quinta-feira, 30 de novembro de 2023

244 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo Primeiro (Capítulos 12 - 22)

 

 


                                                                                 244

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo Primeiro (Capítulos 12 - 22)

 


O livro XI fala da diferença entre a humanidade e a divindade de Cristo e da glorificação da humanidade de Cristo e nossa glorificação juntamente com Ele. São 49 capítulos.

 

Capítulo 12.

1.      Aqui, como em tudo o que disse, o Senhor harmonizou de modo piedoso e justo suas palavras. Assim, a afirmação da sua natividade não poderia ser entendida como injúria à divindade e o respeito reverente não pareceria ofender a natureza da majestade.

2.      Quis, como Filho, demonstrar a honra devida Àquele de quem recebia o seu subsistir. Quis também que a confiança natural mostrasse a convicção de que possuía a natureza que subsistia nele, por ter nascido como Deus.

3.      Daí as palavras: Quem me vê, vê também o Pai, e: As palavras que eu digo, não as digo por mim mesmo (Jo 14,9 e 10). Já que não as diz por si mesmo, forçoso é que deva o que diz Àquele que é o seu princípio.

4.      Se quando Ele é visto, o Pai é visto, isto significa o reconhecimento de sua natureza que não subsiste de modo alheio a Deus, por ter nascido como Deus. Diz ainda: O que meu Pai me deu, é maior do que todas as coisas (Jo 10,29), e: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30).

5.      A doação paterna expressa a natividade recebida pelo Filho, e porque são Um, por causa da natividade, o Filho tem a natureza divina. Diz ainda: Mas confiou todo o julgamento ao Filho, para que todos honrem o Filho assim como honram o Pai (Jo 5,22-23).

6.      Quando se dá o julgamento, afirma-se a natividade, e quando se iguala a honra, reconhece-se a igualdade de natureza. Ou ainda: Eu estou no Pai, e o Pai em mim (Jo 14,10), e: O Pai é maior do que eu (Jo 14,28).

7.      Porque estão um no outro, deves reconhecer a divindade de Deus nascido de Deus. Se o Pai é maior, deves reconhecer a primazia paterna. Diz também: O Filho por si mesmo nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer; tudo o que Ele fez, o Filho faz igualmente (Jo 5,19).

8.      Se não o faz por si, o Pai é princípio do que faz, em virtude de sua natividade, contudo, se o que o Pai faz, também o Filho o faz igualmente, não subsiste em uma natureza diferente da natureza de Deus, e a natureza da onipotência do Pai subsiste nele para que possa fazer tudo aquilo que Deus Pai faz.

9.      Tudo isso se demonstrou a partir da unidade do Espírito e da natureza que lhe pertence por nascimento, de tal modo que o Filho proclama o Deus que lhe dá o ser, mas, por outro lado, o fato de ter recebido o ser não oculta a consciência de sua natureza divina.

10.  Deus Filho declara ser Deus seu Pai porque dele nasceu; e, porque nasceu, tem, por natureza, o que Deus é.

 

Capítulo 13.

11.  A economia do grande mistério da piedade fez com que o que era Pai pela natividade divina fosse também Senhor pela condição humana assumida, pois Aquele que existia na forma de Deus foi encontrado na forma de servo.

12.  Não era servo, porque, segundo o Espírito, era Deus, Filho de Deus, e, conforme o senso comum, onde não há servo, também não há Senhor. Deus é Pai pela natividade do Unigênito e não podemos dizer que este tenha um senhor, a não ser enquanto é servo.

13.  Se antes, por natureza, não era servo e depois começou a ser o que não era por natureza, não existe outra causa para se entender um domínio do Pai a não ser a servidão do Filho que tem um Senhor, porque, pela assunção da natureza humana, apresentou-se como servo.

 

Capítulo 14.

14.  Estando na forma de servo, o Homem Cristo Jesus, que antes permanecia na forma de Deus, assim disse: Subo para o meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus (Jo 20,17).

15.  Se o servo assim falou aos servos, como esta declaração não será do servo? Como se transferiria para aquela natureza que não é a de servo, se Aquele que, existindo na forma de Deus, assumiu a forma de servo, não pode estar em comunhão com os outros servos a não ser enquanto é servo?

16.  Por conseguinte, o Pai, para Ele, é Pai, como o é para os homens, e é Deus, para Ele, como é Deus para os servos. E como o Homem em forma de servo Jesus Cristo, fala, deste modo, a homens que são servos, não há dúvida de que o Pai é Pai para Ele enquanto Homem, como o é para os outros, e é Deus para Ele como o é para todos, em virtude da natureza pela qual é servo.

