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Hilário de Poitiers (315-368)
O
Tratado da Santíssima Trindade
Livro Décimo (Capítulos 47- 55)
21 de outubro de 2023
O livro X apresenta uma interpretação original do problema do
sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.
Capítulo
47.
1.
O Deus Unigênito suportou em si mesmo
todo o nosso sofrimento, que se abateu sobre Ele; mas sofreu com o poder de sua
natureza, como nasceu pelo poder de sua natureza.
2.
Quando nasceu, conservou, no
nascimento, a natureza de sua onipotência. Nasceu como nascem os homens, mas
não foi concebido como os homens. Pelo seu nascimento tem o modo de ser da
condição humana, mas por causa de sua origem, está livre dos condicionamentos
próprios da condição humana.
3.
Por isso sofreu, no seu corpo, como
padece o nosso corpo frágil, mas de tal modo que os sofrimentos de nosso corpo
foram assumidos pela força de seu corpo.
4.
Desta nossa fé, também a palavra
profética dá testemunho, ao dizer: Ele levava sobre si as nossas
enfermidades, e nossas dores Ele as carregava; e nós o reputávamos como um
ferido, chagado e humilhado. Mas foi ferido por causa de nossas iniquidades, e
esmagado pelos nossos pecados (Is 53,4-5).
5.
Engana-se, portanto, a opinião humana,
quando julga que sentiu dor ao padecer. Pois, carregando nossos pecados, isto
é, assumindo o corpo do nosso pecado, Ele mesmo não peca. Pois foi enviado à
semelhança da carne do pecado (cf. Rm 8,3) e, certamente, carregava, na carne,
os pecados, mas os nossos.
6.
Sofre por nós, mas não sente como nós
sentimos, porque, sendo reconhecido como Homem (cf. Fl 2,7), tinha um corpo
submetido à dor, mas sem ter a natureza capaz de sofrer, porquanto sua condição
é de Homem, mas não a sua origem, visto que nasceu pela concepção do Espírito
Santo.
7.
Por isso se considerou que sofria com
as dores, as chagas e as humilhações. Assumiu a forma de servo e, nascido como
Homem, da Virgem, deixou-nos a impressão de que a dor de sua Paixão foi
natural. Ele foi ferido, mas por causa de
nossas iniquidades (Is 53,5).
8.
Embora tenha sido ferido, a chaga não é
a de sua iniquidade, e tudo o que sofre, não o sofre para si. Pois não nasceu
como Homem para si, nem por si é iníquo. O Apóstolo declara a causa desta
disposição divina, dizendo: Por Cristo nós vos rogamos,
reconciliai-vos com Deus. Aquele que não conhecia pecado, Deus o fez pecado por
nós (2Cor 5,20).
9.
Aquele que iria condenar o pecado na
carne por meio do pecado, embora não tivesse pecado, foi feito pecado e,
condenando o pecado por meio da carne, sem conhecer a carne, se fez carne por
nós e, por causa de nossas iniquidades, foi ferido.
Capítulo
48.
10. Além
disso, o Apóstolo não vê em Cristo o medo da dor. Pois, falando da economia da
paixão, anunciou-a no mistério da divindade, dizendo: Ele
nos perdoou todas as nossas faltas: destruiu em detrimento das ordens legais o
quirógrafo da sentença contra nós e o suprimiu pregando-o na Cruz, na qual Ele
despojou os principados e as potestades, exibindo-as em espetáculo, levando-as
em cortejo triunfal e delas triunfando em si mesmo (Cl
2,13-15).
11. Parece-te
então que este poder sucumbiu à ferida do cravo e ficou apavorado com o golpe
doloroso, transformando-se sua natureza na do que sofre? O Apóstolo nos diz que
nele Cristo fala (cf. 2Cor 13,3) e, lembrando a obra de nossa salvação
realizada pelo Senhor, assim explica a morte de Cristo: despoja-se da carne, e,
com segurança, desonra as Potestades e delas triunfa em si mesmo.
12. Se
houve, em sua paixão, alguma necessidade e não o dom de tua salvação, se a cruz
significa a dor do que está crucificado e não a crucifixão do decreto em que
está escrita a tua condenação à morte, se na sua morte está a força da morte, e
não o seu despojamento das vestes de carne, pelo poder de Deus, se finalmente a
morte não representa a desonra dos poderosos, a confiança e o triunfo, se nela
há necessidade da natureza, se nela há violência, desconfiança e desonra, deves
atribuí-la à sua fraqueza.
