terça-feira, 15 de agosto de 2023

237 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo (Capítulos 1 - 12).

 



237

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo (Capítulos 1 - 12)

02 de setembro de 2023

 


O livro X apresenta uma interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.

 

Capítulo 1.

1.      Não há qualquer dúvida de que toda palavra humana está sempre exposta à contradição, porque, quando há diferentes movimentos das vontades, são também diferentes os modos de pensar das mentes.

2.      Quando se luta com paixão contra os juízos dos adversários, se contradizem as afirmações a que nos opomos. Embora cada palavra conforme a verdade seja perfeita, no entanto, se cada um prefere algo diferente, a palavra verdadeira se expõe à réplica dos contraditores, porque o erro de uma vontade insensata ou perversa se afirma contra a verdade que não entende ou não quer aceitar.

3.      O desejo de contradizer persiste, inabalável, e não tem medida a obstinação em contradizer.

4.      A vontade não se submete à razão, e o interesse não se põe a serviço da verdadeira doutrina. Procuramos razões para provar o que desejamos com empenho e adaptamos a doutrina aos nossos desejos.

5.      Então será mais de nome do que de realidade, a doutrina que imaginamos, e já não será mantida a norma da verdade, mas a do que agrada, isto é, a que a vontade usará para defender o que quer, e não a que estimulará a vontade pelo conhecimento da verdade racional.

6.      Desses vícios das vontades caprichosas, surgem as objeções das tendências contrárias e, entre a afirmação do verdadeiro e a defesa do que agrada, trava-se uma luta pertinaz, visto que a verdade se mantém e a vontade caprichosa se defende.

7.      Aliás, se a vontade não precedesse a razão, mas, mediante a compreensão da verdade, fosse movida a querer o verdadeiro, nunca a doutrina originada na vontade seria desejada.

8.      Todo desejo de doutrina seria movido pela razão, e a palavra verdadeira não encontraria oposição. Ninguém defenderia como verdadeiro o que deseja, mas sim começaria a querer o que é verdadeiro.

 

Capítulo 2.

9.      O Apóstolo não ignorava a existência destas vontades viciadas e, entre muitos preceitos para o anúncio da fé e a pregação da Palavra, escreveu a Timóteo: Virá um tempo em que alguns não suportarão a sã doutrina; pelo contrário, segundo seus próprios desejos, como que sentindo comichão nos ouvidos, se rodearão de mestres. Desviarão os ouvidos da verdade, orientando-os para as fábulas (2Tm 4,3-4).

10.  Quando, levados pelo desejo da impiedade, não puderem suportar a sã doutrina, então reunirão os mestres que desejam, isto é, os que acumulam argumentos doutrinários adaptados a seus desejos. Não quererão ser ensinados, mas congregarão doutores para dizer-lhes o que querem, a fim de que o próprio acúmulo de pesquisadores e de mestres escolhidos e reunidos por eles satisfaça sua ânsia.

11.  Esta tão grande loucura da estulta irreligiosidade ignora qual é o espírito que os leva a não suportar a sã doutrina e desejar a corrompida.

12.  Aprenda, pois, do mesmo Apóstolo, escrevendo a Timóteo: O Espírito diz expressamente que nos últimos tempos alguns renegarão a fé, dando atenção a espíritos sedutores e a doutrinas demoníacas por causa da hipocrisia dos mentirosos (1Tm 4,1-2).

13.  Que proveito se encontra na doutrina procurada mais pelo que seduz do que pelo que ensina? Que devoção pela doutrina verdadeira significa não desejar o que se deve ensinar e criar uma doutrina adaptada aos nossos desejos?

14.  Estas coisas atraem os espíritos sedutores e confirma as mentiras de uma religião simulada. A hipocrisia mentirosa acompanha o abandono da fé, e continua a haver piedade nas palavras, mas não na consciência.

15.  Tornam ímpia esta mesma piedade aparente por meio de palavras mentirosas e corrompem, com falsas doutrinas, a santidade da fé, visto que se trata de uma doutrina elaborada segundo seus desejos, e não de uma doutrina de acordo com a fé evangélica.

