Hilário de Poitiers (315-368)
O
Tratado da Santíssima Trindade
Livro Décimo (Capítulos 37- 46)
14 de outubro de 2023
O livro X apresenta uma interpretação original do problema do
sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.
Capítulo
37.
1.
Para que possamos entender a causa da
tristeza, vejamos o que antecedeu a esta confissão de tristeza e o que se seguiu.
Todo o mistério da paixão e da fé fora consumado pelo Senhor na ceia de Páscoa.
Advertiu que todos se escandalizariam por causa dele (cf. Mt 26,31-32), mas
prometeu que os precederia na Galileia (cf. Mt 26-33).
2.
Pedro prometeu que ainda que os outros
se escandalizassem, por sua fé constante, ele não se escandalizaria. Mas o
Senhor, que pela sua natureza de Deus não ignorava o que aconteceria, respondeu
que ele o negaria três vezes, para que se entendesse o escândalo dos outros, ao
ver Pedro, que cairia em tão grave perigo de fé, negando-o por três vezes.
3.
Então chamou a Pedro e Tiago, dois
escolhidos para o martírio, e João, que devia ser confirmado para a pregação do
Evangelho, e disse estar triste até a morte. Em seguida, adiantando-se, orava,
dizendo: Meu Pai, se é possível, passe de
mim este cálice; mas não seja como eu quero, mas como tu queres (Mt
26,39).
4.
Roga para que se afaste o cálice que,
na verdade, estava junto dele, porque então se consumaria o derramar do sangue
da Nova Aliança, pelos pecados de muitos. Portanto, não roga que o
cálice não esteja junto dele, mas que passe além dele.
5.
Em seguida, roga para que não se faça a
sua vontade e pede que não lhe seja concedido aquilo que quer que seja feito,
pois diz: Mas não como eu quero, mas como
tu queres. O pedido com relação ao cálice significa que está unido à
solicitude humana, porém não quer afastar-se da decisão da vontade que tem em
comum com o Pai. Mas para que não se entendesse que rogava na intenção de si mesmo
e para que o motivo pelo qual expressava a sua vontade fosse manifestado e se entendesse
por que sua súplica não tinha sido atendida, começou assim a sua petição: Meu
Pai, se for possível.
6.
Não há certeza de que não exista nada
impossível ao Pai? E se nada é impossível para o Pai, devemos ver a que se
refere esta condição se for possível que
é deixada em aberto.
7.
Depois desta prece, continua: Ao
voltar para junto de seus discípulos, encontrou-os dormindo, e disse a Pedro:
“Não pudestes vigiar uma hora comigo?” Vigiai e orai, para não entrardes em
tentação. Na verdade, o Espírito está pronto, mas a carne é fraca (Mt
26,40-41).
8.
A causa da tristeza e o pedido para que
se afaste o cálice ainda estão obscuros? Manda-os vigiar e orar com Ele para
que não caiam em tentação, pois o espírito está pronto, mas a carne é fraca.
Aqueles que prometiam não se escandalizar, pela constância da consciência fiel,
eles mesmos iriam sentir o escândalo, pela fragilidade da carne.
9.
Por conseguinte, não está triste por
causa de si mesmo, nem ora para si, mas por aqueles que exorta a orarem
vigilantes, para que sobre eles não recaia o cálice da paixão. Roga para que
passe, isto é, que não permaneça neles.
Capítulo
38.
10. Rogou
que o cálice, se fosse possível, se afastasse dele, porque nada é impossível a Deus,
como Ele próprio dissera: Pai, a ti tudo é possível (Mc
14,16), mas é impossível ao Homem não ser vencido pelo terror do sofrimento e
não se pode, a não ser pela provação, conhecer a fé.
11. Por
isso quer, em prol dos homens, Ele, como Homem, que passe o cálice, e a sua
vontade, como a de Deus que procede de Deus, se identifica com a decisão da
vontade paterna. O significado da palavra se for
possível, Ele o ensinou claramente quando disse a Pedro: Eis
que Satanás pediu insistentemente para te joeirar como o trigo, mas eu roguei
por ti para que tua fé não desfaleça (Lc 22,31-32).
