domingo, 24 de setembro de 2023

239 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo (Capítulos 25 - 36).

 

239

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo (Capítulos 25 - 36)

07 de outubro de 2023


 


O livro X apresenta uma interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.

 

Capítulo 25.

1.      Teve, pois, um corpo, mas, de acordo com sua origem. Não existindo a partir dos defeitos próprios da concepção humana, subsistia na forma de nosso corpo, em virtude de seu poder, sendo igual a nós pela forma de servo; mas livre dos pecados e dos vícios do corpo humano, quis que estivéssemos nele pela geração da Virgem, mas não quis que nossos vícios, pelo poder de sua origem, estivessem nele.

2.      Nascido como Homem, não nasceu com os vícios da concepção humana.

3.      O Apóstolo faz questão de demonstrar o mistério desta natividade, quando diz: Mas humilhou-se, assumindo a forma de servo, constituído à semelhança do Homem e reconhecido como Homem (Fl 2,7).

4.      Ao dizer que tomou a forma de servo, temos de entender que nasceu na forma de Homem e, visto que se fez semelhante ao Homem e foi reconhecido como Homem, o aspecto e a realidade do corpo atestam a sua humanidade.

5.      Porém, Aquele que foi reconhecido como Homem não conhece os vícios que se encontram no Homem, pois seu nascimento se deu à semelhança da natureza, mas sem os defeitos que lhe são próprios.

6.      Por isso acrescentou o Apóstolo: constituído à semelhança do homem e reconhecido como homem, para que não fôssemos levados a pensar que a realidade do nascimento incluía a possessão da natureza enfraquecida pelo vício, já que se indicava a verdadeira natividade com as palavras a forma de servo, e com as palavras reconhecido como Homem, se indicava a semelhança de natureza, tendo Ele, por si mesmo, nascido Homem por meio da Virgem e sendo reconhecido na semelhança da carne viciosa do pecado.

7.      O mesmo Apóstolo, escrevendo aos Romanos, atesta-o ao dizer: De fato coisa impossível à Lei porque enfraquecida pela carne – Deus, enviando o seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, condenou o pecado na carne (Rm 8,3).

8.      Não foi aquela condição unicamente de Homem, mas como de Homem e esta carne não era de pecado, mas semelhante à carne de pecado.

9.      A condição da carne existe pela realidade do nascimento, já que é semelhante à carne de pecado, mas está isento dos vícios da paixão humana.

10.  Assim, o Homem Cristo Jesus também teve um verdadeiro nascimento porque é Homem e não tem pecado porque é Cristo.

11.  Quem é homem não pode deixar de ser homem, porque nasceu. Quem é Cristo, não pode perder a sua condição de Cristo. Assim, já que Cristo Jesus é Homem, tem também o nascimento de homem, porque é Homem, mas não tem a fraqueza humana dos vícios, porque é Cristo.

12.  Cristo foi constituído à semelhança do homem e reconhecido como homem. Foi enviado na semelhança da carne de pecado, sendo reconhecido como homem e está na forma de servo, porém não tem os vícios da natureza.

13.  Por existir à semelhança da carne de pecado, o Verbo certamente é carne, porém sua própria carne não é pecado.

14.  Como Jesus Cristo é Homem (1Tm 2,5), é na verdade Homem, mas o Homem não podia ser diferente do que é Cristo. Pelo nascimento corporal, nasceu como Homem, sem ter os vícios do Homem, que não estão na sua origem.

15.  O Verbo feito carne não poderia deixar de ser carne porque se fez carne, e o Verbo, mesmo que se tenha feito carne, não deixou de ser o Verbo.

16.  E já que o Verbo feito carne não pode deixar de ter a natureza de sua origem, não poderia deixar de permanecer na natureza de sua origem, porque é o Verbo.

17.  Não se pode pensar que o Verbo não seja verdadeiramente carne, porque se fez carne. Contudo, porque habitou entre nós, esta carne não deixa de ser o Verbo, mas é a carne do Verbo que habita na carne.

18.  Sendo assim, vejamos se, consumada a paixão, nos é permitido pensar que existiu no Senhor a fraqueza das dores corporais. Afastadas, por enquanto, aquelas palavras às quais a heresia atribui o medo ao Senhor, confiramos os próprios acontecimentos. Pois não pode acontecer que o temor seja indicado pelas palavras de quem fundamenta sua confiança nos fatos.

