terça-feira, 23 de maio de 2023

229 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulos 10 - 19)

 


229

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulos 10 - 19)


 

Capítulo 10.

1.      Consumou-se assim o mistério da assunção do homem: Vós estáveis mortos pelas vossas faltas e pela incircuncisão de vossa carne e Ele vos vivificou juntamente com Cristo. Ele perdoou todas as nossas faltas: destruiu, em detrimento das ordens legais, o quirógrafo da sentença contra nós e o suprimiu pregando-o na cruz, na qual despojou os principados e as potestades exibindo-os em espetáculo, levando-os em cortejo triunfal e delas triunfando em si mesmo (Cl 2,13-15).

2.      O homem do mundo profano não entende o sentido da fé apostólica que não pode ser explicada por nenhuma linguagem diferente da sua própria.

3.      Deus ressuscitou dentre os mortos a Cristo, no qual habita a plenitude da divindade, corporalmente, vivificou-nos juntamente com Ele, perdoando nossos pecados, destruiu o quirógrafo da lei do pecado que, pelas prescrições anteriores, nos era contrário e suprimiu-o, pregando-o na cruz.

4.      Despojando a si mesmo da carne, pela lei da morte, exibiu em espetáculo as potestades vencidas em si mesmo.

5.      Das potestades vencidas nele, dadas em espetáculo e do quirógrafo destruído, já tratamos acima. Porém, quem alcança este mistério ou pode dele falar?

6.      A ação de Deus ressuscita Cristo dentre os mortos, esta mesma ação nos vivifica com Cristo, perdoa os pecados, destrói o quirógrafo e prega-o na cruz, despoja-se da carne, exibe em espetáculo as potestades e delas triunfa em si mesmo.

7.      Tens aí a ação de Deus ressuscitando Cristo dentre os mortos, tens também a Cristo realizando em si mesmo aquilo que Deus realiza, pois Cristo morreu despojando-se da carne.

8.      Crê firmemente que Cristo Homem foi ressuscitado dos mortos por Deus e que Cristo Deus, quando tinha de morrer, operou nossa salvação.

9.      Pois quando Deus realiza estas obras em Cristo, embora seja Deus que as realiza, é Cristo que, para morrer, se despoja da carne.

10.  Quando Cristo morreu, tendo atuado como Deus antes da morte, foi a ação de Deus que ressuscitou o Cristo morto, pois o que ressuscitou Cristo dentre os mortos é o mesmo Cristo que atuou antes da morte, e é o mesmo que, para morrer, despojou-se da carne.

 

Capítulo 11.

11.  Entendes agora o mistério da fé apostólica? Já tens o Cristo por conhecido? Pergunto-te: quem é o que se despoja da carne, e o que é a carne de que se despojou?

12.  Nas palavras do Apóstolo percebo um duplo significado: o da carne de que se despojou e de Cristo que se despojou da carne. Ouço que Cristo foi ressuscitado dos mortos pela ação de Deus. Se é Deus que ressuscita Cristo dentre os mortos e se Cristo é ressuscitado dos mortos, indago quem se despojou da carne e quem ressuscitou Cristo dentre os mortos e nos vivifica com Cristo.

13.  Se Cristo morto e a carne de que se despojou não são o mesmo, qual é o nome da carne de que se despojou e qual é a natureza do que se despojou da carne?

14.  Vejo que são o mesmo: o Deus Cristo ressuscitado dos mortos é o que se despojou da carne. A carne de que se despojou é Cristo ressuscitado dos mortos, no qual encontro Aquele que, triunfando, expôs em espetáculo os principados e as potestades vencendo-as em si mesmo.

15.  Reconheces o que triunfa sobre as potestades em si mesmo? Percebes que não diferem entre si o que se despojou da carne e a carne de que se despojou? Triunfa em si mesmo, isto é, naquela carne de que se despojou. Percebes assim que se afirma que Ele é Deus e Homem, atribuindo-se a morte ao Homem e a ressurreição da carne a Deus, e que, no entanto, não é um o que morreu, e outro Aquele por quem o que morreu ressuscita?

