terça-feira, 15 de agosto de 2023

237 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo (Capítulos 1 - 12).

 



237

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo (Capítulos 1 - 12)

02 de setembro de 2023

 


O livro X apresenta uma interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.

 

Capítulo 1.

1.      Não há qualquer dúvida de que toda palavra humana está sempre exposta à contradição, porque, quando há diferentes movimentos das vontades, são também diferentes os modos de pensar das mentes.

2.      Quando se luta com paixão contra os juízos dos adversários, se contradizem as afirmações a que nos opomos. Embora cada palavra conforme a verdade seja perfeita, no entanto, se cada um prefere algo diferente, a palavra verdadeira se expõe à réplica dos contraditores, porque o erro de uma vontade insensata ou perversa se afirma contra a verdade que não entende ou não quer aceitar.

3.      O desejo de contradizer persiste, inabalável, e não tem medida a obstinação em contradizer.

4.      A vontade não se submete à razão, e o interesse não se põe a serviço da verdadeira doutrina. Procuramos razões para provar o que desejamos com empenho e adaptamos a doutrina aos nossos desejos.

5.      Então será mais de nome do que de realidade, a doutrina que imaginamos, e já não será mantida a norma da verdade, mas a do que agrada, isto é, a que a vontade usará para defender o que quer, e não a que estimulará a vontade pelo conhecimento da verdade racional.

6.      Desses vícios das vontades caprichosas, surgem as objeções das tendências contrárias e, entre a afirmação do verdadeiro e a defesa do que agrada, trava-se uma luta pertinaz, visto que a verdade se mantém e a vontade caprichosa se defende.

7.      Aliás, se a vontade não precedesse a razão, mas, mediante a compreensão da verdade, fosse movida a querer o verdadeiro, nunca a doutrina originada na vontade seria desejada.

8.      Todo desejo de doutrina seria movido pela razão, e a palavra verdadeira não encontraria oposição. Ninguém defenderia como verdadeiro o que deseja, mas sim começaria a querer o que é verdadeiro.

 

Capítulo 2.

9.      O Apóstolo não ignorava a existência destas vontades viciadas e, entre muitos preceitos para o anúncio da fé e a pregação da Palavra, escreveu a Timóteo: Virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo seus próprios desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão os ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas (2Tm 4,3-4).

10.  Quando, levados pelo desejo da impiedade, não puderem suportar a sã doutrina, então reunirão os mestres que desejam, isto é, os que acumulam argumentos doutrinários adaptados a seus desejos. Não quererão ser ensinados, mas congregarão doutores para dizer-lhes o que querem, a fim de que o próprio acúmulo de pesquisadores e de mestres escolhidos e reunidos por eles satisfaça sua ânsia.

11.  Esta tão grande loucura da estulta irreligiosidade ignora qual é o espírito que os leva a não suportar a sã doutrina e desejar a corrompida.

12.  Aprenda, pois, do mesmo Apóstolo, escrevendo a Timóteo: O Espírito diz expressamente que nos últimos tempos alguns renegarão a fé, dando atenção a espíritos sedutores e a doutrinas demoníacas por causa da hipocrisia dos mentirosos (1Tm 4,1-2).

13.  Que proveito se encontra na doutrina procurada mais pelo que seduz do que pelo que ensina? Que devoção pela doutrina verdadeira significa não desejar o que se deve ensinar e criar uma doutrina adaptada aos nossos desejos?

14.  Estas coisas atraem os espíritos sedutores e confirma as mentiras de uma religião simulada. A hipocrisia mentirosa acompanha o abandono da fé, e continua a haver piedade nas palavras, mas não na consciência.

15.  Tornam ímpia esta mesma piedade aparente por meio de palavras mentirosas e corrompem, com falsas doutrinas, a santidade da fé, visto que se trata de uma doutrina elaborada segundo seus desejos, e não de uma doutrina de acordo com a fé evangélica.