12. Pois
todos iriam ser tentados por este cálice da paixão do Senhor. E por Pedro, pede
ao Pai para que não desfaleça sua fé, para que, ao que negava por fraqueza, ao
menos a dor da penitência não faltasse, pois, esta fé não desfaleceria se ele
se arrependesse.
Capítulo
39.
13. O
Senhor está triste até a morte porque na hora da morte, o tremor de terra, as trevas
durante o dia, o véu rasgado, a abertura dos túmulos, a ressurreição de mortos iriam
confirmar a fé dos apóstolos, que o terror da prisão noturna, os flagelos,
socos, escarros, coroa de espinhos, peso da cruz, e todo o insulto da paixão e,
em seguida, a condenação à maldição da cruz iriam abalar.
14. Por
isso, sabendo o Senhor que tudo ia cessar depois de sua paixão, está
triste até a morte. Sabe que este cálice não pode passar sem
que o beba, quando diz: Meu Pai, se não é possível que
passe este cálice sem que eu o beba, seja feita a tua vontade (Mt
26,42), o que significa que, consumada em si a paixão, o medo do cálice
passaria, já que, a não ser que o bebesse, não poderia passar.
15. O terror
da paixão a ser consumada nele iria trazer o fim do terror, porque, depois de
sua morte, pela glória do seu poder, desapareceria o escândalo devido à
fraqueza dos apóstolos.
Capítulo
40.
16. Embora,
ao dizer: Seja feita a tua vontade,
a respeito do escândalo que vai causar o cálice de sua paixão, entregasse os
Apóstolos ao arbítrio da vontade paterna, contudo, tendo repetido por três
vezes esta prece, disse em seguida: Dormi agora, e descansai (Mt
26,45).
17. Não
parece estar fora de propósito que, antes, os tenha censurado por dormir e
agora, ordene dormir e descansar? Lucas parece que nos permite compreender o
sentido desta exortação. Ele – que dissera ter Satanás pedido para joeirar os
apóstolos como trigo e que o Senhor tinha orado para que a fé de Pedro não
desfalecesse – acrescentou então que, depois da longa prece do Senhor, um Anjo
apareceu para confortá-lo.
18. E na presença deste, começou a orar com maior
insistência, de tal modo que o suor do corpo lhe caísse em forma de gotas de
sangue (cf. Lc 22,43-44). Uma vez que o Anjo fora enviado para a proteção dos
Apóstolos e por ele fora confortado o Senhor, para que não se entristecesse por
causa deles, já sem receio nem tristeza, diz: Dormi agora,
e descansai.
19. Na
verdade, nem Mateus nem Marcos dizem coisa alguma sobre o Anjo e o pedido do
diabo. Mas, depois da tristeza da alma, da censura aos que dormiam, do pedido para
que passasse o cálice, não foi sem motivo que se seguiu a exortação para que
dormissem, visto que, como estivesse para afastar-se deles, já confortado pelo auxílio
prestado pelo Anjo, permitia que dormissem, porque seriam bem guardados.
Capítulo
41.
20. Não
devemos ignorar de modo algum que, em muitos códices gregos e latinos, nada se
encontra referente ao suor de sangue nem à vinda do Anjo. Por isso, hesita-se,
sem saber se falta em algum livro ou se sobra em outros (a diferença nos livros
nos deixa incertos). Porém, se a alguns agrada esta heresia que afirma ser Ele
fraco, pois lhe foi necessário ser reconfortado pelo auxílio do Anjo, que se lembre
de que o Criador dos Anjos não precisava da proteção da sua criatura, sendo
então necessário entender-se que foi confortado do mesmo modo que foi triste.
21. Pois
se, para nós, foi triste, também por nossa causa foi reconfortado. Foi
reconfortado pelo mesmo motivo pelo qual estava triste. Porém, ninguém ousará
atribuir o suor à fraqueza, porque é contra a natureza suar sangue e não é
fraqueza o que o poder de Cristo realizou contrariando o costume da natureza.
22. Isto
não pode, de modo algum, apoiar a heresia que afirma sua fraqueza, mas antes, o
suor de sangue prova a verdade do corpo contra a heresia que afirma, mentirosamente,
que se trata só de uma aparência.
23. Portanto,
não só a tristeza é por nossa causa, também a oração é para nós e não se poderá
deixar de entender que tudo isto foi feito por nossa causa, porque tudo o que
foi motivo de sua oração foi por nós, pois era por nós que Ele temia.