16.  A carne de que se despojou é Cristo morto, e o que ressuscita Cristo dentre os mortos é o mesmo Cristo que se despojou da carne.

17.  Vê a natureza de Deus no poder da ressurreição e, na morte, reconhece a economia da encarnação. E tendo em ambas atuado as respectivas naturezas, lembra-te de que Jesus Cristo é um só e é Deus e Homem.

 

Capítulo 12.

18.  Lembro-me de que o Apóstolo atribui frequentemente a Deus Pai ter ressuscitado Jesus Cristo dentre os mortos. Mas o Apóstolo não vai contra a fé evangélica nem se contradiz, principalmente porque o próprio Senhor disse: Por isso o Pai me ama, porque eu entrego minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a entrego por mim mesmo. Tenho o poder de entregá-la e o poder de recebê-la de novo. Este mandamento eu o recebi de meu Pai (Jo 10,17-18).

19.  Também, quando lhe perguntaram que sinal mostraria para que se cresse nele, falou do templo de seu corpo: Destruí este templo, e eu em três dias o reerguerei (Jo 2,19).

20.  Pelo seu poder de recobrar a vida e de reerguer o templo, ensina ser Ele mesmo o Deus que opera a ressurreição, porém refere sempre ao mandato paterno sua autoridade.

21.  O Apóstolo não ensina o contrário ao pregar a Cristo como poder de Deus e sabedoria de Deus, referindo a magnificência de toda sua obra à glória do Pai, porque, o que quer que Cristo faça, é o poder e sabedoria de Deus que o faz e tudo o que é feito pelo poder e sabedoria de Deus é, sem dúvida, ação de Deus, de quem Cristo é sabedoria e poder.

22.  Cristo foi ressuscitado dos mortos pela ação de Deus, porque realiza as obras de Deus Pai, por sua natureza não diferente da natureza de Deus. Nossa fé na ressurreição é a fé em Deus que ressuscitou Cristo dentre os mortos.

 

Capítulo 13.

23.  O Santo Apóstolo, em sua pregação, manteve a afirmação de que há em Cristo estes dois aspectos: a fraqueza do homem e o poder da natureza de Deus. Assim disse aos Coríntios: Foi crucificado na fraqueza, mas vive pelo poder de Deus (2Cor 13,4), mostrando que a morte é própria da fraqueza humana, e a vida é própria do poder de Deus.

24.  Disse também aos Romanos: Porque, morrendo, Ele morreu para o pecado de uma vez por todas, mas vivendo, vive para Deus. Assim também vós, considerai-vos mortos para o pecado, mas vivos para Deus no Cristo Jesus (Rm 6,10-11).

25.  Atribuía a morte ao pecado, isto é, ao nosso corpo; a vida, porém, a Deus, a quem pertence por natureza viver. Por isso é necessário morrer para nosso corpo para viver para Deus em Cristo Jesus, que assumiu nosso corpo de pecado e vive inteiramente para Deus e que, tendo unido a si a nossa natureza, tornou-a participante da comunhão com a imortalidade divina.

 

Capítulo 14.

26.  Deveria demonstrar estas coisas com poucas palavras, para lembrar que, no Senhor Jesus Cristo, deve-se considerar uma pessoa que tem as duas naturezas.

27.  O que existia na forma de Deus assumiu a forma de servo, pela qual foi obediente até a morte, porque a obediência até a morte não se realiza na forma de Deus, assim como a forma de Deus não está na forma do servo. Porém, em virtude do mistério da dispensação evangélica, o que está na forma de servo não é distinto do que está na forma de Deus, embora não seja a mesma coisa assumir a forma de servo e permanecer na forma de Deus.

28.  O que permanecia na forma de Deus não podia assumir a forma de servo senão despojando-se de si mesmo, já que as duas formas se excluem mutuamente.

29.  O que se despojou e tomou a forma de servo não é diferente nem é outro, pois o que não existe não pode assumir coisa alguma, visto que assumir algo é próprio de quem existe.

