domingo, 6 de agosto de 2023

236 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulos 68 - 75).

 


236

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulos 68 - 75)

12 de agosto de 2023


 


 

Capítulo 68.

1.      É evidente que a ignorância de Deus não é ignorância, mas mistério. Em seu desígnio de fazer, declarar ou demonstrar, desconhece de modo que conheça e não desconhece enquanto desconhece.

2.      Contudo, vejamos se é possível que Ele seja tão fraco que não possa saber aquilo que o Pai sabe, embora seja poderoso para conhecer os pensamentos dos corações humanos.

3.      Uma natureza mais forte pode penetrar nos movimentos vitais de uma natureza inferior e atravessá-la com seu poder, por ser mais forte, mas não pode penetrar em naturezas mais fortes, por ser mais fraca.

4.      As coisas leves estão sujeitas a ser atravessadas pelas mais pesadas, as ralas, pelas densas, as líquidas, pelas sólidas e, ao  contrário, as pesadas não cedem às leves, nem as densas às ralas, nem as sólidas às líquidas, já que o que é forte não se deixa penetrar pelo que é fraco, e o que é fraco pode ser atravessado pelo que é forte.

5.      Por este motivo, os ímpios dizem que o Filho ignora os pensamentos de Deus Pai, porque, sendo fraco, não pode penetrar no que é mais forte e, sendo frágil, não pode atravessar o que é mais firme.

 

Capítulo 69.

6.      Se alguém não apenas ousa dizer, com palavras temerárias, estas coisas a respeito do Deus Unigênito, mas ainda se atreve a pensar com ímpio coração, saiba que o Apóstolo, escrevendo aos Coríntios, assim afirmava sobre o Espírito Santo: A nós, porém, Deus nos revelou pelo Espírito. Pois o Espírito tudo perscruta, até mesmo as profundezas de Deus. Pois, quem dentre os homens sabe o que se passa no homem, a não ser o espírito do homem que está nele? Assim também o que há em Deus ninguém conhece, a não ser o Espírito de Deus (1Cor 2,10-11).

7.      Deixando de lado os inúteis exemplos de coisas corpóreas, consideremos a Deus de Deus e Espírito do Espírito mais pelo seu poder que pela sua condição terrena.

8.      Acreditemos, não por um juízo nosso, mas pela declaração divina, confiando na palavra de quem diz: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9). Não ignoremos Aquele que diz: por minhas obras, crede que o Pai está em mim, e eu no Pai (Jo 10,38), nem Aquele que diz: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30).

9.      Se estas palavras, usadas de acordo com nossa maneira humana de entender, confirmam nossa ideia das coisas, não tem diferença de natureza em relação Àquele em quem é visto por meio da inteligência nem é diferente, no modo de ser, Aquele que, tendo em si o que permanece nele, está, por sua vez, no que permanece nele.

10.  Procura entender a unidade, já que a natureza não é divisível. Percebe ainda o verdadeiro mistério da natureza indivisível, pois o que é Um é espelho do que é Um.

11.  Mas não é como um espelho cujo esplendor reproduz a forma da imagem exterior e sim como uma natureza viva, não diferente da natureza viva, porque toda ela provém da natureza do Pai, já que, por ser unigênita, tem em si o Pai e, por ser Deus, permanece no Pai.

 

Capítulo 70.

12.  Os hereges, não podendo modificar estas coisas explicadas pelo Senhor para dar a conhecer o mistério da natividade, esforçam-se por contorná-las, referindo-as à concórdia das vontades, de sorte que, no Deus Pai e no Deus Filho, não exista unidade da divindade, mas da vontade, como se a palavra da divina doutrina carecesse de meios para expressar-se.

13.  Talvez o Senhor não tivesse podido dizer: Eu e o Pai queremos a mesma coisa, em vez de: Eu e o Pai somos Um, ou então, sendo incapaz de falar, não teria podido dizer: Quem vê minha vontade, vê também a vontade de meu Pai, o que seria o mesmo que: Quem me vê, vê também o Pai.

14.  Talvez não pudesse ser dito em linguagem divina: A vontade de meu Pai está em mim e a minha vontade está em meu Pai, e por isso Ele devesse dizer: Eu estou no Pai, e o Pai está em mim (Jo 14,11).

15.  Tais coisas são todas torpes, ineptas e ímpias. O bom senso não aceita a opinião descabida segundo a qual o Senhor não teria podido dizer o que queria ou teria dito algo diverso do que disse. Sabemos que usou parábolas e alegorias. Mas isto é diferente de confirmar os ditos por exemplos, garantir a dignidade do discurso pela interpretação dos provérbios ou ajustar-se ao modo de falar do seu tempo.

16.  Na unidade do discurso do qual tratamos não há lugar para outra interpretação das palavras, que devem ser entendidas tais quais soam.

17.  Se são Um porque querem a mesma coisa, as naturezas separáveis não podem querer o mesmo. Pela diversidade de gêneros, as diversas vontades não podem concordar, por causa da diversidade de natureza.

