Hilário de Poitiers (315-368)
O
Tratado da Santíssima Trindade
Livro Décimo (Capítulos 13 - 24)
23 de setembro de 2023
O livro X apresenta uma interpretação original do problema do
sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.
Capítulo
13.
1.
Mas talvez temesse o suplício do corpo
suspenso na cruz, os fortes laços das cordas que o amarram e os pés feridos
pelos cravos. Vejamos, então, como é este corpo do Cristo Homem, para poder
falar da dor de sua carne suspensa, presa e trespassada.
Capítulo
14.
2.
A natureza dos corpos consiste em que,
pela união com a alma, são vivificados e adquirem a capacidade de sentir, dada
pela alma que sente, para que não sejam matéria inerte e inane. Esta natureza,
quando é tocada, sente; machucada, experimenta a dor, enrijece com o frio;
aquecida, sente prazer, desfalece de fome e engorda com o alimento.
3.
Por certa penetração da alma que a
possui e invade, segundo as circunstâncias, sentirá deleite ou ofensa. Por isto
os corpos feridos ou traspassados sentem dor: o sentido de dor passa para a
alma que o recebe. Enfim, a ferida do corpo dói até certo ponto: os pedacinhos
das unhas cortadas da carne não causam sofrimento. E se acontecer que, por
doença, uma parte de um membro se corrompa, perderá a sensibilidade da carne
viva.
4.
Cortada ou queimada, seja qual seja a
dor que isso possa causar, não tendo nela a presença da alma, a carne nada
sentirá.
5.
Quando há grave necessidade de se
cortar o corpo, uma bebida medicinal adormece o vigor da alma, e com os
sentidos amortecidos, a mente, dominada por remédios fortes, se esquece de si
mesma e os membros são cortados sem que sintam dor.
6.
Amortecida a sensibilidade da carne,
uma ferida profunda não provoca dor, porque a sensibilidade da alma se encontra
entorpecida. Portanto, o corpo enfermo sente dor por causa da sua união com a
alma enferma.
Capítulo
15.
7.
Se, portanto, o Homem Jesus Cristo
viveu no corpo, e começou a existir com nosso corpo e nossa alma, mas não de
tal maneira que Deus fosse o princípio imediato de seu corpo e de sua alma, se
foi encontrado em figura de homem, nascido como homem, sentiu a dor de nosso
corpo, já que seu corpo teve um começo e uma concepção que foram os mesmos de
nossa alma e de nosso corpo.
8.
Mas, se Ele mesmo tomou para si a carne
da Virgem e, por si, uniu a alma ao corpo concebido, era forçoso que a natureza
do seu sofrimento estivesse de acordo com a natureza de seu corpo e de sua
alma.
9.
Esvaziando-se da forma de Deus e
assumindo a forma de servo, e nascendo o Filho de Deus como Filho do Homem, sem
se desfazer de seu ser nem de seu poder, o Deus Verbo se fez perfeito Homem
vivo.
10. Porém,
de que modo poderia o Filho de Deus nascer como Filho do Homem ou como
assumiria a forma de servo permanecendo na forma de Deus (pois é poderoso o
Verbo e Deus para assumir a carne no seio da Virgem e dar alma à carne) se o
Homem Jesus não tivesse nascido como Homem perfeito para a redenção de nossa
alma e de nosso corpo, e não tivesse assumido o corpo para que, ao ser
concebido pela Virgem, este corpo o fizesse existir na forma de servo?
11. A
Virgem gerou a quem gerou somente pelo Espírito Santo. Embora ela houvesse dado
de si mesma, para o nascimento na carne, tudo aquilo com que as mulheres
contribuem para o nascimento dos corpos, Jesus Cristo não se formou conforme a
maneira de uma concepção humana natural.
12. Como
toda a causa de seu nascimento provém do Espírito, conservou em sua natividade
como Homem o que é próprio da mãe, tendo, em virtude da origem, o seu ser
divino.
Capítulo
16.
13. O
próprio Senhor mostrou este grande e belíssimo mistério da assunção do Homem ao
dizer: Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do
céu, o Filho do Homem que está no céu (Jo 3,13).