30.  O esvaziamento da forma não representa aniquilamento da natureza. O que se despoja de si mesmo não deixa de existir, e o que recebe algo permanece.

31.  Sendo o mesmo o que se despoja de uma forma e assume a outra, há um mistério nesse despojamento e assunção, mas não há destruição do ser, como se o que se despoja deixasse de existir e o que assume não existisse.

32.  Cristo, que existia na forma de Deus, se despoja da forma de Deus para que a forma de servo seja assumida, não para que Ele deixe de ser Cristo, pois é Cristo que assume a forma de servo.

33.  Quando se despojou de si mesmo, a mudança no modo de ser ao assumir a natureza humana não destruiu sua natureza divina, que permanece, para que, permanecendo Cristo Espírito, o mesmo Cristo, no corpo, fosse Homem.

 

Capítulo 15.

34.  Já expusemos a economia dos mistérios, de que os hereges se servem para enganar os simples, atribuindo à fraqueza da divindade tudo o que foi feito e dito pela natureza humana assumida e referindo à forma de Deus o que é próprio à forma de servo.

35.  Agora é preciso responder a todas as suas proposições. Podemos julgar de maneira segura qual seja o gênero de cada uma das suas afirmações, visto que a verdadeira fé consiste em confessar o Verbo e a carne, isto é, Deus e Homem, Jesus Cristo.

36.  Os hereges julgam poder negar que Nosso Senhor Jesus Cristo seja Deus por natureza, porque disse: Por que me chamas bom? Ninguém é bom a não ser o único Deus (Mc 10,18).

37.  O sentido de toda resposta deve, necessariamente, provir da causa da pergunta. Assim, responderemos de acordo com o que se quer saber.

38.  Primeiro, indago do falso intérprete deste dito, se pensa que o Senhor, ao ser chamado de bom, teria preferido ser chamado de mau. Pois é isto que parece significar a pergunta: Por que me chamas bom? Não penso haver alguém tão perverso que queira atribuir uma confissão de maldade a quem disse: Vinde a mim todos os que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo, e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso para vossas almas. Pois o meu jugo é suave, e o meu peso é leve (Mt 11,28-30).

39.  Ele, que declarara ser manso e humilde, acaso se irritaria por ter sido dito bom? Esta diversidade nas declarações mostra ser contraditório que alguém que afirmou sua bondade não aceite ser chamado de bom. Portanto, não se entende que se tenha irritado por ter sido chamado de bom. Deve-se indagar se Aquele que não podemos crer que tenha recusado o nome de bom não estaria refutando alguma outra afirmação a seu respeito.

Capítulo 16.

40.  Vejamos, então, o que disse, além de chamá-lo de bom, o que interrogava. Disse: Bom Mestre, que farei de bom? (Mc 10,17). Chamou-o com dois nomes: bom e mestre. Já que não o censura por ter dito bom, será preciso, então, que o censure por ter sido chamado bom mestre.

41.  Ao recusar o apelativo de bom mestre, questiona antes a fé do interrogante do que o nome de mestre ou de bom. Pois o jovem que se orgulhava da observância da Lei não conhecia a Cristo como o fim da Lei e julgava ser justificado pelas obras. Não entendia que Ele tinha vindo para salvar as ovelhas perdidas da casa de Israel (cf. Mt 15,24), o que era impossível para a Lei, porque é pela fé na justificação que os crentes são salvos (Rm 8,3).

42.  Interrogou, como a um mestre dos preceitos comuns e dos escritos da Lei, ao Deus Unigênito e Senhor da Lei.

43.  Rejeitando essa profissão de fé irreligiosa, porque era interrogado como mestre da Lei, respondeu: Por que me chamas bom? E para indicar como se deve entendê-lo e confessá-lo como bom, acrescentou: Ninguém é bom, a não ser o único Deus (Mc 10,18), não rejeitando assim o nome de bom, se, como a Deus, lhe fosse atribuído.

 

Capítulo 17.