 

Capítulo 15.

17.  Enfim, este mesmo discurso tem como exórdio as palavras: Vai, pois, a meus irmãos e diz-lhes: Subo para o meu Pai e vosso Pai, para o meu Deus e vosso Deus (Jo 20,17).

18.  Pergunto, agora, como se deve entender que tenha irmãos, se na forma de Deus ou na forma de servo. Haverá algum consórcio de nossa condição corpórea com Ele quanto à plenitude da divindade que nele habita para que sejamos chamados de irmãos enquanto Ele é Deus?

19.  O espírito profético não ignora em que sentido são irmãos do Deus Unigênito: Ele falou, não tanto como Homem, mas como verme: narrarei teu nome a meus irmãos (Sl 22.23).

20.  Como verme, que não vive pela concepção das origens comuns, ou sai vivo das profundezas da terra, disse isso para indicar a carne assumida e vivificada por Ele, predizendo, no salmo, pelo espírito profético, todos os mistérios de sua paixão. Portanto, era necessário que, pela economia, pela qual sofreu, tivesse irmãos.

21.  O Apóstolo também reconhece o mistério dos irmãos, ao proclamá-lo primogênito dentre os mortos (Cl 1,18), assim como o primogênito entre muitos irmãos (Rm 8,29).

22.  Portanto, é primogênito entre muitos irmãos como é primogênito dentre os mortos; e como o mistério da morte se dá no corpo, também o mistério da fraternidade se dá na carne.

23.  São irmãos de Deus pela carne porque o Verbo se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14), mas o Deus Unigênito, na sua condição exclusiva de unigênito, não tem irmãos.

 

Capítulo 16.

24.  Tendo em si, por natureza, tudo o que é nosso, por ter assumido a carne, é o que nós somos sem perder o que era. Tinha, então, a Deus como Pai, pela natividade; agora o tem, pela criação; pela criação, agora, porque tudo vem de Deus Pai.

25.  Deus é Pai de todos os seres, porque tudo vem dele e tudo existe nele. Mas, para o Deus Unigênito, porque o Verbo se fez carne, não é Pai só por isso, mas porque o Verbo feito carne no princípio estava junto de Deus.

26.  Como o Verbo se fez carne, é Pai para Ele pelo nascimento como Verbo de Deus e pela assunção da carne.

27.  Deus é Pai de toda carne, mas não como é Pai para o Deus Verbo. O Deus Verbo nem deixou de ser o Verbo, nem deixou de assumir a carne. Pois o Verbo que se fez carne e habitou entre nós não deixa de ser verdadeiramente o Verbo enquanto habita entre nós. Porque o Verbo se fez carne, Deus não deixa de ser verdadeiramente Homem, pois é preciso que habite entre nós Aquele que permanece sendo o que é e deve-se entender que fazer-se carne é próprio daquele que nasce.

28.  Habitar entre nós significa que assumiu nossa carne, porque, quando o Verbo feito carne habita entre nós, Deus existe na realidade de nosso corpo.

29.  Se o Homem Jesus Cristo segundo a carne privasse o Deus Verbo de sua natureza, ou se o Deus Verbo não fosse o Homem Jesus Cristo, pelo mistério da piedade, sua natureza sofreria injúria, por ter Ele a Deus como Deus e ao Pai como Pai, do mesmo modo que nós.

30.  Porém, se o Deus Verbo, como Homem Jesus Cristo, não deixou de ser o Deus Verbo, nós e Ele temos o mesmo Pai e Deus, somente no que diz respeito à natureza, pela qual Ele é nosso irmão.

31.  As palavras subo para meu Pai e o vosso Pai, e para meu Deus e vosso Deus, não são ditas aos irmãos pelo fato de ser Ele o Deus Unigênito, o Verbo, mas porque o Verbo se fez carne.

 

Capítulo 17.

32.  A palavra apostólica não usa expressões imprecisas nem ambíguas, que possam dar ocasião à impiedade.

33.  O Evangelista, comentando o dito do Senhor a respeito dos irmãos, ensinou que se refere à comunhão com sua natureza, pela qual é irmão, porque o discurso se destina aos irmãos.

34.  Não se julgue tratar-se de injúria à divindade, o que se dizia sobre o mistério da piedade. Nossa comunhão com Ele, pela qual o Pai é Pai para nós e para Ele e Deus, para nós e para Ele, fundamenta-se na economia da Encarnação, pois devemos considerar-nos seus irmãos pela natividade corporal. Por conseguinte, ninguém duvida de que Deus Pai seja também o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo.