 

Capítulo 26.

19.  A fé apostólica nos instrui para a compreensão deste mistério, demonstrando que o Homem Jesus Cristo foi constituído à semelhança do homem e reconhecido como homem.

20.  Foi enviado na semelhança da carne de pecado, sendo reconhecido como homem, e está na forma de servo, porém não tem os vícios da natureza. Por existir à semelhança da carne do pecado, o Verbo certamente é carne, porém sua própria carne não é pecado.

21.  Como Jesus Cristo é Homem (1Tm 2,5), é na verdade Homem, mas o Homem não podia ser diferente do que é Cristo. Pelo nascimento corporal, nasceu como Homem, que estão na sua origem. O Verbo feito carne não poderia deixar de ser carne porque se fez carne, e o Verbo, mesmo que se tenha feito carne, não deixou de ser o Verbo.

22.  E já que o Verbo feito carne não pode deixar de ter a sua natureza de sua origem, não poderia deixar de permanecer na natureza de sua origem, porque é o Verbo.

23.  Não se pode pensar que o Verbo não seja verdadeiramente carne, porque se fez carne. Contudo, porque habitou entre nós, esta carne não deixa de ser o Verbo, mas é a carne no Verbo que habita na carne; sendo assim, vejamos se, consumada a paixão, nos é permitido pensar que existiu no Senhor a fraqueza das dores corporais.

24.  Afastadas, por enquanto, aquelas palavras às quais a heresia atribui o medo ao Senhor, confirmamos os próprios sentimentos, pois não pode acontecer que o temor seja indicado pelas palavras de quem fundamenta sua confiança nos fatos.

 

Capítulo 27.

25.  A ti parece, ó herege, que tivesse medo da paixão o Senhor da glória? Mas, se pelo erro desta ignorância, Pedro é Satanás e escândalo (cf. Mt 16,23), por amor a Cristo, que não lhe fora revelado nem pela carne nem pelo sangue, mas pelo Pai que está nos céus, Pedro teve horror ao mistério da paixão e, por esta sentença severa, foi confirmado na fé.

26.  Quanto a ti, por que te separarias da esperança, negando Cristo Deus e acrescentando ainda que teve medo da paixão? Acaso teve medo dos que vieram armados para prendê-lo, quando foi ao seu encontro? (Cf. Jo 18,6.) Havia em seu corpo tal fraqueza, que os bandos de perseguidores caíram, e, sem suportar a majestade daquele que iam prender, recuaram? Que fraqueza crês existir no corpo, que tem por natureza o poder?

 

Capítulo 28.

27.  Talvez tenha temido a dor das feridas, mas pergunto se teve horror dos pregos que penetravam na carne, quem, só ao tocar, restituiu a carne da orelha cortada (cf. Lc 22,31).

28.  Mostra-nos tu, que afirmas a fraqueza do Senhor, como, justamente no tempo da paixão, o poder da carne o enfraqueceu. Pois, tendo Pedro desembainhando a espada, ficou o servo do sacerdote sem a orelha. Como, ao tocar na ferida causada pelo corte da orelha, Cristo curou sua carne? Donde, em meio ao sangue que escorre do lugar cortado pela espada afiada, enquanto o corpo sofre, mutilado, aparece o que não existia, surge o que não estava ali, volta ao seu lugar o que faltava?

29.  Então, esta mão que reconstitui a orelha, sofrerá com o cravo? Sentirá em si mesmo a ferida, quem não permitiu que outro sofresse com a dor da ferida? Fica triste pelo medo de que sua carne seja machucada, Aquele para quem foi fácil reconstituir a carne amputada só ao tocá-la?

30.  Se este poder existia no corpo de Cristo, em nome de que fé, indago, se afirma que tenha sido fraco por natureza Aquele para quem foi natural inibir a natureza de todas as enfermidades humanas?

 

Capítulo 29.

