domingo, 3 de setembro de 2023

238 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo (Capítulos 13 - 24).

 


238

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo (Capítulos 13 - 24)

23 de setembro de 2023

 


O livro X apresenta uma interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.

 

Capítulo 13.

1.      Mas talvez temesse o suplício do corpo suspenso na cruz, os fortes laços das cordas que o amarram e os pés feridos pelos cravos. Vejamos, então, como é este corpo do Cristo Homem, para poder falar da dor de sua carne suspensa, presa e trespassada.

 

Capítulo 14.

2.      A natureza dos corpos consiste em que, pela união com a alma, são vivificados e adquirem a capacidade de sentir, dada pela alma que sente, para que não sejam matéria inerte e inane. Esta natureza, quando é tocada, sente; machucada, experimenta a dor, enrijece com o frio; aquecida, sente prazer, desfalece de fome e engorda com o alimento.

3.      Por certa penetração da alma que a possui e invade, segundo as circunstâncias, sentirá deleite ou ofensa. Por isto os corpos feridos ou traspassados sentem dor: o sentido de dor passa para a alma que o recebe. Enfim, a ferida do corpo dói até certo ponto: os pedacinhos das unhas cortadas da carne não causam sofrimento. E se acontecer que, por doença, uma parte de um membro se corrompa, perderá a sensibilidade da carne viva.

4.      Cortada ou queimada, seja qual seja a dor que isso possa causar, não tendo nela a presença da alma, a carne nada sentirá.

5.      Quando há grave necessidade de se cortar o corpo, uma bebida medicinal adormece o vigor da alma, e com os sentidos amortecidos, a mente, dominada por remédios fortes, se esquece de si mesma e os membros são cortados sem que sintam dor.

6.      Amortecida a sensibilidade da carne, uma ferida profunda não provoca dor, porque a sensibilidade da alma se encontra entorpecida. Portanto, o corpo enfermo sente dor por causa da sua união com a alma enferma.

 

Capítulo 15.

7.      Se, portanto, o Homem Jesus Cristo viveu no corpo, e começou a existir com nosso corpo e nossa alma, mas não de tal maneira que Deus fosse o princípio imediato de seu corpo e de sua alma, se foi encontrado em figura de homem, nascido como homem, sentiu a dor de nosso corpo, já que seu corpo teve um começo e uma concepção que foram os mesmos de nossa alma e de nosso corpo.

8.      Mas, se Ele mesmo tomou para si a carne da Virgem e, por si, uniu a alma ao corpo concebido, era forçoso que a natureza do seu sofrimento estivesse de acordo com a natureza de seu corpo e de sua alma.

9.      Esvaziando-se da forma de Deus e assumindo a forma de servo, e nascendo o Filho de Deus como Filho do Homem, sem se desfazer de seu ser nem de seu poder, o Deus Verbo se fez perfeito Homem vivo.

10.  Porém, de que modo poderia o Filho de Deus nascer como Filho do Homem ou como assumiria a forma de servo permanecendo na forma de Deus (pois é poderoso o Verbo e Deus para assumir a carne no seio da Virgem e dar alma à carne) se o Homem Jesus não tivesse nascido como Homem perfeito para a redenção de nossa alma e de nosso corpo, e não tivesse assumido o corpo para que, ao ser concebido pela Virgem, este corpo o fizesse existir na forma de servo?

11.  A Virgem gerou a quem gerou somente pelo Espírito Santo. Embora ela houvesse dado de si mesma, para o nascimento na carne, tudo aquilo com que as mulheres contribuem para o nascimento dos corpos, Jesus Cristo não se formou conforme a maneira de uma concepção humana natural.

12.  Como toda a causa de seu nascimento provém do Espírito, conservou em sua natividade como Homem o que é próprio da mãe, tendo, em virtude da origem, o seu ser divino.

 

Capítulo 16.

13.  O próprio Senhor mostrou este grande e belíssimo mistério da assunção do Homem ao dizer: Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu (Jo 3,13).

14.  As palavras “desceu do céu” indicam a sua concepção do Espírito. Pois não foi Maria que deu origem ao corpo, embora tenha contribuído para o crescimento e parto do corpo com tudo o que é natural a seu sexo.