35.  Esta nossa piedosa profissão de fé não dá lugar à impiedade. É seu Deus, não porque seja um Deus diferente dele pela natureza, mas sim porque nasceu do Pai como Deus e é servo pela economia da salvação. Tem a Deus como Pai porque é Deus nascido dele, e o tem como seu Deus porque, tendo nascido da Virgem, é carne.

36.  O Apóstolo expressa isto com palavras breves e claras: Fazendo menção de vós nas minhas orações, para que o Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Pai da glória, vos dê o espírito de sabedoria e de revelação (Ef 1,16-17).

37.  Onde fala de Jesus Cristo, fala de seu Deus, onde fala da glória, fala do Pai. Aquele que, para Cristo, segundo a glória, é Pai, é Deus para Cristo, enquanto Ele é Jesus. Pois o Anjo denomina Jesus o Cristo Senhor, que Maria iria dar à luz (cf. Mt 1,21).

38.  Ademais, a profecia dá a Cristo Senhor o nome de Espírito. Para muitos, este dito parece muito obscuro em latim, porque o latim não usa os artigos que o grego sempre emprega por necessidade e com dignidade. Pois assim escreve: O Theós  tou Kyriou emon Iesou Kristou o Pater tes doxes (Ef 1,17). Se nós usássemos pronomes, diríamos: Aquele Deus daquele nosso Senhor Jesus Cristo, daquele Pai daquela glória. As expressões o Deus de Jesus Cristo e o Pai da glória referem-se que é próprio de sua natureza, de modo adaptado à capacidade de nossa inteligência: onde está a glória de Cristo, aí se fala de Deus como seu Pai; onde, porém, está Jesus Cristo, aí se fala do Pai como seu Deus. Ele o tem como o seu Deus na economia, enquanto é servo, e como Pai na glória, enquanto é Deus.

 

Capítulo 18.

39.  Os tempos e as circunstâncias não acarretam diferenças no Espírito. O mesmo Cristo que está num corpo é o mesmo que esteve no Espírito nos Profetas, quando disse, falando pela boca do santo patriarca Davi: Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo da alegria, de preferência e teus companheiros (Sl 44,8), não falou de outro mistério, a não ser da economia do corpo assumido.

40.  Aquele que confiava aos irmãos que o Pai deles é o seu Pai e que o Deus deles é o seu Deus, dizia então ter sido também ungido por seu Deus, de preferência aos companheiros.

41.  Cristo, Deus Verbo Unigênito, não tem companheiros, mas podemos saber que tem companheiros por aquela assunção da carne. A unção não foi dada àquela natureza nobre, incorrupta e bem-aventurada de Deus que nele permanecia pelo nascimento, mas tinha em vista o mistério do corpo e a santificação do homem assumido, como o atesta o apóstolo Pedro: Coligaram-se nesta cidade contra o teu santo Filho Jesus, a quem ungiste (At 4,27).

42.  E ainda: Sabeis o que se anunciou por toda a Judéia, começando pela Galileia, depois do batismo pregado por João, como Deus ungiu com o Espírito Santo e com poder a Jesus, o Nazareno (At 10,37-38).

43.  Portanto, Jesus é ungido para o mistério da regeneração da carne. E de que maneira foi ungido com o Espírito Santo e poder está claro, pois, quando subia do Jordão, se ouviu a voz de Deus Pai que dizia: Tu és meu Filho, eu hoje te gerei (Sl 2,6; cf. Lc 3,22), para que, pelo testemunho de ter sido nele santificada a carne, fosse conhecida a unção da força espiritual.

 

Capítulo 19.

44.  Como no princípio o Deus Verbo estava junto de Deus, não há nenhuma causa ou explicação para sua unção naquela natureza, da qual nada mais se diz, senão que existia no princípio. Deus nunca teve necessidade de ser ungido pelo Espírito e poder de Deus, pois é Espírito e Poder de Deus.

45.  Deus é ungido por seu Deus de preferência a seus companheiros. Se, antes da encarnação, muitos, segundo a Lei, são ungidos, Cristo, que agora é ungido de preferência aos seus companheiros, é posterior no tempo, mas antecede seus companheiros ungidos.

46.  A palavra profética refere-se a esta unção que haveria de ser dada no futuro, dizendo: Amaste a justiça e odiaste a iniquidade; por isto Deus, o teu Deus, te ungiu com o óleo da alegria de preferência a teus companheiros (Sl 44,8).

47.  Um fato posterior que deriva de outro não pode vir antes dele, porque merecer algo é posterior à existência de quem poderia vir a merecer.