13. Se,
porém, o contrário de tudo isso é proclamado pelo mistério da Paixão, que
loucura é esta, pergunto eu, que modifica o significado do que cremos, repudia
a doutrina apostólica, toma como injúria de uma natureza covarde o que é amor e
mistério, o que é poder, confiança e triunfo?
14. Trata-se
evidentemente de um triunfo que, ao ser procurado para ser conduzido à cruz não
se suporte sua presença quando ela é oferecida, que se submeta à sentença de
morte e, em seguida, se assente à direita do Poder, que seja pregado à cruz
pelos cravos e ore pelos perseguidores, que beba o vinagre, mas consume o
mistério da salvação, que seja contado entre os iníquos, mas ofereça a dádiva
do paraíso, que seja levantado no lenho, mas faça tremer a terra, que fique
suspenso da cruz, mas obscureça o sol e o dia, que saia do corpo, mas faça
voltar as almas aos corpos, que seja enterrado como morto, mas ressurja como
Deus, que, como Homem, sofra por nós todas as fraquezas, mas, como Deus,
triunfe em tudo isso.
Capítulo
49.
15. Ainda
resta, segundo a opinião dos hereges, um importante atestado de fraqueza,
principalmente por ter sido apresentado pela voz do Senhor, que clamou: Meu
Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mt 27,46).
16. Esta
queixa se apresenta como o maior motivo de dúvida: queixar-se de ser abandonado
e sujeito à debilidade.
17. Esta
é uma presunção forçada da inteligência ímpia, que se opõe a todas as palavras
do Senhor, como se Aquele que se apressava para a morte, pela qual seria
glorificado e que, depois, se assentaria à direita do poder, tivesse medo de
morrer e, com tantos motivos de felicidade, pudesse queixar-se de ser
abandonado por Deus à necessidade de morrer, quando, passando pela morte, iria
permanecer nestas alegrias!
Capítulo
50.
18. Os
artifícios heréticos avançam por este caminho como se tivesse sido preparado
para sua impiedade. Afirmam que o Deus Verbo deixou de existir totalmente na
alma de seu corpo e, por isso, o Filho do Homem e o Filho de Deus não são o
mesmo Jesus Cristo, ou o Deus Verbo deixou de ser Ele mesmo quando vivificou o
corpo, com sua função de alma, ou que o Cristo, absolutamente, não nasceu como
Homem, porque nele o Verbo de Deus habitou como espírito profético.
19. Mas
o erro dessa ridícula perversidade ainda vai além. Com maior e mais audaciosa
impiedade afirmam que Jesus Cristo, antes de haver nascido de Maria, não era
Cristo, de tal modo que Aquele que nasceu não existia antes, mas só começou a
existir quando nasceu da Virgem.
20. Por
isso também se acrescenta outro absurdo: que Deus Verbo, como certa parte do
poder de Deus, estendendo-se em certa continuidade, habitou naquele Homem que
começou a existir por Maria e recebeu os poderes próprios da divina operação,
mas vive pelo movimento e natureza de sua alma.
Capítulo
51.
21. Por
esta sutil e pestífera doutrina são levados ao erro de afirmar que, ou o Deus
Verbo se converteu em alma do corpo, por uma alteração da natureza, tornando-se
fraco, e o Verbo, deixou de ser Deus, ou que o Homem foi animado somente pela
vida da alma que o move e que o Verbo de Deus habitou nele como o poder da
palavra que se propaga.
22. Assim
se dá lugar a toda espécie de interpretações ímpias, de modo que, ou o Deus
Verbo se converteu em alma e deixou de ser Deus Verbo, ou então Cristo
absolutamente não existiu antes do parto de Maria, porque, sendo apenas um
homem como os outros, teria somente a alma e o corpo comuns aos homens, tendo
começado a existir somente quando começou a ser Homem e um poder extrínseco da
palavra estendida até Ele lhe deu força para agir.