15.  As palavras Filho do Homem indicam o nascimento da carne concebida no seio da Virgem. Está nos céus significa o poder da natureza que existe sempre, pois esta, que deu início e criou a carne, não se encerrou dentro do espaço do corpo limitado, afastando-se do poder de sua infinidade.

16.  Pela força do Espírito e poder do Verbo de Deus, permanecendo na forma de servo, o Senhor do céu e do mundo não se afastou de nenhuma das esferas de dentro e de fora do céu e do mundo. Por isso também desceu do céu, porque, feito carne, não deixou de ser o Verbo. Por ser o Verbo está no céu, por ser carne é o Filho do Homem. Porque o Verbo se fez carne (Jo 1,14), vem do céu, é Filho do Homem e está no céu, pois o poder do Verbo não existe à maneira dos corpos e não se afastou de onde descera e a carne não recebeu a sua origem a não ser do Verbo, e o Verbo feito carne, sendo carne, não deixou de ser o Verbo.

 

Capítulo 17.

17.  O bem-aventurado Apóstolo falou claramente do mistério desta natividade corporal inefável, dizendo: O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo Homem vem do céu (1Cor 15,47). Ao falar do Homem, ensinou o nascimento da Virgem, que no exercício de sua função materna realizou, na concepção e no parto do Homem, aquilo que pertence à natureza do seu sexo.

18.  Quando diz que o segundo Homem vem do céu, atesta que sua origem se deve à vinda do Espírito Santo que desceu sobre a Virgem. Como é o Homem que veio do céu, nasceu da Virgem e foi concebido por obra do Espírito. É o que diz o Apóstolo.

Capítulo 18.

19.  O próprio Senhor revelou o mistério desta natividade quando disse: Eu sou o pão vivo que desci do céu; se alguém comer deste pão, viverá eternamente (Jo 6,51-52), chamando-se a si mesmo de pão porque é Ele mesmo a origem de seu corpo.

20.  E para que não se pense que deixou o poder e a natureza do Verbo ao assumir a carne, fala de novo do seu pão. Quer dizer com isto que é pão descido do céu e que sua origem não é a concepção humana, como se poderia pensar, pois mostra ser celeste este corpo.

21.  Quando diz que é seu pão, declara que o corpo foi assumido pelo Verbo. Por isso acrescenta: Se não comerdes da carne do Filho do Homem, e beberdes de seu sangue, não tereis a vida em vós (Jo 6,54); o mesmo que é Filho do Homem desceu do céu como pão. Assim, quando se diz que seu pão desceu do céu e que a carne e o sangue são do Filho do Homem, se entende que assumiu a carne que foi concebida por obra do Espírito Santo e nasceu da Virgem.

 

Capítulo 19.

22.  Portanto, o Homem que possui este corpo, Jesus Cristo, é Filho de Deus e Filho do Homem. Esvaziando-se da forma de Deus, tomou a forma de servo. O Filho do Homem não é diferente do Filho de Deus, nem é um o que existe na forma de Deus e outro o que, como Homem perfeito, nasceu na forma de servo.

23.  Assim como, pela natureza criada por Deus, que é origem do nosso ser, nasce o homem composto de corpo e alma, também Jesus Cristo, por seu poder, é homem composto de carne e alma e é Deus. Tem em si a humanidade total e verdadeira e a total e verdadeira divindade.

 

Capítulo 20.

24.  Muitos, para confirmarem as heresias por meio de artifícios, costumam enganar os ouvidos dos ignorantes, dizendo que, se o corpo e a alma de Adão estavam em pecado e o Senhor recebeu da Virgem a carne e a alma de Adão, a Virgem não concebeu do Espírito Santo o Homem todo. Mas, se entendessem o mistério da assunção da carne, entenderiam também o mistério pelo qual o Filho do Homem é também Filho de Deus.

25.  Como se da Virgem recebesse também a alma, quando toda a alma é obra de Deus e a geração da carne vem sempre da carne.

 

Capítulo 21.