16.  Incitados pelo prurido de ouvir e pelo impaciente deleite de escutar a nova pregação conforme seus desejos, afastados inteiramente da escuta da verdade, prendem-se totalmente às fábulas e procuram dar uma aparência de verdade ao que dizem, porque não podem ouvir nem dizer o que é verdadeiro.

 

Capítulo 3.

17.  Chegamos a este dificílimo tempo a que se refere a profecia apostólica. Procuram-se agora mais os mestres do que é criado, do que os que pregam a Deus.

18.  Os homens se preocupam mais com desejos humanos do que com o ensinamento da fé verdadeira.

19.  O prurido de ouvir levou-os a escutar o que desejam ouvir, de tal modo que, para os doutores reunidos agora, só vale a pregação que afasta o Deus Unigênito do poder e da verdadeira natureza de Deus Pai, o que, para nossa fé, significa que é um Deus de outro gênero ou que não é Deus.

20.  Com uma confissão mortífera e ímpia, em ambos os casos declaram que há dois deuses que têm uma divindade diferente ou negam que seja Deus Aquele que possui uma natureza que vem de Deus pela natividade. Para os ouvidos alheios à verdade e voltados para fábulas, isto é muito agradável, visto que não suportam ouvir a sã doutrina e expulsam-na, como aos seus pregadores.

 

Capítulo 4.

21.  Embora muitos reúnam mestres segundo os seus desejos e rejeitem a sã doutrina, a verdade da pregação não estará exilada dos santos. Exilados, falamos pelos livros, e a palavra de Deus, que não pode ser ligada, livremente se difunde, advertindo ser este o tempo da profecia apostólica.

22.  Pois quando o anúncio da verdade é recebido com impaciência, e são numerosos os mestres que ensinam de acordo com os desejos humanos, já não se duvida terem chegado aqueles tempos.

23.  E a verdade está no exílio, juntamente com os pregadores da fé incorrupta. Não nos lamentamos por causa destes tempos, ao contrário, nos alegramos, porque a iniquidade se mostrará neste tempo de nosso exílio, afastando os que pregam a sã doutrina e procurando para si numerosos mestres, segundo seus desejos.

24.  Em nosso exílio estamos alegres e exultamos no Senhor, porque se realiza em nós, em plenitude, a profecia apostólica.

 

Capítulo 5.

25.  Sustentamos, assim penso, nos livros anteriores, a profissão da fé sincera e da verdade incontaminada. Embora, devido à natureza humana, não haja palavra livre de contradição, julgamos, no entanto, ter dado todas as respostas de um modo tal que, a não ser afirmando a impiedade, ninguém poderia contradizer-nos.

26.  Mostrei o sentido verdadeiro das frases tiradas dos Evangelhos pelos hereges com artifício mentiroso, e sua verdade se patenteou tão claramente que já não lhes resta a desculpa da ignorância, mas são obrigados a confessar a impiedade.

27.  Também agora, por dom do Espírito Santo, organizamos a demonstração de toda a fé, de tal modo que nem mesmo possam inventar acusações contra nós. Pois costumam encher os ouvidos dos ignorantes, afirmando que nós negamos o Filho quando pregamos a unidade da divindade, e que confessamos um Deus solitário citando a palavra do Evangelho: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30).

28.  Dizem também que nós afirmamos que o Deus inascível, descendo até a Virgem, nasceu como Homem, e, referindo-se à economia da encarnação, disse: Eu, para indicar a sua divindade, e acrescentou: e o Pai, para mostrar que Ele é o pai de sua humanidade, e, como Ele é Homem e Deus, disse de si mesmo: Somos Um.

 

Capítulo 6.

29.  Nós, porém, afirmamos que o Filho subsiste por sua geração fora do tempo e pregamos que o Deus Filho é Deus, de natureza não distinta da natureza de Deus Pai.

30.  Não dizemos ser igual ao que é inascível, enquanto é inascível, mas sim que não é diferente dele, pela geração como Unigênito. Os dois são um só, não porque o que é apenas um receba dois nomes, mas sim pelo nascimento próprio da natureza divina.