18.  Como podem querer uma só coisa quando não há unidade do conhecimento, se conhecimento e ignorância não podem unir-se na mesma vontade? E se ciência e ignorância se contradizem, não podem os contrários querer a mesma coisa.

 

Capítulo 71.

19.  Talvez o Filho, quando diz que somente o Pai conhece, confirme que ignora o que dissera não conhecer. Se não tivesse dito com toda certeza que o Pai é o único a conhecer, isto redundaria em grave perigo para a nossa compreensão, pois poderíamos talvez julgar que Ele desconhecia.

20.  Em sua ignorância, porém, há mais um desígnio de ocultar o conhecimento do que um desconhecimento devido à sua natureza.

21.  Quando diz que somente o Pai sabe, não se deve deduzir daí que Ele ignore, porque, como acima dissemos, em Deus, conhecer não significa aprender alguma coisa, mas refere-se ao momento em que Ele deve dizer algo.

22.  Que somente o Pai conheça não quer dizer que o Filho desconheça. O Filho diz desconhecer para que também os outros não saibam. Por dizer que somente o Pai conhece não se conclua que Ele não conhece. Se foi dito que Deus conheceu que era amado por Abraão, quando não o ocultou a Abraão (cf. Gn 22,12), também é preciso dizer que o Pai conhece o dia porque não o ocultou ao Filho, visto que Deus não adquire a ciência por um conhecimento repentino, mas revela o que conhece ao longo do tempo.

23.  Se o Filho, de acordo com o mistério divino, ignora o dia, para não revelá-lo, deve-se reconhecer o Pai como o único que sabe porque é Ele que revela.

 

Capítulo 72.

24.  Longe de nós julgar que haja novidade, por causa de mudanças corporais, no Pai e no Filho, como se o Pai ora falasse ao Filho, ora calasse.

25.  Lembramo-nos de ter vindo do céu uma voz para que as palavras do Pai confirmassem em nós o mistério do Filho, como diz o Senhor: esta voz não ressoou para mim, mas para vós (Jo 12,30).

26.  A natureza de Deus não precisa das diferentes ações necessárias ao homem para falar: movimento da língua, posição da boca, emissão do sopro, extensão do ar.

27.  Deus é simples, deve ser entendido por nossa religião e professado por nossa piedade.

28.  Não devemos tentar compreendê-lo com a nossa razão, mas adorá-lo, porque nossa inteligência, acanhada e fraca por natureza, não pode abranger o mistério da natureza infinita e poderosa.

29.  A divindade não se compõe de várias partes, de modo a haver nela o ato de vontade depois da indecisão, a palavra depois do silêncio, a ação depois do lazer.

30.  Não se pense que só pode querer alguma coisa se for levado a querer, nem se imagine que não pode falar se o som das suas palavras não for precedido pelo silêncio, ou que não pode fazer alguma coisa, se não começar a trabalhar.

31.  Aquele que deu todas as leis à natureza não se submete às leis da natureza, nem é impedido de agir, de modo algum, por qualquer fraqueza ou mudança, visto que possui um poder ilimitado, de acordo com o que foi dito pelo Senhor: Pai, a ti tudo é possível (Mc 14,36).

32.  Deus pode mais do que percebe o senso humano.

33.  Ele mesmo não se exclui dos atributos divinos da onipotência, ao dizer: Tudo o que o Pai faz, o Filho o faz igualmente (Jo 5,19). Onde não há fraqueza, não há dificuldade, porque a dificuldade impede que o poder seja exercido se não for suficientemente forte, pois a natureza da dificuldade reside na fraqueza e, se o seu poder não tem limite, ela não está submetida às leis da fraqueza.

 

Capítulo 73.

34.  Tais coisas foram demonstradas por nós para que não se pense que Deus falou ao Filho depois de estar calado, ou que, depois de ignorar, o Filho veio a saber.

35.  Nossa inteligência precisa ser instruída com meios adequados à nossa natureza, que não pode entender que se conheça algo a não ser por intermédio de alguém que fale e supõe que, para saber, deve-se deixar de ignorar.

36.  O Filho não conhece o dia, porque se cala, e diz que somente o Pai sabe, porque somente Ele não o esconde de si mesmo. Mas não se refere, como eu disse, às dificuldades da sua natureza, como se conhecesse quando deixa de ignorar, ou como se ouvisse quando o Pai começa a falar. Sem ambiguidade, declarou a sua unidade de natureza com o Pai, enquanto Unigênito, quando disse: Tudo que o Pai tem é meu (Jo 16,15).

37.  Não fala de algo a ser obtido, porque uma coisa é que aquilo que é do Pai seja seu, como se se tratasse de algo alheio ao seu ser pessoal, outra coisa é possuir, Ele mesmo, naquilo que é seu, o seu próprio ser.