23. Ao
ser abandonado pelo Verbo de Deus, porque o prolongamento desta força estendida
até Ele se retirou, clamou: Meu Deus, meu Deus, por que me
abandonaste? – ou então, Aquele que tivera mudada a
natureza do Deus Verbo, para ser a alma do corpo, e tivera em tudo o auxílio
paterno, desamparado e à mercê da morte, queixou-se de sua solidão e o censurou
por ter sido abandonado.
24. Tudo
isso oferece um perigo mortal para a fé, iludida, quando se julga haver no Deus
Verbo a fraqueza da natureza por causa da sua queixa, ou quando se diz que, de
modo nenhum, se trata do Deus Verbo, já que o Cristo Jesus deve seu início
unicamente ao parto de Maria.
Capítulo
52.
25. Entre
estas sentenças ímpias e inconsistentes, a fé da Igreja, imbuída das doutrinas
dos Apóstolos, afirma o nascimento de Cristo, mas desconhece seu início.
26. Conhece
a economia da Encarnação, mas desconhece a divisão.
27. Não
suporta que haja em Cristo Jesus uma divisão, de tal modo que Jesus não seja o
Cristo, nem separa o Filho do Homem do Filho de Deus, de modo a se entender que
o Filho de Deus não seja Filho do Homem.
28. Não
permite que o Filho de Deus seja absorvido pelo Filho do Homem, nem divide em
três partes a Cristo, cuja túnica inconsútil não foi cortada (cf. Jo 19,23).
29. Em
Jesus Cristo não separa o Verbo, a alma e o corpo. Nem dilui o Deus Verbo em
alma e corpo. Para a fé, Ele é inteiramente Deus e Verbo e inteiramente o Homem
Cristo. Mantém esta unidade no mistério que professa, sem crer que Cristo seja
diferente de Jesus, e sem anunciar outro Jesus além de Cristo.
Capítulo
53.
30. Não
ignoro quanto a magnificência do mistério celeste representa um impedimento à
debilidade da inteligência humana, de tal modo que não é fácil dizer com
palavras, discernir com a razão, ou abarcar com a mente tais realidades.
31. O
Apóstolo sabia quão árduo e difícil é para nosso juízo entender o modo de agir
divino. Se assim não fosse, nosso modo de julgar seria mais arguto para
entender a Deus do que Deus é poderoso para agir.
32. Por
isso, àquele seu filho legítimo segundo a fé, que, desde a infância, conhece as
Sagradas Escrituras, assim escreve: Se eu te recomendei permanecer
em Éfeso, quando estava de viagem para a Macedônia, foi para admoestares alguns
a não ensinarem outra doutrina, nem se ocuparem com fábulas e genealogias sem
fim, as quais favorecem mais as discussões do que a edificação de Deus que se
realiza na fé (1Tm 1,3-4).
33. Proíbe
tratar de questões de genealogias e tocar em fábulas que provocam disputas
intermináveis. Mas ensina que aquilo que serve à edificação de Deus se realiza
na fé, para que o modo de exercer a reverência humana se limite a adorar, com
fé, a onipotência de Deus, sem que se estenda nossa fraqueza até perscrutar
aquilo que embota a natureza do que perscruta.
34. Porque,
se a claridade do sol ofusca, nos que a contemplam, a capacidade de ver a luz e
quando, com intensa curiosidade, se procura contemplar a luz irradiante, fica
amortecido o sentido da visão e acontece que, quanto mais te esforças por ver,
menos vês, que se poderá esperar, então, em relação às coisas de Deus e ao sol
de justiça?
35. Não
correm perigo de se tornar estultos aqueles que desejam saber mais do que
podem? A aguda luz da inteligência não será vencida pelo estupor da insipiência
embrutecida?
36. A
natureza inferior não compreende a razão de ser da natureza superior, nem está
ao alcance do pensamento humano o desígnio celeste, pois é limitado pela
fraqueza tudo aquilo que pode ser conhecido por quem é fraco.
37. O
poder de Deus ultrapassa a capacidade da mente humana. Se a fraqueza pretender
elevar-se até Ele, mais fraca se tornará, já que perde mesmo o poder que tem e
que a natureza mais forte das coisas celestes é capaz de debilitar, porque toda
a teimosia em querer alcançá-la é vencida pela sua imensidão.
38. Se
o sol deve ser visto à medida que nos é possível suportá-lo, se devemos receber
sua luz na medida justa para que não aconteça que, desejando contemplar mais,
menos o consigamos, do mesmo modo as coisas celestes só poderão ser entendidas
à medida que elas o permitirem.
