, certamente sente vergonha por cauda dessas sumidades que estariam a murmurar, nas regiões infernais, contra sua escolha. »

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