16.  Incitados pelo prurido de ouvir e pelo impaciente deleite de escutar a nova pregação conforme seus desejos, afastados inteiramente da escuta da verdade, prendem-se totalmente às fábulas e procuram dar uma aparência de verdade ao que dizem, porque não podem ouvir nem dizer o que é verdadeiro.

 

Capítulo 3.

17.  Chegamos a este dificílimo tempo a que se refere a profecia apostólica. Procuram-se agora mais os mestres do que é criado, do que os que pregam a Deus.

18.  Os homens se preocupam mais com desejos humanos do que com o ensinamento da fé verdadeira.

19.  O prurido de ouvir levou-os a escutar o que desejam ouvir, de tal modo que, para os doutores reunidos agora, só vale a pregação que afasta o Deus Unigênito do poder e da verdadeira natureza de Deus Pai, o que, para nossa fé, significa que é um Deus de outro gênero ou que não é Deus.

20.  Com uma confissão mortífera e ímpia, em ambos os casos declaram que há dois deuses que têm uma divindade diferente ou negam que seja Deus Aquele que possui uma natureza que vem de Deus pela natividade. Para os ouvidos alheios à verdade e voltados para fábulas, isto é muito agradável, visto que não suportam ouvir a sã doutrina e expulsam-na, como aos seus pregadores.

 

Capítulo 4.

21.  Embora muitos reúnam mestres segundo os seus desejos e rejeitem a sã doutrina, a verdade da pregação não estará exilada dos santos. Exilados, falamos pelos livros, e a palavra de Deus, que não pode ser ligada, livremente se difunde, advertindo ser este o tempo da profecia apostólica.

22.  Pois quando o anúncio da verdade é recebido com impaciência, e são numerosos os mestres que ensinam de acordo com os desejos humanos, já não se duvida terem chegado aqueles tempos.

23.  E a verdade está no exílio, juntamente com os pregadores da fé incorrupta. Não nos lamentamos por causa destes tempos, ao contrário, nos alegramos, porque a iniquidade se mostrará neste tempo de nosso exílio, afastando os que pregam a sã doutrina e procurando para si numerosos mestres, segundo seus desejos.

24.  Em nosso exílio estamos alegres e exultamos no Senhor, porque se realiza em nós, em plenitude, a profecia apostólica.

 

Capítulo 5.

25.  Sustentamos, assim penso, nos livros anteriores, a profissão da fé sincera e da verdade incontaminada. Embora, devido à natureza humana, não haja palavra livre de contradição, julgamos, no entanto, ter dado todas as respostas de um modo tal que, a não ser afirmando a impiedade, ninguém poderia contradizer-nos.

26.  Mostrei o sentido verdadeiro das frases tiradas dos Evangelhos pelos hereges com artifício mentiroso, e sua verdade se patenteou tão claramente que já não lhes resta a desculpa da ignorância, mas são obrigados a confessar a impiedade.

27.  Também agora, por dom do Espírito Santo, organizamos a demonstração de toda a fé, de tal modo que nem mesmo possam inventar acusações contra nós. Pois costumam encher os ouvidos dos ignorantes, afirmando que nós negamos o Filho quando pregamos a unidade da divindade, e que confessamos um Deus solitário citando a palavra do Evangelho: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30).

28.  Dizem também que nós afirmamos que o Deus inascível, descendo até a Virgem, nasceu como Homem, e, referindo-se à economia da encarnação, disse: Eu, para indicar a sua divindade, e acrescentou: e o Pai, para mostrar que Ele é o pai de sua humanidade, e, como Ele é Homem e Deus, disse de si mesmo: Somos Um.

 

Capítulo 6.

29.  Nós, porém, afirmamos que o Filho subsiste por sua geração fora do tempo e pregamos que o Deus Filho é Deus, de natureza não distinta da natureza de Deus Pai.