44.  Finalmente, mostrando que recusava ser chamado bom mestre pela fé daquele que o interrogava como a um homem, censurou a petulância do jovem que se gloriava por cumprir a Lei e respondeu: Uma coisa ainda te falta: vai, vende tudo o que tens, e dá aos pobres e terás um tesouro nos céus; e depois vem e segue-me (Mc 10,21).

45.  Não rejeita para si o nome de bom Aquele que promete os tesouros celestes, nem nega ser Mestre Aquele que se apresenta como o guia da perfeita beatitude. Censura, porém, a fé que se fundamenta na opinião terrena sobre Ele e ensina que somente em Deus há bondade.

46.  Indica ser Ele mesmo o Deus bom e dá provas de sua bondade abrindo os tesouros celestes e propondo-se a guiá-lo para alcançá-los.

47.  Eis por que não aceitou o que lhe era atribuído como a um simples homem. Contudo, não se mostrou alheio àquilo que se atribuía a Deus, já que, confessando o único Deus bom, mostrava que o que dizia e fazia, pertencia ao poder, à bondade e à natureza do Deus único.

 

Capítulo 18.

48.  Não recusou o nome de bom, nem a honra de mestre, mas censurou a fé de quem só apreciava nele o que é corpóreo e carnal. Isso ficou demonstrado quando, falando aos Apóstolos que o chamavam de mestre, disse: Vós me chamais de mestre e de Senhor, e dizeis bem, eu o sou na verdade (Jo 13,13), e também: Não vos chameis de mestres, porque vosso mestre é o Cristo (Mt 23,10).

49.  Quando, com fé, é chamado de mestre, aceita de bom grado que lhe atribuam este nome; contudo, não consente em ser chamado de bom mestre quando não é considerado nem Senhor nem Cristo. Pregando um único Deus bom, na verdade, não se separa de Deus Aquele que também se declarou Senhor e Cristo, revelando-se guia para os tesouros celestes.

 

Capítulo 19.

50.  Manteve sempre o Senhor o que é a norma da fé eclesiástica, pregando o Único Deus Pai, sem se separar do mistério do Deus único. Declarou que, pela natureza da natividade, não é um outro Deus, nem é o mesmo que o Pai, porque a natureza do único Deus que nele existe não admite que seja um Deus de gênero diferente e a natividade divina faz com que seja perfeito Filho.

51.  Não pode ser separado de Deus, nem é o mesmo que Ele. Por isso, guarda a moderação em todas as suas palavras, de modo a indicar discretamente que a honra que se atribui a Deus Pai pertence também a Ele. Se Ele disse: Crede em Deus, crede também em mim (Jo 14,1), pergunto em que é diferente pela natureza daquele de quem não é diferente pela honra?

52.  Pois, ao dizer: Crede também em mim, depois de ter dito crede em Deus, as palavras em mim indicam ser também sua a natureza.

53.  Separa, portanto, a natureza, já que separas a fé. Se a vida consiste em crer em Deus sem crer em Cristo, separa Cristo de Deus pelo nome e pela natureza. Mas, se cremos que, pela fé em Cristo, os que creem em Deus são conduzidos à vida perfeita, que o diligente leitor aprecie a força da palavra: Crede em Deus, crede também em mim. Dizendo: Crede em Deus, crede também em mim, assimilou à fé em Deus a fé que se deve ter nele e uniu a sua natureza à natureza de Deus.

54.  Tendo mencionado a Deus, em quem é necessário crer, ensinou que é preciso crer também nele. Mostrou com isso ser Deus, já que os que creem em Deus devem crer nele. Excluiu toda ocasião de crer impiamente na unicidade de pessoa porque afirmou ser preciso crer em Deus e também nele mesmo, sem deixar lugar para a fé em um Deus solitário.

 

O que você destaca no texto?

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O que você destacva na fala do seu irmnão/ã?

 

 

segunda-feira, 1 de maio de 2023

228 Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulo 1-9)

 


Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulo 1-9)



 

LIVRO NONO

 

Capítulo 1.

1.      Tratando o livro anterior da não-diferença de natureza entre Deus Pai e Deus Filho e da palavra: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30), tornou-se patente ser preciso confessar que Deus não é um solitário e afirmar, pela geração, a unidade da indivisível divindade.