31.  Mas talvez, com estulta e ímpia perversidade, alguém afirme haver nele uma natureza fraca, porque sua alma estava triste até a morte (Mt 26,38). Não te censuro ainda, ó herege, por não entenderes a força da palavra. Antes indago por que não te lembras de ter Ele dito quando Judas saía para a traição: Agora é glorificado o Filho do Homem (Jo 13,31). Pois, se a paixão o iria glorificar, como o medo da paixão o tornaria triste? A não ser, talvez, que fosse tão insensato a ponto de temer aquilo que, ao fazê-lo sofrer, iria glorificá-lo.

 

Capítulo 30.

32.  Mas talvez se julgue ter ele temido a ponto de rogar para que o cálice fosse afastado, ao dizer: Abba, Pai, a ti tudo é possível: afasta de mim este cálice (Mc 14,36). Para que eu não te acuse por outras coisas, pergunto se não serás acusado pela própria tolice de tua impiedade, porque leste: Guarda tua espada na bainha; deixarei eu de beber o cálice, que o Pai me deu? (Jo 18,11.)

33.  Como, pelo medo de sofrer, iria pedir que se afastasse dele o que, pelo desejo de cumprir o desígnio da salvação, deveria realizar com entusiasmo? Não é coerente que não quisesse padecer, quem queria padecer. E se sabias que Ele queria padecer, seria mais piedoso confessar que não entendes a palavra, do que atrever-te, com furor de ímpia estultice, a afirmar que pedia para não padecer Aquele que sabes que queria padecer.

 

Capítulo 31.

34.  Creio que te armarás para a luta de tua impiedade também com o dito do Senhor: Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste? (Mc 15,34). Depois da ignomínia da cruz, talvez julgues ter-se afastado dele o favor do auxílio paterno, e brotando daí a queixa pelo seu abandono na desolada fraqueza.

35.  Se, em teu parecer, o abandono e a fraqueza da Cruz são ignomínia, seria preciso que não te lembrasses dessas palavras: Eu vos digo que de ora em diante vereis o Filho do Homem sentado à direita do Poder e vindo sobre as nuvens do céu (Mt 26,64).

 

Capítulo 32.

36.  Onde, pergunto, o temor da paixão? Onde a fraqueza? Onde a dor? Onde a ignomínia? Dizem os ímpios que ele teme, mas Ele mesmo declara querer padecer. É acusado de fraco? Ele se mostra poderoso, quando vai ao encontro dos perseguidores que, aterrorizados, não podem resistir-lhe. É acusado de sofrer com chagas da carne? Quando reconstituiu a carne da orelha ferida, mostrou que, sendo Ele mesmo carne, está fora da natureza carnal que sofre com as chagas, porque, quando toca com sua mão a orelha cortada, esta mão pertence ao corpo e se a mão reconstitui a orelha no lugar da chaga, isto significa que esta mão não pertence a um corpo fraco.

 

Capítulo 33.

37.  Dizem, porém, que a cruz lhe foi ultrajante. No entanto, por ela, deve-se ver o Filho do Homem assentar-se à direita do Poder, e depois de ter nascido como Homem pelo parto da Virgem, voltar em majestade sobre as nuvens do céu.

38.  Não percebes, com teu modo de pensar irreligioso, as causas do que é natural. Com o espírito cheio de impiedade e de erro, não entendes o mistério da fé, e te afastas, pela estupidez herética, do próprio senso comum do mundo.

39.  Pois tudo o que é de temer deve ser evitado enquanto se teme. O fraco teme por causa de sua fraqueza, e o que sofre a dor tem em si uma natureza invariavelmente sujeita a dor. Tudo o que é ultrajante é sempre desonroso. Tu, porém, por meio de que raciocínios pensas poder entender que Nosso Senhor Jesus Cristo se apressa para o que teme e que, por fraqueza, treme com aquilo que faz tremer os fortes?

40.  O que não permite sofrer com as chagas, sofre ao ser ferido? Pode ser desonrado pela contumélia da cruz, Aquele para quem a cruz significa que estará sentado junto de Deus, e que voltará ao reino?

 

Capítulo 34.

41.  Talvez penses que te foi oferecida uma ocasião para a impiedade e que temeu a descida aos infernos e a própria necessidade de morrer, o que parece ser atestado pela palavra: Pai, em tuas mãos entrego meu espírito (Lc 23,46).

