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Hilário
de Poitiers (315-368)
O Tratado da Santíssima Trindade
Livro
Nono (Capítulos 68 - 75)
12 de agosto de 2023
O livro IX refuta
os argumentos arianos sobre a inferioridade do Filho. Hilário demonstra que é preciso
distinguir em Cristo as duas naturezas e os diversos estágios, antes da
encarnação, na sua vida terrena e depois da ressurreição.
Capítulo
68.
1.
É evidente que a ignorância de Deus não
é ignorância, mas mistério. Em seu desígnio de fazer, declarar ou
demonstrar, desconhece de modo que conheça e não desconhece enquanto
desconhece.
2.
Contudo, vejamos se é possível que Ele
seja tão fraco que não possa saber aquilo que o Pai sabe, embora seja poderoso
para conhecer os pensamentos dos corações humanos.
3.
Uma natureza mais forte pode penetrar
nos movimentos vitais de uma natureza inferior e atravessá-la com seu poder,
por ser mais forte, mas não pode penetrar em naturezas mais fortes, por ser
mais fraca.
4.
As coisas leves estão sujeitas a ser atravessadas
pelas mais pesadas, as ralas, pelas densas, as líquidas, pelas sólidas e,
ao contrário, as pesadas não cedem às
leves, nem as densas às ralas, nem as sólidas às líquidas, já que o que é forte
não se deixa penetrar pelo que é fraco, e o que é fraco pode ser atravessado
pelo que é forte.
5.
Por este motivo, os ímpios dizem que o
Filho ignora os pensamentos de Deus Pai, porque, sendo fraco, não pode penetrar
no que é mais forte e, sendo frágil, não pode atravessar o que é mais firme.
Capítulo
69.
6.
Se alguém não apenas ousa dizer, com
palavras temerárias, estas coisas a respeito do Deus Unigênito, mas ainda se
atreve a pensar com ímpio coração, saiba que o Apóstolo, escrevendo aos
Coríntios, assim afirmava sobre o Espírito Santo: A nós, porém, Deus
nos revelou pelo Espírito. Pois o Espírito tudo perscruta, até mesmo as profundezas
de Deus. Pois, quem dentre os homens sabe o que se passa no homem, a não ser o
espírito do homem que está nele? Assim também o que há em Deus ninguém conhece,
a não ser o Espírito de Deus (1Cor 2,10-11).
7.
Deixando de lado os inúteis exemplos de
coisas corpóreas, consideremos a Deus de Deus e Espírito do Espírito mais pelo
seu poder que pela sua condição terrena.
8.
Acreditemos, não por um juízo nosso,
mas pela declaração divina, confiando na palavra de quem diz: Quem me vê, vê
também o Pai (Jo 14,9). Não ignoremos Aquele que diz: por minhas obras,
crede que o Pai está em mim, e eu no Pai (Jo 10,38), nem Aquele que diz: Eu
e o Pai somos Um (Jo 10,30).
9.
Se estas palavras, usadas de acordo com
nossa maneira humana de entender, confirmam nossa ideia das coisas, não tem
diferença de natureza em relação Àquele em quem é visto por meio da
inteligência nem é diferente, no modo de ser, Aquele que, tendo em si o que
permanece nele, está, por sua vez, no que permanece nele.
10. Procura
entender a unidade, já que a natureza não é divisível. Percebe ainda o
verdadeiro mistério da natureza indivisível, pois o que é Um é espelho do que é
Um.
11. Mas
não é como um espelho cujo esplendor reproduz a forma da imagem exterior e sim
como uma natureza viva, não diferente da natureza viva, porque toda ela provém
da natureza do Pai, já que, por ser unigênita, tem em si o Pai e, por ser Deus,
permanece no Pai.
Capítulo
70.
12. Os
hereges, não podendo modificar estas coisas explicadas pelo Senhor para dar a conhecer
o mistério da natividade, esforçam-se por contorná-las, referindo-as à concórdia
das vontades, de sorte que, no Deus Pai e no Deus Filho, não exista unidade da
divindade, mas da vontade, como se a palavra da divina doutrina carecesse de
meios para expressar-se.
13. Talvez
o Senhor não tivesse podido dizer: Eu e o Pai queremos a mesma coisa, em
vez de: Eu e o Pai somos Um, ou então, sendo incapaz de falar, não teria
podido dizer: Quem vê minha vontade, vê também a vontade de meu Pai, o
que seria o mesmo que: Quem me vê, vê também o Pai.
14. Talvez
não pudesse ser dito em linguagem divina: A vontade de meu Pai está em mim e
a minha vontade está em meu Pai, e por isso Ele devesse dizer: Eu estou
no Pai, e o Pai está em mim (Jo 14,11).
15. Tais coisas
são todas torpes, ineptas e ímpias. O bom senso não aceita a opinião descabida segundo
a qual o Senhor não teria podido dizer o que queria ou teria dito algo diverso
do que disse. Sabemos que usou parábolas e alegorias. Mas isto é diferente de
confirmar os ditos por exemplos, garantir a dignidade do discurso pela
interpretação dos provérbios ou ajustar-se ao modo de falar do seu tempo.