38.  Uma coisa é possuir o céu, a terra e o mundo todo, outra é definir-se a si mesmo por aquilo que pertence ao Pai, de modo que o que é seu seja seu, não por estar-lhe submetido como algo exterior, mas porque Ele mesmo tem seu ser a partir do que é seu.

39.  Ao dizer que tudo o que é do Pai é seu, refere-se à natureza da divindade, não à possessão comum do que lhe tenha sido dado, pois falava do que o Espírito Santo iria receber dele. Acrescentou: Tudo o que o Pai tem é meu, por isso vo-lo disse: Ele receberá do que é meu (Jo 16,15), para que não se julgasse que, ao receber do que era dele, não fosse também receber do Pai, ou que, ao receber do Pai, não fosse receber também do que é seu.

40.  Nem o Espírito Santo, que é o Espírito de Deus, recebeu das criaturas, como se pudesse parecer que recebia delas, porque todas são de Deus.

41.  Tudo o que é do Pai é seu, e não se deve pensar que o que o Espírito recebe do Filho não é recebido também do Pai, visto que se deve entender que tudo o que é do Pai é também do Filho.

 

 

Capítulo 74.

42.  Por conseguinte, nesta natureza não há mudança, interrogação ou resposta, para que, depois da ignorância venha o conhecimento, depois do silêncio, a interrogação, depois da interrogação, a escuta.

43.  Permanecendo sempre perfeita no mistério da unidade, do mesmo modo que nasceu de Deus, também recebeu de Deus a plenitude. Tendo a plenitude, tem o que pertence à plenitude, isto é, o conhecimento e a vontade.

44.  O Filho não começou a saber o que o Pai sabe por ter perguntado e não quer o mesmo que o Pai porque Ele o tenha ordenado. Como tudo o que é do Pai é seu, o Filho possui uma natureza tal que não quer nem sabe nada diferente daquilo que o Pai sabe ou quer.

45.  Para revelar a sua natividade, refere-se frequentemente à sua pessoa, como quando diz: não vim fazer a minha vontade, mas a vontade daquele que me enviou (Jo 6,38).

46.  Faz a vontade do Pai, não a sua, pois, ao referir-se à vontade daquele que o enviou, indica o Pai; mas que queira o mesmo, mostra-o sem ambiguidade ao dizer: Pai, aqueles que me deste, quero que, onde eu estou, também eles estejam comigo (Jo 17,24).

47.  Portanto, como quer o Pai, estejamos com Cristo, no qual, segundo o Apóstolo, Ele nos escolheu antes da criação do mundo (cf. Ef 1,4). A vontade quanto à natureza é a mesma que, para indicar a natividade, se distingue na vontade.

 

Capítulo 75.

48.  O Filho não ignora o que o Pai não ignora. Mas, se só o Pai conhece, daí não se deduz que o Filho não conheça, pois permanecem na unidade da natureza.

49.  Como não conheceria o Filho, em quem estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência? Este desconhecimento pertence ao desígnio divino do silêncio.

50.  Interrogado pelos Apóstolos a respeito dos tempos, respondeu: Não vos compete conhecer os tempos e os momentos, que o Pai reservou a seu poder (At 1,7).

51.  Nega-lhes o conhecimento e não apenas o nega, mas proíbe que se preocupem com ele, pois não lhes compete conhecer os tempos.

52.  Depois da ressurreição, interrogam a respeito dos tempos os mesmos que, interrogando antes, ouviram-no dizer que nem o Filho conhecia.

53.  Não parecem ter entendido literalmente que o Filho não sabia, quando eles mesmos perguntam de novo, como a quem sabe. Entendendo, porém, que o mistério do desconhecimento pertencia ao desígnio de calar, depois da ressurreição julgam ter chegado o tempo de falar, e então interrogam.

54.  A eles o Filho já não diz que desconhece, mas sim que não lhes é dado conhecer os tempos que o Pai guarda em seu poder.

55.  Se, portanto, os Apóstolos compreendem que, se o Filho não conhece, isto vem da Economia, não da fraqueza, nós diremos que o Filho não conhece o dia, porque não é Deus? O Pai guardou em seu poder este dia, para que não chegasse ao conhecimento humano, e o Filho, interrogado antes, disse não conhecer.

56.  Agora, não responde que não sabe, mas que não compete a eles conhecer.

57.  Acaso o Pai não fixou os tempos, não por seu conhecimento, mas por seu poder? Pois como dia e momento são nomes do tempo, não se pode pensar que ignorasse o dia e o momento do restabelecimento do reino de Israel justamente Aquele que o iria restabelecer.

58.  Ensina-nos a compreender sua natividade quando atribui exclusivamente ao Pai este poder e não diz que Ele mesmo não sabe o dia.

59.  Mostrando que o poder de conhecer não lhes foi concedido, confessou que isto pertence ao mistério do poder do Pai.

 

 

1.      O que você destaca na fala do seu irmão/ã?

2.      O que você destaca no texto?

3.      Como ele é útil para sua espiritualidade?

 

 

 

 

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