42.  Lendo isto sem compreender, ou bem, respeitosamente, o passarias em silêncio, ou bem terias de entendê-lo de acordo com a fé, para que não te transviasses ainda mais com afirmações atrevidas, sendo incapaz da verdade, por causa do teu ímpio furor.

43.  Segundo o teu modo de pensar, acaso se deve crer que temia o inferno, o caos, as chamas tórridas, o abismo e toda a espécie de castigos vingadores, quem disse ao ladrão na cruz: Em verdade, eu te digo, hoje estarás comigo no paraíso (Lc 23,42)?

44.  Não poderás submeter o poder desta natureza, já não ao medo, mas até mesmo aos limites das regiões infernais, pois, se Ele desceu aos infernos, não deixou o paraíso (assim como o Filho do Homem, falando na terra, permanece também no céu) e prometeu a seu Mártir o paraíso, oferecendo-lhe as delícias da perfeita beatitude.

45.  Não é possuído pelo medo corporal quem penetra nos infernos e em toda a parte se faz presente pelo poder de sua natureza. O caos não pode exigir para si, pelo terror da morte da geena, esta natureza, senhora do mundo, e imensa na liberdade do poder espiritual, que não pode carecer das delícias do paraíso, pois o Senhor estará nos infernos, mas também estará no paraíso.

46.  Reserva para o medo do sofrimento uma porção da natureza indivisível, para que possa temer a dor e põe nos infernos esta parte de Cristo que deve sentir dor e, no paraíso, deixa a que deve reinar.

47.  O ladrão pede que se lembre dele em seu reino. Creio que foi movido a fazer esta sincera confissão de fé, ao ouvir o gemido, quando o cravo atravessava a palma da mão e que, pela dor do corpo enfraquecido de Cristo, aprendeu o que seja o reino de Cristo.

48.  Aquele pede para ser lembrado no seu reino, tu o entregas ao medo da morte na cruz. O Senhor promete-lhe participar em breve da comunhão no paraíso, tu encerras a Cristo nos infernos, sob o terror do castigo.

49.  Tua fé e a dele significam esperanças diferentes. Na cruz, o ladrão mereceu o paraíso, confessando estar no reino o Cristo ainda pendente da cruz. Tu, que, ao contrário, entregas o Cristo à dor do castigo e ao medo da morte, é forçoso que sejas privado do paraíso e do reino.

 

Capítulo 35.

50.  Examinando, em seu conjunto, o valor dos seus ditos e gestos, não temos dificuldade em demonstrar que a natureza de seu corpo não possui a fraqueza da natureza corpórea, porque, em virtude desta sua natureza, podia eliminar toda fraqueza dos corpos.

51.  Sua paixão, embora se tenha dado no corpo, não acarretou ao corpo uma natureza que sofre. Mesmo estando o Senhor na forma de nosso corpo, não se tratava, no entanto, do corpo de nossa natureza viciada, já que não teve a mesma origem, porque, tendo sido concebido pelo poder do Espírito Santo, a Virgem o deu à luz.

52.  Mesmo tendo-o gerado de acordo com a função própria do seu sexo, não recebeu os elementos da concepção terrena. Gerou de si mesma o corpo que fora concebido por obra do Espírito e que tinha em si, certamente, a realidade do corpo humano, mas sem fraqueza da sua natureza.

53.  O seu corpo é na verdade um corpo porque foi gerado pela Virgem, mas não tem a fraqueza do nosso corpo, porque deve seu princípio à concepção espiritual.

 

Capítulo 36.

54.  Os hereges parecem apoiar-se, para lutar contra a fé apostólica, neste dito: Minha alma está triste até a morte (Mt 26,38). A afirmação está triste atesta, segundo eles, a fraqueza da natureza, pois, ao tomar consciência da morte começou a estar triste.

55.  Em primeiro lugar, interrogo o bom senso da inteligência humana sobre o que seja estar triste até a morte. Não significa o mesmo estar triste por causa da morte e estar triste até a morte. Quando a tristeza é causada pela morte, a própria morte é o motivo da tristeza, mas onde há tristeza até a morte, a morte já não é o motivo da tristeza, mas o seu fim.

56.  Deve-se, portanto, perguntar de onde vem a tristeza ao que está triste, não por causa da morte, mas até a morte, pois está triste, não por um tempo incerto e indefinido para a humana ignorância, mas até a morte.