31.  Dizemos que, em nossa fé, não se proclamam dois deuses de gêneros diferentes. Ao confessar o mistério do Deus Unigênito, não se ensina que Deus é singular porque é único, mas sim que no Pai se expressa e existe o Filho, porque nele está a natureza e o nome do Pai.

32.  O Pai mostra-se e permanece no Filho, pois este não pode ser chamado de Filho, nem existir, se não provém do Pai. É também imagem viva da natureza viva, assinalado para ser, por natureza, a forma de Deus em Deus. Possui de tal maneira a sua mesma essência e poder que nele nem a obra, nem a palavra, nem o aspecto são diferentes dos do Pai.

33.  Ele é a imagem do seu Princípio, possui de modo natural a natureza deste, e por meio de sua imagem natural, Aquele que é sua origem agiu, falou e foi visto.

 

Capítulo 7.

34.  Proclamando a intemporal e inenarrável geração do Unigênito, que está além de toda a compreensão da inteligência humana, ensinamos também o mistério de Deus nascido como Homem pelo parto da Virgem.

35.  Demonstramos que, segundo a economia da Encarnação, ao esvaziar-se da forma de Deus, assumiu a forma de servo, sem que a forma humana enfraquecesse a natureza de Deus. Salvo, no Homem, o poder da divindade, foi concedido ao Homem o poder de Deus.

36.  Quando Deus nasceu como Homem, não nasceu para deixar de ser Deus, mas para que, continuando Ele a ser Deus, o Homem nascesse como Deus. Seu nome é Emanuel (Mt 1,23), isto é, Deus conosco.

37.  Não se trata de um rebaixamento de Deus até o Homem, mas de elevação do Homem até Deus (cf. Jo 17,5). Quando pede para ser glorificado, certamente isto não favorece à natureza de Deus, mas à humanidade assumida, pois pede aquela glória que era a sua, junto de Deus, antes que o mundo existisse.

 

Capítulo 8.

38.  Respondendo também às suas estultíssimas declarações, descemos até a explicação do desconhecimento da hora. Mesmo que, como eles dizem, esta hora não fosse conhecida pelo Filho, isto não redundaria em injúria à divindade do Filho Unigênito, porque seria contrário à natureza que a natividade o fizesse retroceder à existência sem princípio do Deus inascível, já que o Pai reservara a seu poder o momento de designar o dia, para demonstrar a autoridade daquele que é Inascível.

39.  Não se pode entender que, por isso, a natureza do Filho seja fraca, pois nela existe, por causa da natividade, tudo quanto uma geração perfeita pode dar.

40.  Não se pretende atribuir a ignorância do Deus Unigênito a respeito do dia e hora ao fato de ser Ele diferente de Deus quanto à divindade.

41.  Afirma-se, sim, o poder do que não tem princípio, próprio do Pai, para demonstrar, contra os sabelianos heréticos, que só nele existe a força que não pode nascer nem pode ter princípio.

42.  Como ensinamos, a declaração de que não conhece dia não significa fraqueza proveniente da ignorância, mas pertence ao desígnio de não falar.

43.  Devemos também extirpar toda ocasião de ímpias afirmações e examinar todas as heréticas pregações da blasfêmia, para que a verdade do Evangelho, graças àquilo mesmo que parecia obscurecê-la, brilhe mais intensamente.

 

Capítulo 9.

44.  Muitos deles pretendem que, por causa do temor da paixão e da fraqueza diante do sofrimento, não haveria nele a natureza do Deus impassível. Dizem que quem temeu e sofreu não poderia ter a segurança do poder que não teme, nem a incorrupção do Espírito que não sofre, mas, sendo por natureza inferior a Deus Pai, tremeu de medo na paixão humana e deu grandes gemidos pela atrocidade do sofrimento corporal.

45.  Apoiam sua afirmação de impiedade no que está escrito: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38); Pai, se possível, passe de mim este cálice (Mt 26,89), e também: Deus, meu Deus, porque me abandonaste? (Mt 27,46). Acrescentam ainda: Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito (Lc 23,46).