14. As
palavras “desceu do céu” indicam
a sua concepção do Espírito. Pois não foi Maria que deu origem ao corpo, embora
tenha contribuído para o crescimento e parto do corpo com tudo o que é natural
a seu sexo.
15. As
palavras Filho do Homem indicam
o nascimento da carne concebida no seio da Virgem. Está
nos céus significa o poder da natureza que existe sempre, pois esta,
que deu início e criou a carne, não se encerrou dentro do espaço do corpo
limitado, afastando-se do poder de sua infinidade.
16. Pela
força do Espírito e poder do Verbo de Deus, permanecendo na forma de servo, o
Senhor do céu e do mundo não se afastou de nenhuma das esferas de dentro e de
fora do céu e do mundo. Por isso também desceu do céu, porque, feito carne, não
deixou de ser o Verbo. Por ser o Verbo está no céu, por ser carne é o Filho do
Homem. Porque o Verbo se fez carne (Jo
1,14), vem do céu, é Filho do Homem e está no céu, pois o poder do Verbo não
existe à maneira dos corpos e não se afastou de onde descera e a carne não
recebeu a sua origem a não ser do Verbo, e o Verbo feito carne, sendo carne,
não deixou de ser o Verbo.
Capítulo
17.
17. O
bem-aventurado Apóstolo falou claramente do mistério desta natividade corporal
inefável, dizendo: O primeiro homem, tirado da
terra, é terrestre. O segundo Homem vem do céu (1Cor
15,47). Ao falar do Homem, ensinou o nascimento da Virgem, que no exercício de
sua função materna realizou, na concepção e no parto do Homem, aquilo que
pertence à natureza do seu sexo.
18. Quando
diz que o segundo Homem vem do céu, atesta que sua origem se deve à vinda do
Espírito Santo que desceu sobre a Virgem. Como é o Homem que veio do céu,
nasceu da Virgem e foi concebido por obra do Espírito. É o que diz o Apóstolo.
Capítulo
18.
19. O
próprio Senhor revelou o mistério desta natividade quando disse: Eu
sou o pão vivo que desci do céu; se alguém comer deste pão, viverá eternamente (Jo
6,51-52), chamando-se a si mesmo de pão porque é Ele mesmo a origem de seu
corpo.
20. E
para que não se pense que deixou o poder e a natureza do Verbo ao assumir a
carne, fala de novo do seu pão. Quer dizer com isto que é pão descido do céu e
que sua origem não é a concepção humana, como se poderia pensar, pois mostra
ser celeste este corpo.
21. Quando
diz que é seu pão, declara que o corpo foi assumido pelo Verbo. Por isso
acrescenta: Se não comerdes da carne do
Filho do Homem, e beberdes de seu sangue, não tereis a vida em vós (Jo
6,54); o mesmo que é Filho do Homem desceu do céu como pão. Assim, quando se
diz que seu pão desceu do céu e que a carne e o sangue são do Filho do Homem,
se entende que assumiu a carne que foi concebida por obra do Espírito Santo e
nasceu da Virgem.
Capítulo
19.
22. Portanto,
o Homem que possui este corpo, Jesus Cristo, é Filho de Deus e Filho do Homem.
Esvaziando-se da forma de Deus, tomou a forma de servo. O Filho do Homem não é
diferente do Filho de Deus, nem é um o que existe na forma de Deus e outro o
que, como Homem perfeito, nasceu na forma de servo.
23. Assim
como, pela natureza criada por Deus, que é origem do nosso ser, nasce o homem
composto de corpo e alma, também Jesus Cristo, por seu poder, é homem composto
de carne e alma e é Deus. Tem em si a humanidade total e verdadeira e a total e
verdadeira divindade.
Capítulo
20.
24. Muitos,
para confirmarem as heresias por meio de artifícios, costumam enganar os
ouvidos dos ignorantes, dizendo que, se o corpo e a alma de Adão estavam em
pecado e o Senhor recebeu da Virgem a carne e a alma de Adão, a Virgem não
concebeu do Espírito Santo o Homem todo. Mas, se entendessem o mistério da
assunção da carne, entenderiam também o mistério pelo qual o Filho do Homem é
também Filho de Deus.
25. Como
se da Virgem recebesse também a alma, quando toda a alma é obra de Deus e a
geração da carne vem sempre da carne.
Capítulo
21.
