Hilário de Poitiers (315-368)
O
Tratado da Santíssima Trindade
Livro Décimo (Capítulos 25 - 36)
07 de outubro de 2023
O livro X apresenta uma interpretação original do problema do
sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.
Capítulo
25.
1.
Teve, pois, um corpo, mas, de acordo
com sua origem. Não existindo a partir dos defeitos próprios da concepção
humana, subsistia na forma de nosso corpo, em virtude de seu poder, sendo igual
a nós pela forma de servo; mas livre dos pecados e dos vícios do corpo humano,
quis que estivéssemos nele pela geração da Virgem, mas não quis que nossos
vícios, pelo poder de sua origem, estivessem nele.
2.
Nascido como Homem, não nasceu com os
vícios da concepção humana.
3.
O Apóstolo faz questão de demonstrar o mistério
desta natividade, quando diz: Mas humilhou-se, assumindo a
forma de servo, constituído à semelhança do Homem e reconhecido como Homem (Fl
2,7).
4.
Ao dizer que tomou a forma de servo,
temos de entender que nasceu na forma de Homem e, visto que se fez semelhante
ao Homem e foi reconhecido como Homem, o aspecto e a realidade do corpo atestam
a sua humanidade.
5.
Porém, Aquele que foi reconhecido como
Homem não conhece os vícios que se encontram no Homem, pois seu nascimento se
deu à semelhança da natureza, mas sem os defeitos que lhe são próprios.
6.
Por isso acrescentou o Apóstolo: constituído
à semelhança do homem e reconhecido como homem,
para que não fôssemos levados a pensar que a realidade do nascimento incluía a
possessão da natureza enfraquecida pelo vício, já que se indicava a verdadeira
natividade com as palavras a forma de servo, e
com as palavras reconhecido como Homem, se
indicava a semelhança de natureza, tendo Ele, por si mesmo, nascido Homem por
meio da Virgem e sendo reconhecido na semelhança da carne viciosa do pecado.
7.
O mesmo Apóstolo, escrevendo aos Romanos,
atesta-o ao dizer: De fato – coisa
impossível à Lei porque enfraquecida pela carne – Deus, enviando o seu próprio
Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado
na carne (Rm 8,3).
8.
Não foi aquela condição unicamente de
Homem, mas como de
Homem e esta carne não era de pecado, mas semelhante
à carne de pecado.
9.
A condição da carne existe pela
realidade do nascimento, já que é semelhante à carne de pecado, mas está isento
dos vícios da paixão humana.
10. Assim,
o Homem Cristo Jesus também teve um verdadeiro nascimento porque é Homem e não
tem pecado porque é Cristo.
11. Quem
é homem não pode deixar de ser homem, porque nasceu. Quem é Cristo, não pode
perder a sua condição de Cristo. Assim, já que Cristo Jesus é Homem, tem também
o nascimento de homem, porque é Homem, mas não tem a fraqueza humana dos
vícios, porque é Cristo.
12. Cristo
foi constituído à semelhança do homem e reconhecido como homem. Foi enviado na semelhança
da carne de pecado, sendo reconhecido como homem e está na forma de servo,
porém não tem os vícios da natureza.
13. Por
existir à semelhança da carne de pecado, o Verbo certamente é carne, porém sua
própria carne não é pecado.
14. Como
Jesus Cristo é Homem (1Tm
2,5), é na verdade Homem, mas o Homem não podia ser diferente do que é Cristo.
Pelo nascimento corporal, nasceu como Homem, sem ter os vícios do Homem, que
não estão na sua origem.
15. O
Verbo feito carne não poderia deixar de ser carne porque se fez carne, e o
Verbo, mesmo que se tenha feito carne, não deixou de ser o Verbo.
16. E
já que o Verbo feito carne não pode deixar de ter a natureza de sua origem, não
poderia deixar de permanecer na natureza de sua origem, porque é o Verbo.
17. Não
se pode pensar que o Verbo não seja verdadeiramente carne, porque se fez carne.
Contudo, porque habitou entre nós, esta carne não deixa de ser o Verbo, mas é a
carne do Verbo que habita na carne.
18. Sendo
assim, vejamos se, consumada a paixão, nos é permitido pensar que existiu no
Senhor a fraqueza das dores corporais. Afastadas, por enquanto, aquelas
palavras às quais a heresia atribui o medo ao Senhor, confiramos os próprios
acontecimentos. Pois não pode acontecer que o temor seja indicado pelas palavras
de quem fundamenta sua confiança nos fatos.