46.  Todas estas palavras de nossa piedosa fé, eles as roubam para empregá-las a serviço de sua impiedade. Dizem que temeu porque estava triste e pediu que o cálice fosse afastado, que sofreu porque se queixou de ter sido abandonado por Deus na paixão, como também foi fraco porque entregou o espírito ao Pai.

47.  A aflição não é compatível com a total semelhança com Deus, em virtude do seu nascimento como Unigênito, pois o pedido para que se afastasse o cálice, a queixa na desolação, e a entrega do espírito atestam sua fraqueza e inferioridade em relação ao Pai.

 

Capítulo 10.

48.  Em primeiro lugar, antes de demonstrarmos, por estas palavras, que não havia nele nada que o fizesse temer por si mesmo, e que não havia nele nenhuma fraqueza, temos de perguntar o que pareceu causar-lhe temor, para que tivesse medo de uma dor intolerável.

49.  Julgo que não atribuem outra causa ao seu temor, a não ser a paixão e a morte. Interrogo aqueles que assim pensam, se há motivo para que temesse morrer Aquele que, desejando tirar dos Apóstolos todo o terror da morte, os exortou à glória que adviria pelo martírio, dizendo: Aquele que não toma sua cruz e me segue, não é digno de mim. Aquele que acha sua vida, perdê-la-á; e quem a perde por minha causa a encontrará (Mt 10,38-39).

50.  Se morrer por Ele é vida, que se pode pensar que causou dor, no mistério da morte, Àquele que recompensa com a vida os que morrem por Ele? Como pode exortar a não temer aqueles que matam o corpo, se a morte o aterrorizou, pelo temor do sofrimento corporal?

 

Capítulo 11.

51.  Além disso, que dor temeria na morte quem fosse morrer na liberdade de seu poder? Para o gênero humano, uma força exterior pode causar a morte, como a febre, as chagas, uma queda. Calamidades, quando atacam, aceleram-na, e a própria natureza de nosso corpo, vencida pela velhice, traz a nossa morte.

52.  O Deus Unigênito, porém, tendo o poder de entregar a alma e de retomá-la, a fim de cumprir totalmente em si o mistério da morte, depois de beber o vinagre, atestou ter consumado em si toda a obra da paixão humana e, inclinando a cabeça, entregou o Espírito (cf. Jo 19,30).

53.  Se foi deixado à natureza do homem o direito de espontaneamente exalar o Espírito e descansar na morte e se não acontece, antes, que, desfeito o corpo, afaste-se a alma debilitada ou que, tendo sido os membros rasgados, fendidos, feridos, o espírito se esvaia como se tivesse sido violado em sua sede, então pode ser que o medo de morrer tenha abalado o Senhor da vida, se ao entregar o Espírito, morreu, não por liberdade sua, usando do poder de morrer. Porém, se morreu porque quis e por si mesmo entregou o Espírito, não pode ter havido terror da morte porque Ele tem o poder de morrer.

 

Capítulo 12.

54.  Mas talvez, pela timidez própria da ignorância humana, tivesse medo deste mesmo poder de morrer. Porque, embora morresse porque quis, talvez tivesse medo pelo fato de ter de morrer.

55.  Se houver alguém que assim julgue, explique se a morte teria sido terrível para o corpo, ou para o Espírito.

56.  Se disser que para o corpo, acaso ignora que o Santo não veria a corrupção (cf. Sl 15,10) e que dentro de três dias ressuscitaria o templo de seu corpo? Se para o Espírito a morte é terrível, no entanto Lázaro, no seio de Abraão, se alegrava. Cristo acaso iria temer o caos do inferno?

57.  Tudo isto não tem sentido e é ridículo que temesse Aquele que tem o poder de entregar a alma e retomá-la e que iria morrer por sua livre vontade, para operar o mistério da salvação da vida humana.

58.  Não há temor da morte naquele que quer morrer e tem o poder de não permanecer morto por muito tempo, pois a vontade de morrer e o poder de ressuscitar excluem o temor, já que a morte não pode ser temida quando se quer morrer e se pode voltar a viver.

 

 

 

1.      O que você destaca na fala do seu irmão/ã?

2.      O que você destaca no texto?

3.      Como ele é útil para sua espiritualidade?

 

 

 

 

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