16. Na
unidade do discurso do qual tratamos não há lugar para outra interpretação das
palavras, que devem ser entendidas tais quais soam.
17. Se são
Um porque querem a mesma coisa, as naturezas separáveis não podem querer o mesmo.
Pela diversidade de gêneros, as diversas vontades não podem concordar, por causa
da diversidade de natureza.
18. Como
podem querer uma só coisa quando não há unidade do conhecimento, se
conhecimento e ignorância não podem unir-se na mesma vontade? E se ciência e
ignorância se contradizem, não podem os contrários querer a mesma coisa.
Capítulo
71.
19. Talvez
o Filho, quando diz que somente o Pai conhece, confirme que ignora o que dissera
não conhecer. Se não tivesse dito com toda certeza que o Pai é o único a conhecer,
isto redundaria em grave perigo para a nossa compreensão, pois poderíamos talvez
julgar que Ele desconhecia.
20. Em sua
ignorância, porém, há mais um desígnio de ocultar o conhecimento do que um
desconhecimento devido à sua natureza.
21. Quando
diz que somente o Pai sabe, não se deve deduzir daí que Ele ignore, porque,
como acima dissemos, em Deus, conhecer não significa aprender alguma
coisa, mas refere-se ao momento em que Ele deve dizer algo.
22. Que
somente o Pai conheça não quer dizer que o Filho desconheça. O Filho diz
desconhecer para que também os outros não saibam. Por dizer que somente o Pai
conhece não se conclua que Ele não conhece. Se foi dito que Deus conheceu que
era amado por Abraão, quando não o ocultou a Abraão (cf. Gn 22,12),
também é preciso dizer que o Pai conhece o dia porque não o ocultou ao Filho, visto
que Deus não adquire a ciência por um conhecimento repentino, mas revela o que conhece
ao longo do tempo.
23. Se o
Filho, de acordo com o mistério divino, ignora o dia, para não revelá-lo,
deve-se reconhecer o Pai como o único que sabe porque é Ele que revela.
Capítulo
72.
24. Longe
de nós julgar que haja novidade, por causa de mudanças corporais, no Pai e no
Filho, como se o Pai ora falasse ao Filho, ora calasse.
25. Lembramo-nos
de ter vindo do céu uma voz para que as palavras do Pai confirmassem em nós o
mistério do Filho, como diz o Senhor: esta voz não ressoou para mim, mas
para vós (Jo 12,30).
26. A natureza
de Deus não precisa das diferentes ações necessárias ao homem para falar: movimento
da língua, posição da boca, emissão do sopro, extensão do ar.
27. Deus é
simples, deve ser entendido por nossa religião e professado por nossa piedade.
28. Não devemos
tentar compreendê-lo com a nossa razão, mas adorá-lo, porque nossa inteligência,
acanhada e fraca por natureza, não pode abranger o mistério da natureza infinita
e poderosa.
29. A
divindade não se compõe de várias partes, de modo a haver nela o ato de vontade
depois da indecisão, a palavra depois do silêncio, a ação depois do lazer.
30. Não se
pense que só pode querer alguma coisa se for levado a querer, nem se imagine que
não pode falar se o som das suas palavras não for precedido pelo silêncio, ou
que não pode fazer alguma coisa, se não começar a trabalhar.
31. Aquele
que deu todas as leis à natureza não se submete às leis da natureza, nem é
impedido de agir, de modo algum, por qualquer fraqueza ou mudança, visto que
possui um poder ilimitado, de acordo com o que foi dito pelo Senhor: Pai, a
ti tudo é possível (Mc 14,36).
32. Deus
pode mais do que percebe o senso humano.
33. Ele
mesmo não se exclui dos atributos divinos da onipotência, ao dizer: Tudo o
que o Pai faz, o Filho o faz igualmente (Jo 5,19). Onde não há fraqueza,
não há dificuldade, porque a dificuldade impede que o poder seja exercido se não
for suficientemente forte, pois a natureza da dificuldade reside na fraqueza e,
se o seu poder não tem limite, ela não está submetida às leis da fraqueza.
Capítulo
73.
34. Tais
coisas foram demonstradas por nós para que não se pense que Deus falou ao Filho
depois de estar calado, ou que, depois de ignorar, o Filho veio a saber.
35. Nossa inteligência
precisa ser instruída com meios adequados à nossa natureza, que não pode entender
que se conheça algo a não ser por intermédio de alguém que fale e supõe que, para
saber, deve-se deixar de ignorar.
36. O
Filho não conhece o dia, porque se cala, e diz que somente o Pai sabe, porque
somente Ele não o esconde de si mesmo. Mas não se refere, como eu disse, às
dificuldades da sua natureza, como se conhecesse quando deixa de ignorar, ou
como se ouvisse quando o Pai começa a falar. Sem ambiguidade, declarou a sua
unidade de natureza com o Pai, enquanto Unigênito, quando disse: Tudo que o
Pai tem é meu (Jo 16,15).
37. Não
fala de algo a ser obtido, porque uma coisa é que aquilo que é do Pai seja seu,
como se se tratasse de algo alheio ao seu ser pessoal, outra coisa é possuir,
Ele mesmo, naquilo que é seu, o seu próprio ser.