48.  Diz-se que mereceu aquele que adquire algo para si. Se, portanto, referirmos a natividade do Deus unigênito à unção, e se a unção é concedida pelo mérito de ter amado a justiça e odiado a iniquidade, entender-se-á que o Deus Unigênito foi elevado a essa dignidade pela unção, mas não foi gerado como tal, e que, pelo crescimento e progresso, chegou à perfeição, não tendo nascido como Deus.

49.  Foi ungido para ser Deus por seu merecimento, e, assim sendo, haveria uma causa para que Cristo fosse Deus e já não existiriam todos os princípios por meio de Cristo Deus.

50.  Onde fica a palavra do Apóstolo, segundo a qual tudo foi criado por Ele, e nele, Ele é anterior a todos, e tudo nele subsiste (cf. Cl 1,16-17)?

51.  O Senhor Jesus Cristo é Deus, não por causa alguma, ou mediante algo, mas é Deus que nasceu como Deus. Quem, pela geração, é Deus, não passou a ser Deus depois do nascimento, por alguma causa, mas, porque nasceu, é Deus. Quando, por algum motivo, é ungido, a unção não traz proveito algum para quem não precisa de progresso, mas é dada ao que, pelo crescimento no mistério, necessita do progresso trazido. Cristo foi ungido para ser santificado pela unção, enquanto é Homem como nós.

52.  Se agora o Profeta mostra a economia de sua condição de servo, pela qual é ungido por seu Deus de preferência a seus companheiros, porque amou a justiça e odiou a iniquidade, não estaria aludindo à natureza na qual Cristo tem companheiros pela assunção da carne?

53.  Além disso, deve-se considerar que o Espírito de profecia dispôs de tal modo as palavras que, ao dizer que Deus é ungido por seu Deus, se refere à condição humana na qual é ungido, ao dizer seu Deus, e à natureza divina, ao dizer Deus.

54.  Por conseguinte, Deus é ungido; mas pergunto se o Verbo, que no princípio era Deus, foi ungido. Não, certamente. Pois a unção é posterior a seu ser divino. E como não foi ungido o Filho, que é o Deus Verbo, que no princípio estava junto de Deus, é preciso que seja ungido o que em Deus é posterior, na economia da salvação, a seu ser divino.

55.  Quando Deus é ungido por seu Deus, é ungido o que foi assumido por Ele no mistério da encarnação, em forma de servo.

 

Capítulo 20.

56.  Que ninguém profane, com seu modo ímpio de pensar, o grande mistério da piedade que se manifestou na carne. Que ninguém se iguale ao Unigênito em sua natureza divina. Que Ele seja para nós irmão e companheiro, enquanto Verbo que, feito carne, habitou entre nós, enquanto Homem, Jesus Cristo, Mediador entre Deus e os homens (cf. 1Tm 2,5).

57.  Que nós, servos, tenhamos um Pai e um Deus em comum com Ele e que Ele seja ungido de preferência aos companheiros, ainda que de modo privilegiado, naquela natureza, na qual os seus companheiros são ungidos e seja Deus verdadeiro, como é homem verdadeiro, quanto ao mistério de sua mediação, sendo Deus nascido de Deus, tendo em comum conosco o Pai e Deus, naquela comunhão pela qual é nosso irmão.

 

Capítulo 21.

58.  Talvez a submissão e a entrega do reino e as palavras depois será o fim (1Cor 15,24) deem a entender que se dará a desaparição de sua natureza, a perda do seu poder ou o enfraquecimento da sua divindade.

59.  Pois muitos querem que, ou não seja Deus, por causa de sua submissão, visto que, quando tudo estiver submetido a Deus, também Ele se submeterá, ou então que, ao entregar o reino, já não estará na sua possessão, ou que, quando chegar o fim, desaparecerá.

 

Capítulo 22.

60.  Convém estudar o sentido da exposição apostólica a respeito destas coisas, para que, exposto e examinado o sentido de cada afirmação, possamos penetrar todo o mistério e chegar à sua total compreensão. Pois diz: Porque por um homem veio a morte, por um homem a ressurreição dos mortos. Pois como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos serão vivificados. Contudo, cada um em sua ordem: como primícias, Cristo, em seguida, os que são de Cristo por ocasião de sua vinda; depois, será o fim, quando entregar o reino a Deus e Pai, depois que tiver destruído toda dominação e todo poder. Pois é preciso que Ele reine, até que ponha todos os inimigos sob seus pés. O último inimigo a ser destruído é a morte. Quando disser: “Tudo está submetido”, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu, então ele mesmo se submeterá àquele que o submeteu para que Deus seja tudo em todas as coisas (1Cor 15,21-28).

 

O que você destaca no texto? Como ele serve para sua espiritualidade?