Capítulo
42.
24. Os
Evangelhos se completam mutuamente, porquanto umas coisas se explicam pelas outras,
dando todas elas testemunho de um só Espírito.
25. João,
o maior dos pregadores das coisas espirituais, o demonstra quando diz que o
Senhor assim orou pelos Apóstolos: Pai Santo, guarda-os em teu
nome. Quando estava com eles, Eu os guardava em teu nome; aqueles que me deste,
eu os guardei (Jo 17,11-12).
26. Esta
palavra que os demais omitem indica que não foi para si, mas para os Apóstolos
esta oração.
27. Também
não foi triste para si mesmo Aquele que os exorta a orar para não serem
tentados. Nem foi enviado para Ele, o Anjo, pois, se quisesse, traria do céu
doze mil legiões, nem teme a morte Aquele que está triste até a morte, nem pede
que o cálice não passe por Ele, mas sim que passe dele, embora não possa passar
sem que o beba. Porquanto passar não
é deixar um lugar, mas sim não existir, absolutamente, o que tanto a palavra
evangélica quanto a apostólica significam, ao dizer: O
céu e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão (Mc
13,31).
28. Também
diz o Apóstolo: Eis que as coisas antigas
passaram, e se fez uma realidade nova (2Cor 5,17). E: E
a figura deste mundo passará (1Cor 7,31). Por conseguinte, o cálice,
que roga ao Pai que passe, não pode passar sem que o beba, e o Senhor roga
certamente por aqueles que Ele guardava enquanto estava com eles, que o Pai lhe
deu para que fossem salvos.
29. E
agora, indo ao encontro do mistério da morte, roga ao Pai que os guarde. A
presença do anjo que lhe foi enviado não é uma presença ambígua, mas significa
a clara certeza de ter sido atendida a prece, o que se demonstra quando os
convida ao sono, depois de ter orado.
30. O
Evangelista demonstra não só o efeito da oração pedida, como a segurança que significa
dormir sem perigo, durante o próprio desenrolar-se da paixão, ao dizer que
todos os Apóstolos iriam se salvar das mãos dos perseguidores: Para
que se cumprisse a palavra que diz: “daqueles que me deste, não perdi nenhum” (Jo
18,9).
31. Cumpriu-se,
por meio dele, o que foi pedido na oração, e todos foram salvos. Roga ao Pai
para que, aos que foram salvos por Ele, agora, Ele mesmo, salve-os, em seu
nome. Na verdade, salva de tal modo que a fé de Pedro não desfalece, graças ao
arrependimento subsequente, não obstante o seu terror.
Capítulo
43.
32. A
oração do Senhor narrada por João, o pedido do diabo relatado por Lucas, a tristeza
até a morte, a censura por terem adormecido e a permissão para dormirem, que encontramos
em Mateus e Marcos, não deixam nenhuma dúvida.
33. A
oração do Evangelho de João, em que recomenda os Apóstolos ao Pai, esclarece a
causa da tristeza e da súplica para que passe o cálice. O Senhor não roga para
que se afaste dele a paixão, mas roga ao Pai que guarde os Apóstolos quando
estiver padecendo. A prece contra o diabo transmitida por Lucas significa a
confiança que permite o sono anteriormente proibido.
Capítulo
44.
34. Não
pertence à natureza, que está acima do humano, a ansiedade e o temor humano.
35. Não
está sujeito aos males do corpo terreno o corpo que não foi originado de
elementos terrenos.
36. O
Espírito Santo, pelo mistério da concepção, deu origem ao Filho do Homem. A
virtude do Altíssimo comunicou a força ao corpo que, pela concepção do
Espírito, a Virgem gerava. Pela comunhão com a alma, unida ao corpo, a
sensibilidade do corpo animado vive. A alma que penetra o corpo vivifica o
corpo para que sinta as dores que lhe são infligidas.
37. Quando
a alma, por causa do santo fervor da esperança celeste e de sua fé, despreza o
princípio da origem terrena de seu corpo, este corpo adquire, na dor, a sensibilidade
e a espiritualidade da alma, de forma a não sentir aquilo que padece.