30.  Não dizemos ser igual ao que é inascível, enquanto é inascível, mas sim que não é diferente dele, pela geração como Unigênito. Os dois são um só, não porque o que é apenas um receba dois nomes, mas sim pelo nascimento próprio da natureza divina.

31.  Dizemos que, em nossa fé, não se proclamam dois deuses de gêneros diferentes. Ao confessar o mistério do Deus Unigênito, não se ensina que Deus é singular porque é único, mas sim que no Pai se expressa e existe o Filho, porque nele está a natureza e o nome do Pai.

32.  O Pai mostra-se e permanece no Filho, pois este não pode ser chamado de Filho, nem existir, se não provém do Pai. É também imagem viva da natureza viva, assinalado para ser, por natureza, a forma de Deus em Deus. Possui de tal maneira a sua mesma essência e poder que nele nem a obra, nem a palavra, nem o aspecto são diferentes dos do Pai.

33.  Ele é a imagem do seu Princípio, possui de modo natural a natureza deste, e por meio de sua imagem natural, Aquele que é sua origem agiu, falou e foi visto.

 

Capítulo 7.

34.  Proclamando a intemporal e inenarrável geração do Unigênito, que está além de toda a compreensão da inteligência humana, ensinamos também o mistério de Deus nascido como Homem pelo parto da Virgem.

35.  Demonstramos que, segundo a economia da Encarnação, ao esvaziar-se da forma de Deus, assumiu a forma de servo, sem que a forma humana enfraquecesse a natureza de Deus. Salvo, no Homem, o poder da divindade, foi concedido ao Homem o poder de Deus.

36.  Quando Deus nasceu como Homem, não nasceu para deixar de ser Deus, mas para que, continuando Ele a ser Deus, o Homem nascesse como Deus. Seu nome é Emanuel (Mt 1,23), isto é, Deus conosco.

37.  Não se trata de um rebaixamento de Deus até o Homem, mas de elevação do Homem até Deus (cf. Jo 17,5). Quando pede para ser glorificado, certamente isto não favorece à natureza de Deus, mas à humanidade assumida, pois pede aquela glória que era a sua, junto de Deus, antes que o mundo existisse.

 

Capítulo 8.

38.  Respondendo também às suas estultíssimas declarações, descemos até a explicação do desconhecimento da hora. Mesmo que, como eles dizem, esta hora não fosse conhecida pelo Filho, isto não redundaria em injúria à divindade do Filho Unigênito, porque seria contrário à natureza que a natividade o fizesse retroceder à existência sem princípio do Deus inascível, já que o Pai reservara a seu poder o momento de designar o dia, para demonstrar a autoridade daquele que é Inascível.

39.  Não se pode entender que, por isso, a natureza do Filho seja fraca, pois nela existe, por causa da natividade, tudo quanto uma geração perfeita pode dar.

40.  Não se pretende atribuir a ignorância do Deus Unigênito a respeito do dia e hora ao fato de ser Ele diferente de Deus quanto à divindade.

41.  Afirma-se, sim, o poder do que não tem princípio, próprio do Pai, para demonstrar, contra os sabelianos heréticos, que só nele existe a força que não pode nascer nem pode ter princípio.

42.  Como ensinamos, a declaração de que não conhece dia não significa fraqueza proveniente da ignorância, mas pertence ao desígnio de não falar.

43.  Devemos também extirpar toda ocasião de ímpias afirmações e examinar todas as heréticas pregações da blasfêmia, para que a verdade do Evangelho, graças àquilo mesmo que parecia obscurecê-la, brilhe mais intensamente.

 

Capítulo 9.

44.  Muitos deles pretendem que, por causa do temor da paixão e da fraqueza diante do sofrimento, não haveria nele a natureza do Deus impassível. Dizem que quem temeu e sofreu não poderia ter a segurança do poder que não teme, nem a incorrupção do Espírito que não sofre, mas, sendo por natureza inferior a Deus Pai, tremeu de medo na paixão humana e deu grandes gemidos pela atrocidade do sofrimento corporal.