2.      Deus não nasceu de outro, mas de Deus. Deus que procede de Deus não pode deixar de ser o que Deus é.

3.      Embora não tenhamos percorrido todos os ditos divinos e testemunhos apostólicos nos quais se ensina a inseparável natureza e poder do Pai e do Filho, já temos elementos suficientes para a compreensão.

4.      Chegamos finalmente ao enunciado da fé apostólica, que diz: Vede que ninguém vos seduza pelas vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo; porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Cl 2,8-9).

5.      Ensinamos que, por habitar nele corporalmente a plenitude da divindade, está comprovado que é Deus verdadeiro e perfeito, possuindo a natureza paterna. Não se deve entender que se trata da plenitude de um Deus diferente nem de um Deus único (como solitário).

6.      A habitação corporal do Deus incorpóreo mostra que Aquele que subsiste como Deus, nascido de Deus, tem como própria a mesma natureza de Deus.

7.      Deus, habitando em Cristo, revela a natividade de Cristo como pessoa subsistente, porque habita nele. Por isso, julgo ter sido esta a resposta mais do que evidente à impiedade dos que julgam que estas palavras do Senhor: Quem me vê, vê também o Pai (Jo 14,9); O Pai está em mim, e eu, no Pai (Jo 10,38); Eu e o Pai somos Um (Jo 10, 30), e: Tudo o que é do Pai, é meu (Jo 16,15) referem-se à unidade e concórdia das vontades.

8.      A fé nestas palavras deveria permanecer, embora a falsa piedade da doutrina falaciosa adultere o seu sentido.

9.      Como não se pode negar haver neles o consenso das vontades, quando se afirma a unidade da natureza, querem que se creia apenas na unidade baseada no consenso das vontades, a fim de abolir a unidade que existe em virtude da natividade.

10.  Mas o santo Apóstolo, após muitas afirmações indubitáveis sobre a verdade da natureza divina, ensina que em Cristo a plenitude da divindade habita corporalmente.

11.  Fica eliminada toda afirmação da ímpia audácia, já que a habitação corporal da divindade incorpórea realiza a unidade da natureza.

12.  Ele é Filho não só pelo nome e, na realidade, o Pai permanece nele. Não apenas permanece, mas age e fala, e não só age e fala, mas também é visto.

13.  Pelo mistério da natividade, nele a força tem a força, o poder tem o poder, e a natureza tem a natureza. Possui, pela natividade, aquilo que é seu e, por ser imagem, reflete a verdade do Autor, porque a perfeita natividade dá a perfeita imagem, e a plenitude da divindade, que habita corporalmente, o faz possuir a verdade da natureza divina.

 

Capítulo 2.

14.  Deus que procede de Deus por natureza, não pode existir a não ser na sua natureza, que lhe vem pela natividade pela qual é Deus.

15.  A unidade sem diferença da natureza vivente é inseparável de si mesma, pelo nascimento de uma natureza vivente. Contudo, a pretexto da confissão salutar da fé evangélica, os hereges se insinuam para corromper a verdade. Querem eliminar a unidade de natureza do Filho, mudando o sentido do que foi dito, para que seja entendido com um significado e um propósito diferentes.

16.  Para negarem o filho de Deus, apoiam-se na autoridade daquele que disse: Por que me chamas bom? Ninguém é bom senão o único Deus (Mc 10,18), porque, se Ele declara que Deus é um, então tudo o que depois tiver o nome de Deus já não pertencerá à natureza de Deus, porque Deus é Um. Embora lhe seja atribuído o nome de Deus, Ele não é realmente Deus.

17.  Esforçam-se por confirmar isto, por ter dito: Esta é a vida eterna, que te conheçam a ti, único Deus verdadeiro (Jo 17,3). E para dizer que não tem a natureza do verdadeiro Deus, acrescentam: O Filho, por si mesmo, nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer (Jo 5,19). Argumentam também com as seguintes palavras: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28). Por fim, gloriando-se de haver subvertido a fé da Igreja pela negação da indissolúvel divindade, repetem: Daquele dia e hora, ninguém sabe, nem os Anjos nos céus, nem o Filho, somente o Pai (Mc 13,32), pois não parece possível que seja da mesma natureza pela natividade, se é necessariamente diferente pela ignorância. Que o Pai conheça e o Filho desconheça, manifesta a dessemelhança da divindade, porque não se pode atribuir a Deus ignorar algo, e o ignorante não se compara ao que conhece.