57.  Portanto, a tristeza não é sentida por causa da morte, já que deve ter o seu fim com a morte.

 

 

 

1.      O que você destaca na fala do seu irmão/ã?

2.      O que você destaca no texto?

3.      Como ele é útil para sua espiritualidade?

 

 

 

 

domingo, 3 de setembro de 2023

238 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo (Capítulos 13 - 24).

 


238

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo (Capítulos 13 - 24)

23 de setembro de 2023

 


O livro X apresenta uma interpretação original do problema do sofrimento de Cristo e da morte de Jesus por nós. São 71 capítulos.

 

Capítulo 13.

1.      Mas talvez temesse o suplício do corpo suspenso na cruz, os fortes laços das cordas que o amarram e os pés feridos pelos cravos. Vejamos, então, como é este corpo do Cristo Homem, para poder falar da dor de sua carne suspensa, presa e trespassada.

 

Capítulo 14.

2.      A natureza dos corpos consiste em que, pela união com a alma, são vivificados e adquirem a capacidade de sentir, dada pela alma que sente, para que não sejam matéria inerte e inane. Esta natureza, quando é tocada, sente; machucada, experimenta a dor, enrijece com o frio; aquecida, sente prazer, desfalece de fome e engorda com o alimento.

3.      Por certa penetração da alma que a possui e invade, segundo as circunstâncias, sentirá deleite ou ofensa. Por isto os corpos feridos ou traspassados sentem dor: o sentido de dor passa para a alma que o recebe. Enfim, a ferida do corpo dói até certo ponto: os pedacinhos das unhas cortadas da carne não causam sofrimento. E se acontecer que, por doença, uma parte de um membro se corrompa, perderá a sensibilidade da carne viva.

4.      Cortada ou queimada, seja qual seja a dor que isso possa causar, não tendo nela a presença da alma, a carne nada sentirá.

5.      Quando há grave necessidade de se cortar o corpo, uma bebida medicinal adormece o vigor da alma, e com os sentidos amortecidos, a mente, dominada por remédios fortes, se esquece de si mesma e os membros são cortados sem que sintam dor.

6.      Amortecida a sensibilidade da carne, uma ferida profunda não provoca dor, porque a sensibilidade da alma se encontra entorpecida. Portanto, o corpo enfermo sente dor por causa da sua união com a alma enferma.

 

Capítulo 15.

7.      Se, portanto, o Homem Jesus Cristo viveu no corpo, e começou a existir com nosso corpo e nossa alma, mas não de tal maneira que Deus fosse o princípio imediato de seu corpo e de sua alma, se foi encontrado em figura de homem, nascido como homem, sentiu a dor de nosso corpo, já que seu corpo teve um começo e uma concepção que foram os mesmos de nossa alma e de nosso corpo.

8.      Mas, se Ele mesmo tomou para si a carne da Virgem e, por si, uniu a alma ao corpo concebido, era forçoso que a natureza do seu sofrimento estivesse de acordo com a natureza de seu corpo e de sua alma.

9.      Esvaziando-se da forma de Deus e assumindo a forma de servo, e nascendo o Filho de Deus como Filho do Homem, sem se desfazer de seu ser nem de seu poder, o Deus Verbo se fez perfeito Homem vivo.

10.  Porém, de que modo poderia o Filho de Deus nascer como Filho do Homem ou como assumiria a forma de servo permanecendo na forma de Deus (pois é poderoso o Verbo e Deus para assumir a carne no seio da Virgem e dar alma à carne) se o Homem Jesus não tivesse nascido como Homem perfeito para a redenção de nossa alma e de nosso corpo, e não tivesse assumido o corpo para que, ao ser concebido pela Virgem, este corpo o fizesse existir na forma de servo?

11.  A Virgem gerou a quem gerou somente pelo Espírito Santo. Embora ela houvesse dado de si mesma, para o nascimento na carne, tudo aquilo com que as mulheres contribuem para o nascimento dos corpos, Jesus Cristo não se formou conforme a maneira de uma concepção humana natural.

12.  Como toda a causa de seu nascimento provém do Espírito, conservou em sua natividade como Homem o que é próprio da mãe, tendo, em virtude da origem, o seu ser divino.