45.  Apoiam sua afirmação de impiedade no que está escrito: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38); Pai, se possível, passe de mim este cálice (Mt 26,89), e também: Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Mt 27,46). Acrescentam ainda: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23,46).

46.  Todas estas palavras de nossa piedosa fé, eles as roubam para empregá-las a serviço de sua impiedade. Dizem que temeu porque estava triste e pediu que o cálice fosse afastado, que sofreu porque se queixou de ter sido abandonado por Deus na paixão, como também foi fraco porque entregou o espírito ao Pai.

47.  A aflição não é compatível com a total semelhança com Deus, em virtude do seu nascimento como Unigênito, pois o pedido para que se afastasse o cálice, a queixa na desolação, e a entrega do espírito atestam sua fraqueza e inferioridade em relação ao Pai.

 

Capítulo 10.

48.  Em primeiro lugar, antes de demonstrarmos, por estas palavras, que não havia nele nada que o fizesse temer por si mesmo, e que não havia nele nenhuma fraqueza, temos de perguntar o que pareceu causar-lhe temor, para que tivesse medo de uma dor intolerável.

49.  Julgo que não atribuem outra causa ao seu temor, a não ser a paixão e a morte. Interrogo aqueles que assim pensam, se há motivo para que temesse morrer Aquele que, desejando tirar dos Apóstolos todo o terror da morte, os exortou à glória que adviria pelo martírio, dizendo: Aquele que não toma sua cruz e me segue, não é digno de mim. Aquele que acha sua vida, perdê-la-á; e quem a perde por minha causa a encontrará (Mt 10,38-39).

50.  Se morrer por Ele é vida, que se pode pensar que causou dor, no mistério da morte, Àquele que recompensa com a vida os que morrem por Ele? Como pode exortar a não temer aqueles que matam o corpo, se a morte o aterrorizou, pelo temor do sofrimento corporal?

 

Capítulo 11.

51.  Além disso, que dor temeria na morte quem fosse morrer na liberdade de seu poder? Para o gênero humano, uma força exterior pode causar a morte, como a febre, as chagas, uma queda. Calamidades, quando atacam, aceleram-na, e a própria natureza de nosso corpo, vencida pela velhice, traz a nossa morte.

52.  O Deus Unigênito, porém, tendo o poder de entregar a alma e de retomá-la, a fim de cumprir totalmente em si o mistério da morte, depois de beber o vinagre, atestou ter consumado em si toda a obra da paixão humana e, inclinando a cabeça, entregou o Espírito (cf. Jo 19,30).

53.  Se foi deixado à natureza do homem o direito de espontaneamente exalar o Espírito e descansar na morte e se não acontece, antes, que, desfeito o corpo, afaste-se a alma debilitada ou que, tendo sido os membros rasgados, fendidos, feridos, o espírito se esvaia como se tivesse sido violado em sua sede, então pode ser que o medo de morrer tenha abalado o Senhor da vida, se ao entregar o Espírito, morreu, não por liberdade sua, usando do poder de morrer. Porém, se morreu porque quis e por si mesmo entregou o Espírito, não pode ter havido terror da morte porque Ele tem o poder de morrer.

 

Capítulo 12.

54.  Mas talvez, pela timidez própria da ignorância humana, tivesse medo deste mesmo poder de morrer. Porque, embora morresse porque quis, talvez tivesse medo pelo fato de ter de morrer.

55.  Se houver alguém que assim julgue, explique se a morte teria sido terrível para o corpo, ou para o Espírito.

56.  Se disser que para o corpo, acaso ignora que o Santo não veria a corrupção (cf. Sl 15,10) e que dentro de três dias ressuscitaria o templo de seu corpo? Se para o Espírito a morte é terrível, no entanto Lázaro, no seio de Abraão, se alegrava. Cristo acaso iria temer o caos do inferno?