Capítulo
26.
19. A
fé apostólica nos instrui para a compreensão deste mistério, demonstrando que o
Homem Jesus Cristo foi constituído à semelhança do homem e reconhecido como homem.
20. Foi
enviado na semelhança da carne de pecado, sendo reconhecido como homem, e está
na forma de servo, porém não tem os vícios da natureza. Por existir à semelhança
da carne do pecado, o Verbo certamente é carne, porém sua própria carne não é
pecado.
21. Como
Jesus Cristo é Homem (1Tm
2,5), é na verdade Homem, mas o Homem não podia ser diferente do que é Cristo.
Pelo nascimento corporal, nasceu como Homem, que estão na sua origem. O Verbo
feito carne não poderia deixar de ser carne porque se fez carne, e o Verbo,
mesmo que se tenha feito carne, não deixou de ser o Verbo.
22. E
já que o Verbo feito carne não pode deixar de ter a sua natureza de sua origem,
não poderia deixar de permanecer na natureza de sua origem, porque é o Verbo.
23. Não
se pode pensar que o Verbo não seja verdadeiramente carne, porque se fez carne.
Contudo, porque habitou entre nós, esta carne não deixa de ser o Verbo, mas é a
carne no Verbo que habita na carne; sendo assim, vejamos se, consumada a
paixão, nos é permitido pensar que existiu no Senhor a fraqueza das
dores corporais.
24. Afastadas,
por enquanto, aquelas palavras às quais a heresia atribui o medo ao Senhor,
confirmamos os próprios sentimentos, pois não pode acontecer que o temor seja
indicado pelas palavras de quem fundamenta sua confiança nos fatos.
Capítulo
27.
25. A
ti parece, ó herege, que tivesse medo da paixão o Senhor da glória? Mas, se
pelo erro desta ignorância, Pedro é Satanás e escândalo (cf. Mt 16,23), por
amor a Cristo, que não lhe fora revelado nem pela carne nem pelo sangue, mas
pelo Pai que está nos céus, Pedro teve horror ao mistério da paixão e, por esta
sentença severa, foi confirmado na fé.
26. Quanto
a ti, por que te separarias da esperança, negando Cristo Deus e acrescentando
ainda que teve medo da paixão? Acaso teve medo dos que vieram armados para
prendê-lo, quando foi ao seu encontro? (Cf. Jo 18,6.) Havia em seu corpo tal
fraqueza, que os bandos de perseguidores caíram, e, sem suportar a majestade daquele
que iam prender, recuaram? Que fraqueza crês existir no corpo, que tem por natureza
o poder?
Capítulo
28.
27. Talvez
tenha temido a dor das feridas, mas pergunto se teve horror dos pregos que penetravam
na carne, quem, só ao tocar, restituiu a carne da orelha cortada (cf. Lc 22,31).
28. Mostra-nos
tu, que afirmas a fraqueza do Senhor, como, justamente no tempo da paixão, o
poder da carne o enfraqueceu. Pois, tendo Pedro desembainhando a espada, ficou
o servo do sacerdote sem a orelha. Como, ao tocar na ferida causada pelo corte
da orelha, Cristo curou sua carne? Donde, em meio ao sangue que escorre do
lugar cortado pela espada afiada, enquanto o corpo sofre, mutilado, aparece o
que não existia, surge o que não estava ali, volta ao seu lugar o que faltava?
29. Então,
esta mão que reconstitui a orelha, sofrerá com o cravo? Sentirá em si mesmo a
ferida, quem não permitiu que outro sofresse com a dor da ferida? Fica triste
pelo medo de que sua carne seja machucada, Aquele para quem foi fácil
reconstituir a carne amputada só ao tocá-la?
30. Se
este poder existia no corpo de Cristo, em nome de que fé, indago, se afirma que
tenha sido fraco por natureza Aquele para quem foi natural inibir a natureza de
todas as enfermidades humanas?
Capítulo
29.
31. Mas
talvez, com estulta e ímpia perversidade, alguém afirme haver nele uma natureza
fraca, porque sua alma estava triste até a morte (Mt
26,38). Não te censuro ainda, ó herege, por não entenderes a força da palavra.