 

Capítulo 16.

13.  O próprio Senhor mostrou este grande e belíssimo mistério da assunção do Homem ao dizer: Ninguém subiu ao céu, a não ser aquele que desceu do céu, o Filho do Homem que está no céu (Jo 3,13).

14.  As palavras “desceu do céu” indicam a sua concepção do Espírito. Pois não foi Maria que deu origem ao corpo, embora tenha contribuído para o crescimento e parto do corpo com tudo o que é natural a seu sexo.

15.  As palavras Filho do Homem indicam o nascimento da carne concebida no seio da Virgem. Está nos céus significa o poder da natureza que existe sempre, pois esta, que deu início e criou a carne, não se encerrou dentro do espaço do corpo limitado, afastando-se do poder de sua infinidade.

16.  Pela força do Espírito e poder do Verbo de Deus, permanecendo na forma de servo, o Senhor do céu e do mundo não se afastou de nenhuma das esferas de dentro e de fora do céu e do mundo. Por isso também desceu do céu, porque, feito carne, não deixou de ser o Verbo. Por ser o Verbo está no céu, por ser carne é o Filho do Homem. Porque o Verbo se fez carne (Jo 1,14), vem do céu, é Filho do Homem e está no céu, pois o poder do Verbo não existe à maneira dos corpos e não se afastou de onde descera e a carne não recebeu a sua origem a não ser do Verbo, e o Verbo feito carne, sendo carne, não deixou de ser o Verbo.

 

Capítulo 17.

17.  O bem-aventurado Apóstolo falou claramente do mistério desta natividade corporal inefável, dizendo: O primeiro homem, tirado da terra, é terrestre. O segundo Homem vem do céu (1Cor 15,47). Ao falar do Homem, ensinou o nascimento da Virgem, que no exercício de sua função materna realizou, na concepção e no parto do Homem, aquilo que pertence à natureza do seu sexo.

18.  Quando diz que o segundo Homem vem do céu, atesta que sua origem se deve à vinda do Espírito Santo que desceu sobre a Virgem. Como é o Homem que veio do céu, nasceu da Virgem e foi concebido por obra do Espírito. É o que diz o Apóstolo.

Capítulo 18.

19.  O próprio Senhor revelou o mistério desta natividade quando disse: Eu sou o pão vivo que desci do céu; se alguém comer deste pão, viverá eternamente (Jo 6,51-52), chamando-se a si mesmo de pão porque é Ele mesmo a origem de seu corpo.

20.  E para que não se pense que deixou o poder e a natureza do Verbo ao assumir a carne, fala de novo do seu pão. Quer dizer com isto que é pão descido do céu e que sua origem não é a concepção humana, como se poderia pensar, pois mostra ser celeste este corpo.

21.  Quando diz que é seu pão, declara que o corpo foi assumido pelo Verbo. Por isso acrescenta: Se não comerdes da carne do Filho do Homem, e beberdes de seu sangue, não tereis a vida em vós (Jo 6,54); o mesmo que é Filho do Homem desceu do céu como pão. Assim, quando se diz que seu pão desceu do céu e que a carne e o sangue são do Filho do Homem, se entende que assumiu a carne que foi concebida por obra do Espírito Santo e nasceu da Virgem.

 

Capítulo 19.

22.  Portanto, o Homem que possui este corpo, Jesus Cristo, é Filho de Deus e Filho do Homem. Esvaziando-se da forma de Deus, tomou a forma de servo. O Filho do Homem não é diferente do Filho de Deus, nem é um o que existe na forma de Deus e outro o que, como Homem perfeito, nasceu na forma de servo.

23.  Assim como, pela natureza criada por Deus, que é origem do nosso ser, nasce o homem composto de corpo e alma, também Jesus Cristo, por seu poder, é homem composto de carne e alma e é Deus. Tem em si a humanidade total e verdadeira e a total e verdadeira divindade.

 

Capítulo 20.

24.  Muitos, para confirmarem as heresias por meio de artifícios, costumam enganar os ouvidos dos ignorantes, dizendo que, se o corpo e a alma de Adão estavam em pecado e o Senhor recebeu da Virgem a carne e a alma de Adão, a Virgem não concebeu do Espírito Santo o Homem todo. Mas, se entendessem o mistério da assunção da carne, entenderiam também o mistério pelo qual o Filho do Homem é também Filho de Deus.