26.  Querem que o Deus Unigênito, o Deus Verbo, que no princípio estava junto de Deus, não seja Deus com uma subsistência pessoal, mas a palavra emitida pela voz, de modo que, assim como a palavra dos que falam é sua palavra, assim seria o Filho para Deus Pai.

27.  Com sutileza, querem insinuar que o Cristo, nascido como Homem, não é o Deus Verbo que subsiste pessoalmente e permanece na forma de Deus.

28.  Como o homem teve uma origem humana, em vez de ser animado pelo mistério de uma concepção espiritual, o Deus Verbo não teve uma existência própria, ao fazer-se o Homem pelo parto da Virgem, mas, assim como nos profetas está o Espírito da profecia, também em Jesus estaria o Verbo de Deus. Costumam acusar-nos de dizer que Cristo nasceu como homem, com nosso corpo e alma.

29.  Na realidade nós pregamos o Verbo feito carne, Cristo que se despojou da forma de Deus e assumiu a forma de servo, perfeito de acordo com a conformação humana, nascido Homem à nossa semelhança, de modo que, sendo verdadeiramente Filho de Deus, seja verdadeiro Filho do Homem. Nasceu como Homem que vem de Deus, e não deixou de ser Deus por ser Homem nascido de Deus.

 

Capítulo 22.

30.  Como por si assumiu para si, da Virgem, o corpo, assim também assumiu, de si e para si, a alma, que nunca é dada pelos homens àqueles que geram. Se a Virgem não concebeu a carne a não ser por obra de Deus, com muito mais razão a alma deste corpo só pode vir de Deus e não de outra parte.

31.  O Filho do Homem é também o Filho de Deus. Já que o Filho do Homem é inteiramente Filho de Deus, como seria ridículo pregarmos um outro qualquer como profeta animado pelo Verbo de Deus, além do Filho de Deus, que é o Verbo feito carne quando o Senhor Jesus é Filho do Homem e Filho de Deus!

32.  Porque diz que sua alma está triste até a morte e tem o poder de entregar sua vida e retomá-la, querem os hereges que sua alma proceda de um princípio exterior, e não do Espírito Santo, do qual o corpo foi concebido, quando o Deus Verbo, permanecendo no mistério de sua natureza, nasceu como Homem.

33.  Não nasceu para ser duas pessoas distintas, mas para que se possa entender que, como antes de ser Homem era Deus, ao assumir a humanidade era Deus e Homem. Pois, de que modo Jesus Cristo, Filho de Deus, nasceu de Maria, a não ser porque o Verbo se fez carne (Jo 1,14), isto é, o Filho de Deus, existindo na forma de Deus, assumiu a forma de servo?

34.  Que Aquele que existia na forma de Deus tenha assumido a forma de servo, mostra que se unem as naturezas contrárias, de forma que é tão verdadeiro que permaneça na forma de Deus quanto é verdadeiro que tenha assumido a forma de servo. Pela significação da palavra usada nos dois casos, deve-se entender a realidade das naturezas.

35.  Pois está na forma de servo Aquele que também está na forma de Deus. Isto lhe pertence por natureza, o que é consequência da economia. Ele é uma e outra coisa, de maneira igualmente real.

36.  Está na forma de Deus de modo tão verdadeiro, como está na forma de servo. Que tenha assumido verdadeiramente a forma de servo não é diferente de ter nascido Homem; assim também existir na forma de Deus não é diferente de ser Deus.

37.  Professamos que é um e o mesmo, não por ter deixado de ser Deus, mas pela assunção do Homem. Confessamos também que foi encontrado na forma de Deus por sua natureza divina, e, na forma de servo, pela concepção por obra do Espírito Santo.

38.  Portanto, Jesus Cristo, assim como nasceu, padeceu, morreu e foi sepultado, também ressuscitou. Não pode, nesta diversidade de mistérios, ser dividido em si mesmo, a ponto de não ser Cristo, pois não há outro Cristo, a não ser o que existia na forma de Deus e assumiu a forma de servo.

39.  O que morreu, foi o mesmo que nasceu. Não foi um o que morreu e outro o que ressuscitou e o que está no céu, não é outro diferente do que antes descera dos céus.

 

Capítulo 23.