57.  Tudo isto não tem sentido e é ridículo que temesse Aquele que tem o poder de entregar a alma e retomá-la e que iria morrer por sua livre vontade, para operar o mistério da salvação da vida humana.

58.  Não há temor da morte naquele que quer morrer e tem o poder de não permanecer morto por muito tempo, pois a vontade de morrer e o poder de ressuscitar excluem o temor, já que a morte não pode ser temida quando se quer morrer e se pode voltar a viver.

 

 

 

1.      O que você destaca na fala do seu irmão/ã?

2.      O que você destaca no texto?

3.      Como ele é útil para sua espiritualidade?

 

 

 

 

domingo, 6 de agosto de 2023

236 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulos 68 - 75).

 


236

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulos 68 - 75)

12 de agosto de 2023


 


 

Capítulo 68.

1.      É evidente que a ignorância de Deus não é ignorância, mas mistério. Em seu desígnio de fazer, declarar ou demonstrar, desconhece de modo que conheça e não desconhece enquanto desconhece.

2.      Contudo, vejamos se é possível que Ele seja tão fraco que não possa saber aquilo que o Pai sabe, embora seja poderoso para conhecer os pensamentos dos corações humanos.

3.      Uma natureza mais forte pode penetrar nos movimentos vitais de uma natureza inferior e atravessá-la com seu poder, por ser mais forte, mas não pode penetrar em naturezas mais fortes, por ser mais fraca.

4.      As coisas leves estão sujeitas a ser atravessadas pelas mais pesadas, as ralas, pelas densas, as líquidas, pelas sólidas e, ao  contrário, as pesadas não cedem às leves, nem as densas às ralas, nem as sólidas às líquidas, já que o que é forte não se deixa penetrar pelo que é fraco, e o que é fraco pode ser atravessado pelo que é forte.

5.      Por este motivo, os ímpios dizem que o Filho ignora os pensamentos de Deus Pai, porque, sendo fraco, não pode penetrar no que é mais forte e, sendo frágil, não pode atravessar o que é mais firme.

 

Capítulo 69.

6.      Se alguém não apenas ousa dizer, com palavras temerárias, estas coisas a respeito do Deus Unigênito, mas ainda se atreve a pensar com ímpio coração, saiba que o Apóstolo, escrevendo aos Coríntios, assim afirmava sobre o Espírito Santo: A nós, porém, Deus nos revelou pelo Espírito. Pois o Espírito tudo perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Pois, quem dentre os homens sabe o que se passa no homem, a não ser o espírito do homem que está nele? Assim também o que há em Deus ninguém conhece, a não ser o Espírito de Deus (1Cor 2,10-11).

7.      Deixando de lado os inúteis exemplos de coisas corpóreas, consideremos a Deus de Deus e Espírito do Espírito mais pelo seu poder que pela sua condição terrena.

8.      Acreditemos, não por um juízo nosso, mas pela declaração divina, confiando na palavra de quem diz: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9). Não ignoremos Aquele que diz: por minhas obras, crede que o Pai está em mim, e eu no Pai (Jo 10,38), nem Aquele que diz: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30).

9.      Se estas palavras, usadas de acordo com nossa maneira humana de entender, confirmam nossa ideia das coisas, não tem diferença de natureza em relação Àquele em quem é visto por meio da inteligência nem é diferente, no modo de ser, Aquele que, tendo em si o que permanece nele, está, por sua vez, no que permanece nele.

10.  Procura entender a unidade, já que a natureza não é divisível. Percebe ainda o verdadeiro mistério da natureza indivisível, pois o que é Um é espelho do que é Um.

11.  Mas não é como um espelho cujo esplendor reproduz a forma da imagem exterior e sim como uma natureza viva, não diferente da natureza viva, porque toda ela provém da natureza do Pai, já que, por ser unigênita, tem em si o Pai e, por ser Deus, permanece no Pai.