39. Só
devemos esperar compreendê-las enquanto consentem em ser apreendidas, porque,
se não nos contentarmos com a moderação exigida, perderemos o que foi concedido
por indulgência.
40. Há
em Deus algo que podes perceber, se quiseres conhecer apenas o que estiver a
teu alcance. Assim como podes ver alguma coisa do sol, se queres ver o que
podes e perderás o que não podes ver, se te esforças por ver o que não podes,
do mesmo modo, nas coisas de Deus, há algo que podes entender, se quiseres
entender o que podes. Porém, se esperas além do que podes, não poderás nem
mesmo aquilo que poderias.
Capítulo
54.
41. Ainda
não me referirei ao mistério de seu nascimento fora do tempo. No devido lugar
tratarei dele. No momento falarei sobre o mistério da assunção da carne.
42. Consulto
agora aqueles perscrutadores dos arcanos celestes para que expliquem o mistério
do Cristo nascido da Virgem, segundo sua natureza.
43. Donde
dizem provir a concepção da Virgem? Donde o parto da Virgem? Qual é a origem de
sua fecundidade e o que foi que se formou no íntimo do seio materno? Donde vem
o corpo? E o Homem? Depois disto tudo, que significa que o Filho do Homem tenha
descido do céu permanecendo no céu? Pois não é a mesma coisa, de acordo com a
natureza dos corpos, descer e permanecer.
44. Uma
coisa é a mudança que supõe a partida, outra coisa é permanecer imperturbável.
45. Chora
a criancinha, mas está no céu, o menino cresce, mas permanece o Deus da
plenitude. Subir para onde estava antes, e descer o que permanece, que sentido
tem isso para a capacidade da inteligência humana?
46. Pois
diz o Senhor: E se vísseis o Filho do Homem
subir para onde estava antes? (Jo 6,63). O Filho do Homem sobe para
onde estava antes. Que lógica pode entender? Desce do céu o Filho do Homem que
está no céu. Que razão o explicará? O Verbo se fez carne. Que
palavras o expressarão? O Verbo se faz carne, isto é, Deus se faz Homem.
47. Quem
é Homem, está no céu, quem é Deus vem do céu. Sobe o que desce, mas desce sem
descer. É o que era, mas não era o que é. Percorremos as causas, e a razão nos
escapa; vemos a razão e não entendemos a causa. Entendendo assim a Cristo
Jesus, nós o conheceremos, porém, julgando compreender mais, ficaremos na
ignorância.
Capítulo
55.
48. Como
é grande, nas palavras e nos fatos, aquele mistério do pranto de Cristo, e das
lágrimas que lhe correm dos olhos por causa da angústia da alma! (Cf. Lc 19,4.)
49. De
onde provém esta falha de sua alma, para que a dor da tristeza arranque
lágrimas do corpo? Que amargura e dor intoleráveis fazem o Filho do Homem, que
desceu do céu, se desfazer em lágrimas? Que foi então o que nele chorou? O Deus
Verbo ou a alma de seu corpo?
50. Pois,
embora as lágrimas pertençam ao corpo, é a angústia da alma que faz brotar o seu
pranto por intermédio do corpo.
51. Qual
foi a causa do seu pranto? A ímpia e parricida Jerusalém, que não iria sofrer
pelo assassínio de tão grandes Profetas e Apóstolos e a morte do próprio
Senhor, teria merecido dele a honra das lágrimas?
52. Acaso
se condói com a queda desta perdida e desesperada gente, como se lamentam as
calamidades que causam as mortes humanas? Qual é, pergunto eu, o mistério
destas lágrimas?
53. A
alma, que está triste, chora. Mas acaso não foi ela que enviou os profetas? Não
foi ela que desejou tantas vezes reunir seus pintainhos à sombra de suas asas
(cf. Mt 23,27)?
54. Não
pertence ao Deus Verbo entristecer-se, nem as lágrimas pertencem ao Espírito.
Mas também não é próprio da alma fazer algo antes do corpo. E, contudo, Jesus
Cristo realmente chorou, sem dúvida alguma.
1. O que você destaca na fala do seu irmão/ã?
2. O que você destaca no texto?
3. Como ele é útil para sua espiritualidade?
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