25.  Como se da Virgem recebesse também a alma, quando toda a alma é obra de Deus e a geração da carne vem sempre da carne.

 

Capítulo 21.

26.  Querem que o Deus Unigênito, o Deus Verbo, que no princípio estava junto de Deus, não seja Deus com uma subsistência pessoal, mas a palavra emitida pela voz, de modo que, assim como a palavra dos que falam é sua palavra, assim seria o Filho para Deus Pai.

27.  Com sutileza, querem insinuar que o Cristo, nascido como Homem, não é o Deus Verbo que subsiste pessoalmente e permanece na forma de Deus.

28.  Como o homem teve uma origem humana, em vez de ser animado pelo mistério de uma concepção espiritual, o Deus Verbo não teve uma existência própria, ao fazer-se o Homem pelo parto da Virgem, mas, assim como nos profetas está o Espírito da profecia, também em Jesus estaria o Verbo de Deus. Costumam acusar-nos de dizer que Cristo nasceu como homem, com nosso corpo e alma.

29.  Na realidade nós pregamos o Verbo feito carne, Cristo que se despojou da forma de Deus e assumiu a forma de servo, perfeito de acordo com a conformação humana, nascido Homem à nossa semelhança, de modo que, sendo verdadeiramente Filho de Deus, seja verdadeiro Filho do Homem. Nasceu como Homem que vem de Deus, e não deixou de ser Deus por ser Homem nascido de Deus.

 

Capítulo 22.

30.  Como por si assumiu para si, da Virgem, o corpo, assim também assumiu, de si e para si, a alma, que nunca é dada pelos homens àqueles que geram. Se a Virgem não concebeu a carne a não ser por obra de Deus, com muito mais razão a alma deste corpo só pode vir de Deus e não de outra parte.

31.  O Filho do Homem é também o Filho de Deus. Já que o Filho do Homem é inteiramente Filho de Deus, como seria ridículo pregarmos um outro qualquer como profeta animado pelo Verbo de Deus, além do Filho de Deus, que é o Verbo feito carne quando o Senhor Jesus é Filho do Homem e Filho de Deus!

32.  Porque diz que sua alma está triste até a morte e tem o poder de entregar sua vida e retomá-la, querem os hereges que sua alma proceda de um princípio exterior, e não do Espírito Santo, do qual o corpo foi concebido, quando o Deus Verbo, permanecendo no mistério de sua natureza, nasceu como Homem.

33.  Não nasceu para ser duas pessoas distintas, mas para que se possa entender que, como antes de ser Homem era Deus, ao assumir a humanidade era Deus e Homem. Pois, de que modo Jesus Cristo, Filho de Deus, nasceu de Maria, a não ser porque o Verbo se fez carne (Jo 1,14), isto é, o Filho de Deus, existindo na forma de Deus, assumiu a forma de servo?

34.  Que Aquele que existia na forma de Deus tenha assumido a forma de servo, mostra que se unem as naturezas contrárias, de forma que é tão verdadeiro que permaneça na forma de Deus quanto é verdadeiro que tenha assumido a forma de servo. Pela significação da palavra usada nos dois casos, deve-se entender a realidade das naturezas.

35.  Pois está na forma de servo Aquele que também está na forma de Deus. Isto lhe pertence por natureza, o que é consequência da economia. Ele é uma e outra coisa, de maneira igualmente real.

36.  Está na forma de Deus de modo tão verdadeiro, como está na forma de servo. Que tenha assumido verdadeiramente a forma de servo não é diferente de ter nascido Homem; assim também existir na forma de Deus não é diferente de ser Deus.

37.  Professamos que é um e o mesmo, não por ter deixado de ser Deus, mas pela assunção do Homem. Confessamos também que foi encontrado na forma de Deus por sua natureza divina, e, na forma de servo, pela concepção por obra do Espírito Santo.

38.  Portanto, Jesus Cristo, assim como nasceu, padeceu, morreu e foi sepultado, também ressuscitou. Não pode, nesta diversidade de mistérios, ser dividido em si mesmo, a ponto de não ser Cristo, pois não há outro Cristo, a não ser o que existia na forma de Deus e assumiu a forma de servo.