 

Capítulo 70.

12.  Os hereges, não podendo modificar estas coisas explicadas pelo Senhor para dar a conhecer o mistério da natividade, esforçam-se por contorná-las, referindo-as à concórdia das vontades, de sorte que, no Deus Pai e no Deus Filho, não exista unidade da divindade, mas da vontade, como se a palavra da divina doutrina carecesse de meios para expressar-se.

13.  Talvez o Senhor não tivesse podido dizer: Eu e o Pai queremos a mesma coisa, em vez de: Eu e o Pai somos Um, ou então, sendo incapaz de falar, não teria podido dizer: Quem vê minha vontade, vê também a vontade de meu Pai, o que seria o mesmo que: Quem me vê, vê também o Pai.

14.  Talvez não pudesse ser dito em linguagem divina: A vontade de meu Pai está em mim e a minha vontade está em meu Pai, e por isso Ele devesse dizer: Eu estou no Pai, e o Pai está em mim (Jo 14,11).

15.  Tais coisas são todas torpes, ineptas e ímpias. O bom senso não aceita a opinião descabida segundo a qual o Senhor não teria podido dizer o que queria ou teria dito algo diverso do que disse. Sabemos que usou parábolas e alegorias. Mas isto é diferente de confirmar os ditos por exemplos, garantir a dignidade do discurso pela interpretação dos provérbios ou ajustar-se ao modo de falar do seu tempo.

16.  Na unidade do discurso do qual tratamos não há lugar para outra interpretação das palavras, que devem ser entendidas tais quais soam.

17.  Se são Um porque querem a mesma coisa, as naturezas separáveis não podem querer o mesmo. Pela diversidade de gêneros, as diversas vontades não podem concordar, por causa da diversidade de natureza.

18.  Como podem querer uma só coisa quando não há unidade do conhecimento, se conhecimento e ignorância não podem unir-se na mesma vontade? E se ciência e ignorância se contradizem, não podem os contrários querer a mesma coisa.

 

Capítulo 71.

19.  Talvez o Filho, quando diz que somente o Pai conhece, confirme que ignora o que dissera não conhecer. Se não tivesse dito com toda certeza que o Pai é o único a conhecer, isto redundaria em grave perigo para a nossa compreensão, pois poderíamos talvez julgar que Ele desconhecia.

20.  Em sua ignorância, porém, há mais um desígnio de ocultar o conhecimento do que um desconhecimento devido à sua natureza.

21.  Quando diz que somente o Pai sabe, não se deve deduzir daí que Ele ignore, porque, como acima dissemos, em Deus, conhecer não significa aprender alguma coisa, mas refere-se ao momento em que Ele deve dizer algo.

22.  Que somente o Pai conheça não quer dizer que o Filho desconheça. O Filho diz desconhecer para que também os outros não saibam. Por dizer que somente o Pai conhece não se conclua que Ele não conhece. Se foi dito que Deus conheceu que era amado por Abraão, quando não o ocultou a Abraão (cf. Gn 22,12), também é preciso dizer que o Pai conhece o dia porque não o ocultou ao Filho, visto que Deus não adquire a ciência por um conhecimento repentino, mas revela o que conhece ao longo do tempo.

23.  Se o Filho, de acordo com o mistério divino, ignora o dia, para não revelá-lo, deve-se reconhecer o Pai como o único que sabe porque é Ele que revela.

 

Capítulo 72.

24.  Longe de nós julgar que haja novidade, por causa de mudanças corporais, no Pai e no Filho, como se o Pai ora falasse ao Filho, ora calasse.

25.  Lembramo-nos de ter vindo do céu uma voz para que as palavras do Pai confirmassem em nós o mistério do Filho, como diz o Senhor: esta voz não ressoou para mim, mas para vós (Jo 12,30).