26. Querem
que o Deus Unigênito, o Deus Verbo, que no
princípio estava junto de Deus, não seja Deus com uma subsistência
pessoal, mas a palavra emitida pela voz, de modo que, assim como a palavra dos
que falam é sua palavra, assim seria o Filho para Deus Pai.
27. Com
sutileza, querem insinuar que o Cristo, nascido como Homem, não é o Deus Verbo
que subsiste pessoalmente e permanece na forma de Deus.
28. Como
o homem teve uma origem humana, em vez de ser animado pelo mistério de uma
concepção espiritual, o Deus Verbo não teve uma existência própria, ao fazer-se
o Homem pelo parto da Virgem, mas, assim como nos profetas está o Espírito da
profecia, também em Jesus estaria o Verbo de Deus. Costumam acusar-nos de dizer
que Cristo nasceu como homem, com nosso corpo e alma.
29. Na
realidade nós pregamos o Verbo feito carne, Cristo que se despojou da forma de
Deus e assumiu a forma de servo, perfeito de acordo com a conformação humana,
nascido Homem à nossa semelhança, de modo que, sendo verdadeiramente Filho de
Deus, seja verdadeiro Filho do Homem. Nasceu como Homem que vem de Deus, e não
deixou de ser Deus por ser Homem nascido de Deus.
Capítulo
22.
30. Como
por si assumiu para si, da Virgem, o corpo, assim também assumiu, de si e para
si, a alma, que nunca é dada pelos homens àqueles que geram. Se a Virgem não
concebeu a carne a não ser por obra de Deus, com muito mais razão a alma deste
corpo só pode vir de Deus e não de outra parte.
31. O
Filho do Homem é também o Filho de Deus. Já que o Filho do Homem é inteiramente
Filho de Deus, como seria ridículo pregarmos um outro qualquer como profeta
animado pelo Verbo de Deus, além do Filho de Deus, que é o Verbo feito carne
quando o Senhor Jesus é Filho do Homem e Filho de Deus!
32. Porque
diz que sua alma está triste até a morte e tem o poder de entregar sua vida e
retomá-la, querem os hereges que sua alma proceda de um princípio exterior, e
não do Espírito Santo, do qual o corpo foi concebido, quando o Deus Verbo,
permanecendo no mistério de sua natureza, nasceu como Homem.
33. Não
nasceu para ser duas pessoas distintas, mas para que se possa entender que,
como antes de ser Homem era Deus, ao assumir a humanidade era Deus e Homem.
Pois, de que modo Jesus Cristo, Filho de Deus, nasceu de Maria, a não ser
porque o Verbo se fez carne (Jo
1,14), isto é, o Filho de Deus, existindo na forma de Deus, assumiu a forma de
servo?
34. Que
Aquele que existia na forma de Deus tenha assumido a forma de servo, mostra que
se unem as naturezas contrárias, de forma que é tão verdadeiro que permaneça na
forma de Deus quanto é verdadeiro que tenha assumido a forma de servo. Pela
significação da palavra usada nos dois casos, deve-se entender a realidade das
naturezas.
35. Pois
está na forma de servo Aquele que também está na forma de Deus. Isto lhe
pertence por natureza, o que é consequência da economia. Ele é uma e outra
coisa, de maneira igualmente real.
36. Está
na forma de Deus de modo tão verdadeiro, como está na forma de servo. Que tenha
assumido verdadeiramente a forma de servo não é diferente de ter nascido Homem;
assim também existir na forma de Deus não é diferente de ser Deus.
37. Professamos
que é um e o mesmo, não por ter deixado de ser Deus, mas pela assunção do
Homem. Confessamos também que foi encontrado na forma de Deus por sua natureza
divina, e, na forma de servo, pela concepção por obra do Espírito Santo.
38. Portanto,
Jesus Cristo, assim como nasceu, padeceu, morreu e foi sepultado, também
ressuscitou. Não pode, nesta diversidade de mistérios, ser dividido em si
mesmo, a ponto de não ser Cristo, pois não há outro Cristo, a não ser o que
existia na forma de Deus e assumiu a forma de servo.
39. O
que morreu, foi o mesmo que nasceu. Não foi um o que morreu e outro o que
ressuscitou e o que está no céu, não é outro diferente do que antes descera dos
céus.