39.  O que morreu, foi o mesmo que nasceu. Não foi um o que morreu e outro o que ressuscitou e o que está no céu, não é outro diferente do que antes descera dos céus.

 

Capítulo 23.

40.  O Homem Jesus Cristo, Deus Unigênito, igualmente Filho do Homem e Filho de Deus, por ser carne e Verbo, assumiu uma humanidade verdadeira, à semelhança da nossa humanidade, sem deixar Ele mesmo de ser Deus.

41.  Embora os golpes o atingissem, as feridas se abrissem, os laços o prendessem e fosse suspenso na cruz, tudo isto, na verdade, trazia o ímpeto do sofrimento, mas não produzia a dor da paixão, assim como uma lança perfura a água ou atravessa o fogo ou fere o ar e produz todos os efeitos próprios à sua natureza, como atravessar, ferir, perfurar, mas a ação realizada não mantém sua força, já que não é próprio da água ser perfurada, do fogo ser atravessado, do ar ser ferido, embora pertença à natureza da lança ferir, atravessar e perfurar.

42.  Sem dúvida o Senhor Jesus Cristo sofreu quando foi flagelado, suspenso, crucificado e quando morreu. Quando o sofrimento arremeteu contra o corpo do Senhor, não deixou de ser sofrimento, contudo, não deu lugar aos seus efeitos, porque, enquanto o castigo violento o atormentava, a força do corpo suportava a pena, sem sentir a dor. O corpo do Senhor teria certamente experimentado nossa dor se o nosso corpo pudesse também, por sua natureza, andar sobre as ondas, caminhar sobre as vagas, sem afundar, não sendo impedido por nenhum obstáculo e sem que as águas cedessem sob os passos firmes, se pudesse penetrar os corpos sólidos, sem ser impedido pelo obstáculo da casa fechada.

43.  Porém, se somente o corpo do Senhor tivesse tal natureza, de modo que, por seu poder, fosse levado por sua alma a caminhar sobre as ondas e manter-se de pé sobre as águas sem afundar, passar através das paredes, como iríamos julgar, a partir da natureza do corpo humano, aquela carne que foi concebida do Espírito?

44.  Pois esta carne é aquele pão que desceu do céu; e aquele Homem vem de Deus. Tendo, na verdade, um corpo que poderia padecer, e padeceu, não tinha, no entanto, a natureza que poderia sofrer. Pois teve uma natureza que lhe é própria aquele corpo que no monte foi conformado à celeste glória, que, quando toca, afugenta a febre, que, com sua saliva, dá a vista aos olhos (cf. Mt 17,1; 8,15; Jo 9,6).

 

Capítulo 24.

45.  Mas por ter Ele as reações de chorar, de ter sede e fome, talvez devesse ter também uma natureza capaz de experimentar os outros sofrimentos humanos. Aquele que ignora o mistério das lágrimas, da sede e da fome saiba que o que chorou é capaz também de vivificar e que, em vez de chorar, se alegra com a morte de Lázaro (cf. Jo 11,35) e oferece rios de água viva, brotada de si mesmo, àquele que tem sede (cf. Jo 7,38).

46.  Não sofre sede quem pode dar de beber ao sequioso. O faminto condenou a árvore que não ofereceu frutos para sua fome (cf. Mt 21,19). Nem pode ser vencida pela penúria aquela natureza que, com uma ordem, transforma o verde em aridez.

47.  Se, além do mistério das lágrimas, da sede e da fome, a carne assumida, isto é, o Homem todo, foi submetido aos sofrimentos de nossa natureza, não o foi, porém, de tal forma que sucumbisse aos danos causados pelo sofrimento, de sorte que, chorando, não chorava por si, sedento, não bebia para aplacar a sede, faminto, não se saciava com alimento algum.

48.  Nunca foi indicado que o Senhor, por ter sede ou fome, ou por chorar, tenha chorado, bebido ou sentido dor, a não ser para demonstrar a realidade do corpo. Aceitando o que é natural ao corpo, adaptou-se aos costumes do corpo, de modo que, ao aceitar a bebida e o alimento, não o fez por uma necessidade do corpo, mas para conformar-se com os costumes.

 

 

 

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