26.  A natureza de Deus não precisa das diferentes ações necessárias ao homem para falar: movimento da língua, posição da boca, emissão do sopro, extensão do ar.

27.  Deus é simples, deve ser entendido por nossa religião e professado por nossa piedade.

28.  Não devemos tentar compreendê-lo com a nossa razão, mas adorá-lo, porque nossa inteligência, acanhada e fraca por natureza, não pode abranger o mistério da natureza infinita e poderosa.

29.  A divindade não se compõe de várias partes, de modo a haver nela o ato de vontade depois da indecisão, a palavra depois do silêncio, a ação depois do lazer.

30.  Não se pense que só pode querer alguma coisa se for levado a querer, nem se imagine que não pode falar se o som das suas palavras não for precedido pelo silêncio, ou que não pode fazer alguma coisa, se não começar a trabalhar.

31.  Aquele que deu todas as leis à natureza não se submete às leis da natureza, nem é impedido de agir, de modo algum, por qualquer fraqueza ou mudança, visto que possui um poder ilimitado, de acordo com o que foi dito pelo Senhor: Pai, a ti tudo é possível (Mc 14,36).

32.  Deus pode mais do que percebe o senso humano.

33.  Ele mesmo não se exclui dos atributos divinos da onipotência, ao dizer: Tudo o que o Pai faz, o Filho o faz igualmente (Jo 5,19). Onde não há fraqueza, não há dificuldade, porque a dificuldade impede que o poder seja exercido se não for suficientemente forte, pois a natureza da dificuldade reside na fraqueza e, se o seu poder não tem limite, ela não está submetida às leis da fraqueza.

 

Capítulo 73.

34.  Tais coisas foram demonstradas por nós para que não se pense que Deus falou ao Filho depois de estar calado, ou que, depois de ignorar, o Filho veio a saber.

35.  Nossa inteligência precisa ser instruída com meios adequados à nossa natureza, que não pode entender que se conheça algo a não ser por intermédio de alguém que fale e supõe que, para saber, deve-se deixar de ignorar.

36.  O Filho não conhece o dia, porque se cala, e diz que somente o Pai sabe, porque somente Ele não o esconde de si mesmo. Mas não se refere, como eu disse, às dificuldades da sua natureza, como se conhecesse quando deixa de ignorar, ou como se ouvisse quando o Pai começa a falar. Sem ambiguidade, declarou a sua unidade de natureza com o Pai, enquanto Unigênito, quando disse: Tudo que o Pai tem é meu (Jo 16,15).

37.  Não fala de algo a ser obtido, porque uma coisa é que aquilo que é do Pai seja seu, como se se tratasse de algo alheio ao seu ser pessoal, outra coisa é possuir, Ele mesmo, naquilo que é seu, o seu próprio ser.

38.  Uma coisa é possuir o céu, a terra e o mundo todo, outra é definir-se a si mesmo por aquilo que pertence ao Pai, de modo que o que é seu seja seu, não por estar-lhe submetido como algo exterior, mas porque Ele mesmo tem seu ser a partir do que é seu.

39.  Ao dizer que tudo o que é do Pai é seu, refere-se à natureza da divindade, não à possessão comum do que lhe tenha sido dado, pois falava do que o Espírito Santo iria receber dele. Acrescentou: Tudo o que o Pai tem é meu, por isso vo-lo disse: Ele receberá do que é meu (Jo 16,15), para que não se julgasse que, ao receber do que era dele, não fosse também receber do Pai, ou que, ao receber do Pai, não fosse receber também do que é seu.

40.  Nem o Espírito Santo, que é o Espírito de Deus, recebeu das criaturas, como se pudesse parecer que recebia delas, porque todas são de Deus.

41.  Tudo o que é do Pai é seu, e não se deve pensar que o que o Espírito recebe do Filho não é recebido também do Pai, visto que se deve entender que tudo o que é do Pai é também do Filho.