Antes indago por que não te lembras de ter Ele dito quando Judas saía para a
traição: Agora é glorificado o Filho do Homem
(Jo 13,31). Pois, se a paixão o iria glorificar, como o medo
da paixão o tornaria triste? A não ser, talvez, que fosse tão insensato a ponto
de temer aquilo que, ao fazê-lo sofrer, iria glorificá-lo.
Capítulo
30.
32. Mas
talvez se julgue ter ele temido a ponto de rogar para que o cálice fosse
afastado, ao dizer: Abba, Pai, a ti tudo é possível:
afasta de mim este cálice (Mc 14,36). Para que eu não te acuse
por outras coisas, pergunto se não serás acusado pela própria tolice de tua
impiedade, porque leste: Guarda tua espada na bainha;
deixarei eu de beber o cálice, que o Pai me deu? (Jo
18,11.)
33. Como,
pelo medo de sofrer, iria pedir que se afastasse dele o que, pelo desejo de
cumprir o desígnio da salvação, deveria realizar com entusiasmo? Não é coerente
que não quisesse padecer, quem queria padecer. E se sabias que Ele queria
padecer, seria mais piedoso confessar que não entendes a palavra, do que
atrever-te, com furor de ímpia estultice, a afirmar que pedia para não padecer
Aquele que sabes que queria padecer.
Capítulo
31.
34. Creio
que te armarás para a luta de tua impiedade também com o dito do Senhor: Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mc 15,34). Depois da
ignomínia da cruz, talvez julgues ter-se afastado dele o favor do auxílio
paterno, e brotando daí a queixa pelo seu abandono na desolada fraqueza.
35. Se,
em teu parecer, o abandono e a fraqueza da Cruz são ignomínia, seria preciso
que não te lembrasses dessas palavras: Eu vos digo que de ora em diante
vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens do
céu (Mt 26,64).
Capítulo
32.
36. Onde,
pergunto, o temor da paixão? Onde a fraqueza? Onde a dor? Onde a ignomínia?
Dizem os ímpios que ele teme, mas Ele mesmo declara querer padecer. É acusado
de fraco? Ele se mostra poderoso, quando vai ao encontro dos perseguidores que,
aterrorizados, não podem resistir-lhe. É acusado de sofrer com chagas da carne?
Quando reconstituiu a carne da orelha ferida, mostrou que, sendo Ele mesmo
carne, está fora da natureza carnal que sofre com as chagas, porque, quando
toca com sua mão a orelha cortada, esta mão pertence ao corpo e se a mão
reconstitui a orelha no lugar da chaga, isto significa que esta mão não
pertence a um corpo fraco.
Capítulo
33.
37. Dizem,
porém, que a cruz lhe foi ultrajante. No entanto, por ela, deve-se ver o Filho do
Homem assentar-se à direita do Poder, e depois de ter nascido como Homem pelo parto
da Virgem, voltar em majestade sobre as nuvens do céu.
38. Não
percebes, com teu modo de pensar irreligioso, as causas do que é natural. Com o
espírito cheio de impiedade e de erro, não entendes o mistério da fé, e te
afastas, pela estupidez herética, do próprio senso comum do mundo.
39. Pois
tudo o que é de temer deve ser evitado enquanto se teme. O fraco teme por causa
de sua fraqueza, e o que sofre a dor tem em si uma natureza invariavelmente
sujeita a dor. Tudo o que é ultrajante é sempre desonroso. Tu, porém, por meio
de que raciocínios pensas poder entender que Nosso Senhor Jesus Cristo se
apressa para o que teme e que, por fraqueza, treme com aquilo que faz tremer os
fortes?
40. O
que não permite sofrer com as chagas, sofre ao ser ferido? Pode ser desonrado
pela contumélia da cruz, Aquele para quem a cruz significa que estará sentado
junto de Deus, e que voltará ao reino?
Capítulo
34.
41. Talvez
penses que te foi oferecida uma ocasião para a impiedade e que temeu a descida
aos infernos e a própria necessidade de morrer, o que parece ser atestado pela palavra:
Pai, em tuas mãos entrego meu espírito (Lc
23,46).
42. Lendo
isto sem compreender, ou bem, respeitosamente, o passarias em silêncio,
ou bem terias de entendê-lo de acordo com a fé, para que não te transviasses
ainda mais com afirmações atrevidas, sendo incapaz da verdade, por causa do teu
ímpio furor.