38. Que
diremos então sobre a natureza do corpo do Senhor, do que desceu do céu, do
Filho do Homem, se mesmo os corpos terrenos, por vezes, não conhecem a dor e o
medo, com relação às coisas que devemos temer ou que necessariamente nos causam
dor?
Capítulo
45.
39. Quero
saber se as chamas da fornalha da Babilônia, alimentadas e excitadas ao máximo,
não provocaram temor nos jovens israelitas e se naqueles corpos, iguais aos nossos
pela sua concepção, penetrou o medo de tão grande fogo (cf.
Dn 3,25).
40. Pergunto
também se sofreram com as chamas que os envolveram. Talvez, justamente por não terem
sido queimados, nada sofreram, e se poderia pensar que naquele momento faltasse
às chamas a natureza de queimar.
41. Sem
dúvida, pertencia à natureza do corpo o temor de ser queimado. E podia ser
queimado. Mas, pelo espírito de fé, os corpos terrenos, isto é, originados a
partir dos elementos e causas comuns a todos, não puderam queimar-se nem temer.
42. Se
aquilo que é contra a natureza do corpo, pela fé em Deus, aconteceu com o homem,
o que acontece com o Senhor, em virtude da natureza de sua origem, pela força do
Espírito, não pode ser julgado conforme a natureza comum.
43. Os
jovens estão amarrados no meio do fogo e não têm medo do fogo. Enquanto
passeiam, não sentem as chamas; enquanto oram, não podem ser queimados, mesmo
estando no fogo. Neles, tanto os corpos quanto o fogo perdem a sua natureza;
nem aqueles são queimados, nem este queima. No entanto, em tudo o mais, existe
a natureza do fogo e do corpo, pois os circunstantes são queimados, e os que
administram o castigo são castigados.
44. Não
queres, ímpio herege, que Cristo não sentisse dor quando o cravo atravessou as
palmas de sua mão, nem supões que aquela chaga, produzida pela lança, não tenha
provocado qualquer dor. Pergunto por que os jovens não temeram o fogo, nem
sentiram dor. Que haveria na natureza de seus corpos para vencer a natureza do
fogo? Por causa do fervor da fé e da glória do santo martírio, não sentem medo
do que causa temor.
45. Cristo,
apesar de concebido segundo a origem de nossos defeitos, no entanto, por
continuar a ser Deus na cruz e Juiz futuro do mundo, e Rei dos séculos eternos,
estaria triste pelo medo da cruz? Esquecido de tão grandes prêmios, poderia
tremer pela ansiedade de um medo vil?
Capítulo
46.
46. Daniel,
que deveria ser alimentado com a comida do profeta, não temeu o fosso dos leões
(cf. Dn 14.30-39).
47. Os
Apóstolos, flagelados por causa do nome de Cristo, alegram-se pelo sofrimento.
Para Paulo, sua libação é coroa de justiça. Tendo de ser degolados, os
Mártires, com hinos, estendem os pescoços aos algozes, e, cantando, sobem às
pilhas de lenha armadas para o fogo.
48. O
sentimento da fé anula de tal maneira o medo natural devido à fraqueza do corpo
que transforma e muda os corpos, afastando a sensação de dor. A decisão da alma
acarreta a firmeza do corpo, e o corpo animado apenas sente aquilo para que o
desejo da alma o move.
49. E aquilo
que o espírito despreza pelo desejo da glória, o corpo, que recebe da alma sua
vida, não sente.
50. Se
estas coisas são naturais nos homens abrasados pelo ardor da glória, a ponto de
não tomarem conhecimento de seus sofrimentos, ignorar suas feridas e não
perceber a morte, pensaremos então que o Senhor da glória, Jesus Cristo – cuja
força se encontra até mesmo na fímbria do manto, cuja saliva e cuja palavra são
de tal natureza que o manco já não é mais manco, quando Ele ordena que estenda
a mão, o cego de nascença não mais sente o defeito que tem desde o nascimento,
o que teve a orelha cortada já não está mais mutilado –, possui a fraqueza do
corpo ferido e cheio de dores que o espírito de sua fé não permitiu que tivessem
aqueles gloriosos e bem-aventurados varões?
1. O que você destaca na fala do seu irmão/ã?
2. O que você destaca no texto?
3. Como ele é útil para sua espiritualidade?
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