18.  Dizem tudo isso sem compreender a razão, sem distinguir os tempos, sem conhecer os mistérios evangélicos. Não percebendo a força das palavras, com estulto e ignorante furor, falam contra a natureza divina, a fim de encher os ouvidos dos ignorantes.

19.  Somente lembram estas palavras fora do contexto, calando sua explicação e seus motivos sem perceber que é preciso compreendê-las a partir do que foi dito ou à luz do que virá em seguida.

 

Capítulo 3.

20.  A partir dos mesmos ensinamentos evangélicos e apostólicos, pretendemos explicar o sentido das palavras acima citadas. Acreditamos dever exortar a todos os que têm em comum a mesma fé a conhecerem o eterno a partir da confissão que leva à vida eterna. Ignora totalmente sua vida quem ignora que Cristo Jesus, verdadeiro Deus, é também verdadeiro Homem.

21.  O mesmo perigo existe em negar que em Cristo Jesus está não só o Deus Espírito, mas também a carne de nosso corpo. Portanto todo aquele que me confessar diante dos homens, também eu o confessarei diante de meu Pai, que está nos céus. Quem, porém, me negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus (Mt 10,32).

22.  Estas palavras, o Verbo feito carne as dizia e as ensinava o Homem Jesus Cristo, Senhor da glória, constituído em si mesmo mediador para a salvação da Igreja, sendo mediador entre Deus e os homens por este mesmo mistério, porque Ele é Um e é ambas as coisas.

23.  Em virtude das duas naturezas unidas em Um, é um sujeito que tem as duas naturezas, de tal sorte que de nada carece em nenhuma das duas.

24.  Ao nascer como Homem, não deixa de ser Deus e, porque continua a existir como Deus, não deixa de ser Homem. Esta é a verdadeira fé que conduz à felicidade humana: proclamar a Cristo como Deus e Homem, confessá-lo como Verbo e carne, não desconhecê-lo como Deus porque é Homem, nem desconhecer que seja carne porque é o Verbo.

 

Capítulo 4.

25.  Embora contrarie nossa inteligência que Aquele que permanece Deus tenha nascido como Homem, não contraria nossa esperança que, tendo nascido Homem, permaneça Deus.

26.  Se uma natureza mais poderosa nasceu em uma natureza inferior, é possível acreditar que uma natureza inferior possa nascer em uma natureza superior. Na verdade, segundo a lei e os costumes do mundo, mais se realiza o que é próprio da nossa esperança do que o que é próprio do divino mistério.

27.  O mundo faz crescer o que nasce, porém, não pode fazê-lo diminuir. Considera as árvores, as searas, os animais. Observa o próprio homem dotado de razão: sempre progride pelo crescimento, nunca se contrai pela diminuição. O que nele cresce não vem a faltar, não que não envelheça pela idade, pois sua vida chega ao fim. Sofre, é certo, uma diminuição com a passagem do tempo, mas aquilo que existe não tem em si a capacidade de não ser, de tal modo que não pode tornar-se novo, a partir do que é, experimentando uma diminuição, isto é, o velho não pode voltar a ser criança, pois nossa natureza tem uma tendência a progredir e pode esperar evoluir, de acordo com a lei deste mundo.

28.  Para ela o aumento se dá segundo a natureza, e a diminuição é contra a natureza. Foi próprio de Deus ser outro diferente do que continuava a ser, sem, contudo, deixar de ser o que tinha sido.

29.  Nasceu como Homem sem deixar de ser Deus. Contraiu-se até a concepção, o berço e a infância, sem abandonar o poder de Deus. Isto é mistério de salvação, não para Ele, mas para nós.