 

 

Capítulo 74.

42.  Por conseguinte, nesta natureza não há mudança, interrogação ou resposta, para que, depois da ignorância venha o conhecimento, depois do silêncio, a interrogação, depois da interrogação, a escuta.

43.  Permanecendo sempre perfeita no mistério da unidade, do mesmo modo que nasceu de Deus, também recebeu de Deus a plenitude. Tendo a plenitude, tem o que pertence à plenitude, isto é, o conhecimento e a vontade.

44.  O Filho não começou a saber o que o Pai sabe por ter perguntado e não quer o mesmo que o Pai porque Ele o tenha ordenado. Como tudo o que é do Pai é seu, o Filho possui uma natureza tal que não quer nem sabe nada diferente daquilo que o Pai sabe ou quer.

45.  Para revelar a sua natividade, refere-se frequentemente à sua pessoa, como quando diz: não vim fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (Jo 6,38).

46.  Faz a vontade do Pai, não a sua, pois, ao referir-se à vontade daquele que o enviou, indica o Pai; mas que queira o mesmo, mostra-o sem ambiguidade ao dizer: Pai, aqueles que me deste, quero que, onde eu estou, também eles estejam comigo (Jo 17,24).

47.  Portanto, como quer o Pai, estejamos com Cristo, no qual, segundo o Apóstolo, Ele nos escolheu antes da criação do mundo (cf. Ef 1,4). A vontade quanto à natureza é a mesma que, para indicar a natividade, se distingue na vontade.

 

Capítulo 75.

48.  O Filho não ignora o que o Pai não ignora. Mas, se só o Pai conhece, daí não se deduz que o Filho não conheça, pois permanecem na unidade da natureza.

49.  Como não conheceria o Filho, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência? Este desconhecimento pertence ao desígnio divino do silêncio.

50.  Interrogado pelos Apóstolos a respeito dos tempos, respondeu: Não vos compete conhecer os tempos e os momentos, que o Pai reservou a seu poder (At 1,7).

51.  Nega-lhes o conhecimento e não apenas o nega, mas proíbe que se preocupem com ele, pois não lhes compete conhecer os tempos.

52.  Depois da ressurreição, interrogam a respeito dos tempos os mesmos que, interrogando antes, ouviram-no dizer que nem o Filho conhecia.

53.  Não parecem ter entendido literalmente que o Filho não sabia, quando eles mesmos perguntam de novo, como a quem sabe. Entendendo, porém, que o mistério do desconhecimento pertencia ao desígnio de calar, depois da ressurreição julgam ter chegado o tempo de falar, e então interrogam.

54.  A eles o Filho já não diz que desconhece, mas sim que não lhes é dado conhecer os tempos que o Pai guarda em seu poder.

55.  Se, portanto, os Apóstolos compreendem que, se o Filho não conhece, isto vem da Economia, não da fraqueza, nós diremos que o Filho não conhece o dia, porque não é Deus? O Pai guardou em seu poder este dia, para que não chegasse ao conhecimento humano, e o Filho, interrogado antes, disse não conhecer.

56.  Agora, não responde que não sabe, mas que não compete a eles conhecer.

57.  Acaso o Pai não fixou os tempos, não por seu conhecimento, mas por seu poder? Pois como dia e momento são nomes do tempo, não se pode pensar que ignorasse o dia e o momento do restabelecimento do reino de Israel justamente Aquele que o iria restabelecer.

58.  Ensina-nos a compreender sua natividade quando atribui exclusivamente ao Pai este poder e não diz que Ele mesmo não sabe o dia.

59.  Mostrando que o poder de conhecer não lhes foi concedido, confessou que isto pertence ao mistério do poder do Pai.

 

 

1.      O que você destaca na fala do seu irmão/ã?

2.      O que você destaca no texto?

3.      Como ele é útil para sua espiritualidade?