38. Uma
coisa é possuir o céu, a terra e o mundo todo, outra é definir-se a si mesmo
por aquilo que pertence ao Pai, de modo que o que é seu seja seu, não por
estar-lhe submetido como algo exterior, mas porque Ele mesmo tem seu ser a
partir do que é seu.
39. Ao dizer
que tudo o que é do Pai é seu, refere-se à natureza da divindade, não à
possessão comum do que lhe tenha sido dado, pois falava do que o Espírito Santo
iria receber dele. Acrescentou: Tudo o que o Pai tem é meu, por isso vo-lo
disse: Ele receberá do que é meu (Jo 16,15), para que não se julgasse que,
ao receber do que era dele, não fosse também receber do Pai, ou que, ao receber
do Pai, não fosse receber também do que é seu.
40. Nem o
Espírito Santo, que é o Espírito de Deus, recebeu das criaturas, como se
pudesse parecer que recebia delas, porque todas são de Deus.
41. Tudo o
que é do Pai é seu, e não se deve pensar que o que o Espírito recebe do Filho
não é recebido também do Pai, visto que se deve entender que tudo o que é do
Pai é também do Filho.
Capítulo
74.
42. Por
conseguinte, nesta natureza não há mudança, interrogação ou resposta, para
que, depois da ignorância venha o conhecimento, depois do silêncio, a
interrogação, depois da interrogação, a escuta.
43. Permanecendo
sempre perfeita no mistério da unidade, do mesmo modo que nasceu de Deus,
também recebeu de Deus a plenitude. Tendo a plenitude, tem o que pertence à
plenitude, isto é, o conhecimento e a vontade.
44. O
Filho não começou a saber o que o Pai sabe por ter perguntado e não
quer o mesmo que o Pai porque Ele o tenha ordenado. Como tudo o que é do Pai é
seu, o Filho possui uma natureza tal que não quer nem sabe nada diferente
daquilo que o Pai sabe ou quer.
45. Para
revelar a sua natividade, refere-se frequentemente à sua pessoa, como quando
diz: não vim fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (Jo
6,38).
46. Faz a
vontade do Pai, não a sua, pois, ao referir-se à vontade daquele que o enviou,
indica o Pai; mas que queira o mesmo, mostra-o sem ambiguidade ao dizer: Pai,
aqueles que me deste, quero que, onde eu estou, também eles estejam comigo (Jo
17,24).
47. Portanto,
como quer o Pai, estejamos com Cristo, no qual, segundo o Apóstolo, Ele nos
escolheu antes da criação do mundo (cf. Ef 1,4). A vontade quanto à natureza é
a mesma que, para indicar a natividade, se distingue na vontade.
Capítulo
75.
48. O
Filho não ignora o que o Pai não ignora. Mas, se só o Pai conhece, daí não se deduz
que o Filho não conheça, pois permanecem na unidade da natureza.
49. Como
não conheceria o Filho, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria
e da ciência? Este desconhecimento pertence ao desígnio divino do silêncio.
50. Interrogado
pelos Apóstolos a respeito dos tempos, respondeu: Não vos compete conhecer
os tempos e os momentos, que o Pai reservou a seu poder (At 1,7).
51. Nega-lhes
o conhecimento e não apenas o nega, mas proíbe que se preocupem com ele, pois
não lhes compete conhecer os tempos.
52. Depois
da ressurreição, interrogam a respeito dos tempos os mesmos que, interrogando
antes, ouviram-no dizer que nem o Filho conhecia.
53. Não
parecem ter entendido literalmente que o Filho não sabia, quando eles mesmos
perguntam de novo, como a quem sabe. Entendendo, porém, que o mistério do
desconhecimento pertencia ao desígnio de calar, depois da ressurreição julgam
ter chegado o tempo de falar, e então interrogam.
54. A eles
o Filho já não diz que desconhece, mas sim que não lhes é dado conhecer os
tempos que o Pai guarda em seu poder.
55. Se,
portanto, os Apóstolos compreendem que, se o Filho não conhece, isto vem da
Economia, não da fraqueza, nós diremos que o Filho não conhece o dia, porque
não é Deus? O Pai guardou em seu poder este dia, para que não chegasse ao
conhecimento humano, e o Filho, interrogado antes, disse não conhecer.
56. Agora,
não responde que não sabe, mas que não compete a eles conhecer.
57. Acaso
o Pai não fixou os tempos, não por seu conhecimento, mas por seu poder? Pois
como dia e momento são nomes do tempo, não se pode pensar que ignorasse
o dia e o momento do restabelecimento do reino de Israel justamente Aquele que
o iria restabelecer.
58. Ensina-nos
a compreender sua natividade quando atribui exclusivamente ao Pai este poder e
não diz que Ele mesmo não sabe o dia.
59. Mostrando
que o poder de conhecer não lhes foi concedido, confessou que isto pertence ao
mistério do poder do Pai.
1. O que você destaca na fala do seu irmão/ã?
2. O que você destaca no texto?
3. Como ele é útil para sua espiritualidade?
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