40.  O Homem Jesus Cristo, Deus Unigênito, igualmente Filho do Homem e Filho de Deus, por ser carne e Verbo, assumiu uma humanidade verdadeira, à semelhança da nossa humanidade, sem deixar Ele mesmo de ser Deus.

41.  Embora os golpes o atingissem, as feridas se abrissem, os laços o prendessem e fosse suspenso na cruz, tudo isto, na verdade, trazia o ímpeto do sofrimento, mas não produzia a dor da paixão, assim como uma lança perfura a água ou atravessa o fogo ou fere o ar e produz todos os efeitos próprios à sua natureza, como atravessar, ferir, perfurar, mas a ação realizada não mantém sua força, já que não é próprio da água ser perfurada, do fogo ser atravessado, do ar ser ferido, embora pertença à natureza da lança ferir, atravessar e perfurar.

42.  Sem dúvida o Senhor Jesus Cristo sofreu quando foi flagelado, suspenso, crucificado e quando morreu. Quando o sofrimento arremeteu contra o corpo do Senhor, não deixou de ser sofrimento, contudo, não deu lugar aos seus efeitos, porque, enquanto o castigo violento o atormentava, a força do corpo suportava a pena, sem sentir a dor. O corpo do Senhor teria certamente experimentado nossa dor se o nosso corpo pudesse também, por sua natureza, andar sobre as ondas, caminhar sobre as vagas, sem afundar, não sendo impedido por nenhum obstáculo e sem que as águas cedessem sob os passos firmes, se pudesse penetrar os corpos sólidos, sem ser impedido pelo obstáculo da casa fechada.

43.  Porém, se somente o corpo do Senhor tivesse tal natureza, de modo que, por seu poder, fosse levado por sua alma a caminhar sobre as ondas e manter-se de pé sobre as águas sem afundar, passar através das paredes, como iríamos julgar, a partir da natureza do corpo humano, aquela carne que foi concebida do Espírito?

44.  Pois esta carne é aquele pão que desceu do céu; e aquele Homem vem de Deus. Tendo, na verdade, um corpo que poderia padecer, e padeceu, não tinha, no entanto, a natureza que poderia sofrer. Pois teve uma natureza que lhe é própria aquele corpo que no monte foi conformado à celeste glória, que, quando toca, afugenta a febre, que, com sua saliva, dá a vista aos olhos (cf. Mt 17,1; 8,15; Jo 9,6).

 

Capítulo 24.

45.  Mas por ter Ele as reações de chorar, de ter sede e fome, talvez devesse ter também uma natureza capaz de experimentar os outros sofrimentos humanos. Aquele que ignora o mistério das lágrimas, da sede e da fome saiba que o que chorou é capaz também de vivificar e que, em vez de chorar, se alegra com a morte de Lázaro (cf. Jo 11,35) e oferece rios de água viva, brotada de si mesmo, àquele que tem sede (cf. Jo 7,38).

46.  Não sofre sede quem pode dar de beber ao sequioso. O faminto condenou a árvore que não ofereceu frutos para sua fome (cf. Mt 21,19). Nem pode ser vencida pela penúria aquela natureza que, com uma ordem, transforma o verde em aridez.

47.  Se, além do mistério das lágrimas, da sede e da fome, a carne assumida, isto é, o Homem todo, foi submetido aos sofrimentos de nossa natureza, não o foi, porém, de tal forma que sucumbisse aos danos causados pelo sofrimento, de sorte que, chorando, não chorava por si, sedento, não bebia para aplacar a sede, faminto, não se saciava com alimento algum.

48.  Nunca foi indicado que o Senhor, por ter sede ou fome, ou por chorar, tenha chorado, bebido ou sentido dor, a não ser para demonstrar a realidade do corpo. Aceitando o que é natural ao corpo, adaptou-se aos costumes do corpo, de modo que, ao aceitar a bebida e o alimento, não o fez por uma necessidade do corpo, mas para conformar-se com os costumes.

 

 

 

1.      O que você destaca na fala do seu irmão/ã?

2.      O que você destaca no texto?

3.      Como ele é útil para sua espiritualidade?

 

 

 

 

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