30.  Não foi Deus que se beneficiou com a nossa assunção. Nós é que fomos elevados por sua humilhação voluntária. Deus não perde a divindade, é o Homem que recebe o poder de ser Deus.

 

Capítulo 5.

31.  Nasceu da Virgem o Deus Unigênito como Homem, na plenitude dos tempos, para, em si mesmo, elevar o Homem até Deus, e em tudo manteve esta norma da palavra evangélica: que se cresse nele como Filho de Deus.

32.  Exortou igualmente a pregar que Ele era o Filho do Homem. Sendo Homem, disse e realizou tudo o que é próprio de Deus. Sendo Deus, disse e realizou tudo o que é próprio do homem, de tal forma que, quer falasse como Homem, quer falasse como Deus, nunca deixou de mostrar o único Deus Pai.

33.  Declarou ter a natureza de Deus, pela realidade do nascimento, contudo não deixou de submeter-se a Deus Pai, tanto no que diz respeito à honra que o Filho deve dar a Deus Pai, enquanto seu Filho, quanto no que compete à sua condição de Homem, pois todo o que nasce se refere a seu pai, e toda carne se confessa fraca diante de Deus.

34.  Os hereges, porém, a fim de enganar os simples, se aproveitam da oportunidade, usando aquilo que foi dito por Ele a respeito da sua humanidade para mentir, dizendo que se referia à fraqueza da sua natureza divina. E como é Um e o mesmo o que diz todas essas coisas, afirmam ter Ele dito isso de si próprio.

 

Capítulo 6.

35.  Não negamos que todas as suas palavras se referem à sua natureza. Jesus Cristo é Homem. Não começou a ser Deus quando se fez Homem nem deixou de ser Deus ao fazer-se Homem, nem, depois de ser Homem, em Deus, deixou de ser perfeito Homem e perfeito Deus.

36.  Forçoso é, portanto, que o mistério de suas palavras seja o mistério de seu ser. E como, segundo o tempo, tu distingues nele o Homem e Deus, distingue também nele a palavra de Deus e a do Homem.

37.  E quando confessares Deus e Homem, no tempo, distingue também as palavras de Deus e as do Homem, ditas no tempo. Se, sendo Homem e Deus, levas em conta o tempo em que o Homem todo é inteiramente Deus, se alguma coisa foi dita para designar esse tempo, relaciona o que foi dito com esse tempo, pois uma coisa é ser Deus antes de ser Homem, outra é ser Homem e Deus, e outra, depois de ter sido Homem e Deus, ser o Homem todo inteiramente Deus.

38.  Não confundas os tempos e os modos de ser do mistério da salvação. Considerando-se o mistério da Encarnação, de acordo com as suas naturezas e modos de ser, foi preciso que o Filho falasse uma linguagem antes de nascer, outra quando ainda teria de morrer, outra, quando já está na eternidade.

 

Capítulo 7.

39.  Por nós, Jesus Cristo, sendo tudo isso, nasceu como Homem, com o nosso corpo, falou de acordo com nossa natureza, sem contudo ocultar que é, por natureza, o que Deus é.

40.  Embora no parto e na paixão e morte tenha vivido o que pertence à nossa natureza, viveu contudo tudo isso com o poder de sua natureza, enquanto foi, Ele próprio, para si, a origem de seu nascimento, enquanto quis padecer aquilo que não devia padecer, quando morreu, sendo Aquele que vive. Foi Deus que assim agiu, por intermédio de sua humanidade. Tendo nascido, de si mesmo, tendo sofrido por sua vontade, tendo morrido porque quis, não deixou de ser Homem, visto que nasceu, padeceu e morreu.

41.  Todas estas coisas foram estabelecidas, já antes da criação do mundo, como sacramentos dos celestes mistérios: que o Deus Unigênito quisesse nascer como Homem e que, como Homem, permanecesse eternamente em Deus, que Deus quisesse sofrer, para que, assumindo Ele a nossa fraqueza, o diabo não mantivesse em nós a lei do pecado, agitando as paixões da fragilidade humana, e que Deus quisesse morrer para que nenhum poder insolente se levantasse contra Ele, nem pudesse usurpar para si o poder de nenhuma natureza criada, uma vez que Deus imortal se submetera à lei da morte.