43. Segundo
o teu modo de pensar, acaso se deve crer que temia o inferno, o caos, as chamas
tórridas, o abismo e toda a espécie de castigos vingadores, quem disse ao ladrão
na cruz: Em verdade, eu te digo, hoje
estarás comigo no paraíso (Lc 23,42)?
44. Não
poderás submeter o poder desta natureza, já não ao medo, mas até mesmo aos
limites das regiões infernais, pois, se Ele desceu aos infernos, não deixou o
paraíso (assim como o Filho do Homem, falando na terra, permanece também no
céu) e prometeu a seu Mártir o paraíso, oferecendo-lhe as delícias da perfeita
beatitude.
45. Não
é possuído pelo medo corporal quem penetra nos infernos e em toda a parte se
faz presente pelo poder de sua natureza. O caos não pode exigir para si, pelo
terror da morte da geena, esta natureza, senhora do mundo, e imensa na
liberdade do poder espiritual, que não pode carecer das delícias do paraíso,
pois o Senhor estará nos infernos, mas também estará no paraíso.
46. Reserva
para o medo do sofrimento uma porção da natureza indivisível, para que possa
temer a dor e põe nos infernos esta parte de Cristo que deve sentir dor e, no
paraíso, deixa a que deve reinar.
47. O ladrão
pede que se lembre dele em seu reino. Creio que foi movido a fazer esta sincera
confissão de fé, ao ouvir o gemido, quando o cravo atravessava a palma da mão e
que, pela dor do corpo enfraquecido de Cristo, aprendeu o que seja o reino de
Cristo.
48. Aquele
pede para ser lembrado no seu reino, tu o entregas ao medo da morte na cruz. O
Senhor promete-lhe participar em breve da comunhão no paraíso, tu encerras a
Cristo nos infernos, sob o terror do castigo.
49. Tua
fé e a dele significam esperanças diferentes. Na cruz, o ladrão mereceu o
paraíso, confessando estar no reino o Cristo ainda pendente da cruz. Tu, que,
ao contrário, entregas o Cristo à dor do castigo e ao medo da morte, é forçoso
que sejas privado do paraíso e do reino.
Capítulo
35.
50. Examinando,
em seu conjunto, o valor dos seus ditos e gestos, não temos dificuldade em
demonstrar que a natureza de seu corpo não possui a fraqueza da natureza
corpórea, porque, em virtude desta sua natureza, podia eliminar toda
fraqueza dos corpos.
51. Sua
paixão, embora se tenha dado no corpo, não acarretou ao corpo uma natureza que
sofre. Mesmo estando o Senhor na forma de nosso corpo, não se tratava, no
entanto, do corpo de nossa natureza viciada, já que não teve a mesma origem,
porque, tendo sido concebido pelo poder do Espírito Santo, a Virgem o deu à
luz.
52. Mesmo
tendo-o gerado de acordo com a função própria do seu sexo, não recebeu os
elementos da concepção terrena. Gerou de si mesma o corpo que fora concebido
por obra do Espírito e que tinha em si, certamente, a realidade do corpo
humano, mas sem fraqueza da sua natureza.
53. O seu
corpo é na verdade um corpo porque foi gerado pela Virgem, mas não tem a fraqueza
do nosso corpo, porque deve seu princípio à concepção espiritual.
Capítulo
36.
54. Os
hereges parecem apoiar-se, para lutar contra a fé apostólica, neste dito: Minha
alma está triste até a morte (Mt 26,38). A afirmação está
triste atesta, segundo eles, a fraqueza da natureza, pois,
ao tomar consciência da morte começou a estar triste.
55. Em
primeiro lugar, interrogo o bom senso da inteligência humana sobre o que seja
estar triste até a morte.
Não significa o mesmo estar triste por causa da morte e estar triste até a morte.
Quando a tristeza é causada pela morte, a própria morte é o motivo da
tristeza, mas onde há tristeza até a morte, a morte já não é o motivo da
tristeza, mas o seu fim.
56. Deve-se,
portanto, perguntar de onde vem a tristeza ao que está triste, não por causa da
morte, mas até a morte, pois está triste, não por um tempo incerto e indefinido
para a humana ignorância, mas até a morte.
57. Portanto,
a tristeza não é sentida por causa da morte, já que deve ter o seu fim com a
morte.
1. O que você destaca na fala do seu irmão/ã?
2. O que você destaca no texto?
3. Como ele é útil para sua espiritualidade?
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