Capítulo
23.
40. O
Homem Jesus Cristo, Deus Unigênito, igualmente Filho do Homem e Filho de Deus,
por ser carne e Verbo, assumiu uma humanidade verdadeira, à semelhança da nossa
humanidade, sem deixar Ele mesmo de ser Deus.
41. Embora
os golpes o atingissem, as feridas se abrissem, os laços o prendessem e fosse
suspenso na cruz, tudo isto, na verdade, trazia o ímpeto do sofrimento, mas não
produzia a dor da paixão, assim como uma lança perfura a água ou atravessa o
fogo ou fere o ar e produz todos os efeitos próprios à sua natureza, como
atravessar, ferir, perfurar, mas a ação realizada não mantém sua força, já que
não é próprio da água ser perfurada, do fogo ser atravessado, do ar ser ferido,
embora pertença à natureza da lança ferir, atravessar e perfurar.
42. Sem
dúvida o Senhor Jesus Cristo sofreu quando foi flagelado, suspenso, crucificado
e quando morreu. Quando o sofrimento arremeteu contra o corpo do Senhor, não
deixou de ser sofrimento, contudo, não deu lugar aos seus efeitos, porque,
enquanto o castigo violento o atormentava, a força do corpo suportava a pena,
sem sentir a dor. O corpo do Senhor teria certamente experimentado nossa dor se
o nosso corpo pudesse também, por sua natureza, andar sobre as ondas, caminhar
sobre as vagas, sem afundar, não sendo impedido por nenhum obstáculo e sem que
as águas cedessem sob os passos firmes, se pudesse penetrar os corpos sólidos,
sem ser impedido pelo obstáculo da casa fechada.
43. Porém,
se somente o corpo do Senhor tivesse tal natureza, de modo que, por seu poder,
fosse levado por sua alma a caminhar sobre as ondas e manter-se de pé sobre as
águas sem afundar, passar através das paredes, como iríamos julgar, a partir da
natureza do corpo humano, aquela carne que foi concebida do Espírito?
44. Pois
esta carne é aquele pão que desceu do céu; e aquele Homem vem de Deus. Tendo,
na verdade, um corpo que poderia padecer, e padeceu, não tinha, no entanto, a
natureza que poderia sofrer. Pois teve uma natureza que lhe é própria aquele
corpo que no monte foi conformado à celeste glória, que, quando toca, afugenta
a febre, que, com sua saliva, dá a vista aos olhos (cf. Mt 17,1; 8,15; Jo 9,6).
Capítulo
24.
45. Mas
por ter Ele as reações de chorar, de ter sede e fome, talvez devesse ter também
uma natureza capaz de experimentar os outros sofrimentos humanos. Aquele que
ignora o mistério das lágrimas, da sede e da fome saiba que o que chorou é
capaz também de vivificar e que, em vez de chorar, se alegra com a morte de
Lázaro (cf. Jo 11,35) e oferece rios de água viva, brotada de si mesmo, àquele
que tem sede (cf. Jo 7,38).
46. Não
sofre sede quem pode dar de beber ao sequioso. O faminto condenou a árvore que
não ofereceu frutos para sua fome (cf. Mt 21,19). Nem pode ser vencida pela
penúria aquela natureza que, com uma ordem, transforma o verde em aridez.
47. Se,
além do mistério das lágrimas, da sede e da fome, a carne assumida, isto é, o
Homem todo, foi submetido aos sofrimentos de nossa natureza, não o foi, porém,
de tal forma que sucumbisse aos danos causados pelo sofrimento, de sorte que,
chorando, não chorava por si, sedento, não bebia para aplacar a sede, faminto,
não se saciava com alimento algum.
48. Nunca
foi indicado que o Senhor, por ter sede ou fome, ou por chorar, tenha chorado,
bebido ou sentido dor, a não ser para demonstrar a realidade do corpo. Aceitando
o que é natural ao corpo, adaptou-se aos costumes do corpo, de modo que, ao
aceitar a bebida e o alimento, não o fez por uma necessidade do corpo, mas para
conformar-se com os costumes.
1. O que você destaca na fala do seu irmão/ã?
2. O que você destaca no texto?
3. Como ele é útil para sua espiritualidade?
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