42.  Deus nasce para nos elevar, sofre para nos dar a inocência, morre para reparar nossa ofensa. Nossa humanidade permanece em Deus, os sofrimentos causados por nossas fraquezas estão unidos a Deus, e o poder dos espíritos do mal é vencido pelo triunfo da carne, porque Deus morreu na carne.

 

Capítulo 8.

43.  O Apóstolo, consciente deste mistério, tendo recebido do próprio Senhor a ciência da fé, por não ignorar serem incapazes de compreendê-la o mundo, os homens e a filosofia, disse: Vede que ninguém vos seduza pelas vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo Cristo; porque nele habita corporalmente toda a plenitude da divindade e nele fostes levados à plenitude. Ele é a cabeça de todo principado e potestade (Cl 2,8-10).

44.  Atesta que a plenitude da divindade nele habita corporalmente e logo acrescenta a explicação do mistério de nossa assunção, dizendo: nele fostes levados à plenitude. Porque, como nele está a plenitude da divindade, assim nós somos levados à plenitude nele.

45.  Não diz apenas: fostes levados à plenitude, mas nele fostes levados à plenitude, porque, pela esperança da fé na vida eterna, todos os regenerados e os que serão regenerados agora permanecem no corpo de Cristo. Serão depois levados à plenitude, já não mais nele, mas em si mesmos, naquele tempo de que fala o Apóstolo: Transfigurará o nosso corpo humilhado conformando-o com o seu corpo glorioso (Fl 3,21).

46.  Agora, portanto, fomos levados à plenitude, nele, pela assunção de sua carne, na qual habita corporalmente a plenitude da divindade. E não é pouco o poder para realizar nossa esperança. Pois, se somos levados à plenitude, é por ser Ele a cabeça e o princípio de todo poder, como foi dito: Para que, ao nome de Jesus, todo joelho se dobre, dos seres celestes, dos terrestres e dos que vivem sob a terra, e toda língua confesse: o Senhor Jesus está na glória de Deus Pai (Fl 2,10-11).

47.  Portanto a confissão será esta: Jesus está na glória de Deus Pai. Nascido como Homem, já não permanece na fraqueza de nosso corpo, mas na glória de Deus. E isto toda língua confessará. Que os seres celestes e os terrestres dobrem os joelhos, significa ser Ele a cabeça de todo principado e potestade. Dobrando os joelhos diante dele, todo o universo se submete Àquele no qual somos levados à plenitude e que, pela plenitude da divindade que nele habita corporalmente, deve ser louvado por estar na glória de Deus Pai.

 

Capítulo 9.

48.  Tendo demonstrado o mistério de sua natureza e da assunção da nossa, porque pelo fato de ter nascido como Homem, Aquele que tem em si a plenitude da divindade leva à plenitude a nossa natureza, continua o Apóstolo a explicação da economia de nossa salvação: Nele fostes circuncidados, por uma circuncisão não feita por mão de homem, mas pelo despojamento de vossa natureza carnal: esta é a circuncisão de Cristo. Fostes sepultados com Ele no batismo, no qual também com Ele ressuscitastes pela fé no poder de Deus, que o ressuscitou dos mortos (Cl 2,11-12).

49.  Fomos circuncidados, na verdade, não por circuncisão carnal, mas pela circuncisão de Cristo, isto é, renascemos para ser o Homem novo.

50.  Se com Ele fomos sepultados no seu batismo, é preciso morrer ao velho homem, porque a regeneração do batismo é força de ressurreição. Esta circuncisão de Cristo não consiste na espoliação da carne, mas em morrer inteiramente com Ele e, por isso, viver inteiramente para Ele, pois nele ressuscitamos pela fé no seu Deus, que o ressuscitou dos mortos.

51.  Deve-se, portanto, crer em Deus por cuja operação Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, porque esta fé nos fez ressuscitar em Cristo e com Ele.

 

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