05 de agosto de 2023
O livro IX refuta os argumentos arianos
sobre a inferioridade do Filho. Hilário demonstra que é preciso distinguir em
Cristo as duas naturezas e os diversos estágios, antes da encarnação, na sua
vida terrena e depois da ressurreição.
Capítulo
58.
1.
Os hereges, para negar a sua natureza
divina, apresentam o que foi dito: O Pai é maior do que eu, e: Quanto
ao dia e a hora ninguém sabe, nem os Anjos nos céus, nem o Filho, mas somente o
Pai (Mc 13,32).
2.
Objeta-se ao Deus Unigênito a
ignorância do dia e da hora. Deus nascido de Deus não teria a perfeição da
natureza pela qual Deus é Deus. Seria dominado pela ignorância e, assim sendo,
uma força externa, mais poderosa do que Ele, o manteria na incapacidade da
ignorância.
3.
O furor dos hereges quer forçar-nos também
à impiedade deste modo de ver, obrigando-nos a confessar que assim se deve
crer, porque isso foi dito pelo Senhor e seria o cúmulo da irreligiosidade
corromper sua clara afirmação sobre si mesmo com uma interpretação diferente.
Capítulo
59.
4.
Em primeiro lugar, antes de falar do
conteúdo e da razão do que foi dito, deve-se entender, como indica o senso
comum, que não é crível que o Senhor de tudo o que é e será não conheça alguma
coisa. Tudo existe por Cristo e em Cristo, e existe de tal forma por meio dele,
que tudo existe nele (cf. Cl 1,16).
5.
Aquilo que não está fora dele não deixa
de existir por meio dele. Como não estará também nele o conhecimento, se muitas
vezes, pela força de sua natureza, que nada ignora, apreende aquilo que não
existe, nem em si nem por si?
6.
Aquilo que tem sua causa unicamente a
partir dele e recebe somente dele o impulso que leva a ser o que é e o que
será, acaso poderia permanecer fora do conhecimento próprio de sua natureza,
pelo qual e no qual está contido tudo aquilo que deve ser feito?
7.
O Senhor Jesus Cristo não ignora os
pensamentos humanos, não apenas os que são movidos pelo impulso presente, mas
também os que serão motivados pelos desejos futuros. Atesta-o o Evangelista: Sabia
Jesus, desde o início, quais os que não acreditavam e quem era aquele que o
entregaria (Jo 6,64).
8.
Seria possível imaginar que o poder de
sua natureza, que conhece coisas ainda não existentes e não ignora as inquietações
que sofrerão espíritos ainda em repouso, pudesse desconhecer o que existe por
Ele e nele?
9.
Acaso seria incapaz, em relação ao que
é seu, o que é poderoso em relação ao que é alheio? A respeito dele lembramos
que foi dito: Tudo foi criado por Ele, e Ele existe antes de todos (Cl
1,16), e: Aprouve a Deus fazer habitar nele toda a Plenitude, e por Ele e
para Ele reconciliar todos os seres (Cl 1,19).
10. Se
toda a plenitude está nele, se tudo será reconciliado por Ele e nele, e aquele
dia é a esperança da nossa reconciliação, acaso ignorará Ele quando será aquele
dia, se o tempo desse dia está nele e é dele o seu mistério?
11. Na
verdade, este é o dia de seu advento, sobre o qual disse o Apóstolo: Quando
Cristo, vossa vida, aparecer, então também vós aparecereis com Ele na glória (Cl
3,1). Se ninguém desconhece o que existe por si e em si, Cristo, que virá, ignora
o dia de sua vinda? É o seu dia, de acordo com o mesmo Apóstolo: Porque o
dia do Senhor virá como o ladrão à noite (1Ts 5,2), e dever-se-á entender
que o ignora?
12. Se os
seres humanos decidem o que fazer e preveem tudo o que é possível conhecer de antemão
e se, ao conhecimento do que se deve fazer, segue-se a vontade de agir, acaso Aquele
que nasceu como Deus não conheceria o que existe por meio dele e nele?
13. Por
Ele existem os tempos e nele está o dia, porque, por meio dele se determinam as
coisas futuras e a Ele compete dispor a sua vinda.
14. Haverá
nele tal ignorância a ponto de desconhecer, pelo entorpecimento do senso
natural, aquilo que lhe diz respeito, como as feras e os brutos, que não sabem
nem mesmo o que fazem, mas são movidos por qualquer movimento da vontade
estúpida e agem ao acaso, de modo incerto?
Capítulo
60.
15. Como
se pode ainda crer que o Senhor da glória, por ignorar o dia de sua vinda,
possua uma natureza tão desordenada e imperfeita que deva vir, mas não tenha
conhecimento do tempo de sua vinda? Seria melhor atribuir a Deus a ignorância
que lhe retirar o conhecimento.
16. Além
disso, seria duplamente favorecida a impiedade se, além de se atribuir a
incapacidade a Cristo, também se atribuísse uma falha a Deus Pai, que teria
enganado o Deus Unigênito, o Filho de sua dileção, a respeito desse dia e, com
um sentimento maligno, teria impedido, por inveja, que conhecesse a futura
consumação.
17. Se não
quis que ignorasse o dia e a hora de sua paixão, teria negado a Ele o
conhecimento do dia de seu poder, quando iria ser glorificado em seus santos?
Se lhe concedeu a presciência de sua morte, teria impedido que conhecesse sua
felicidade?
18. A
consciência humana não pode aceitar que se presuma, arbitrariamente, tal coisa
a respeito de Deus e se atribuam a Ele vícios e alterações humanas, de tal modo
que o Pai negue algo ao Filho, ou que Aquele que nasceu como Deus ignore algo.
Capítulo
61.
19. Deus
não sabe ser outra coisa senão amor, nem outra coisa a não ser Pai. Quem ama não
inveja, e quem é Pai é inteiramente pai, e não é outra coisa. Este nome não
admite divisões, de modo que, sob algum aspecto, seja Pai, sob outro, não o
seja. É Pai em tudo quanto nele existe e se possui inteiramente naquele para
quem não é Pai só em parte. Não é Pai do que é seu para vantagem própria, mas é
inteiramente Pai, em tudo o que é, para Aquele que recebe dele o seu ser.
20. Segundo
a natureza dos corpos humanos provenientes de elementos díspares, que existem a
partir de componentes diversos, ninguém pode ser pai se não for pai de tudo o
que é seu, porque a natividade perfeita conserva nos filhos todas as partes e propriedades
que estão em cada um.
21. Quem é
pai é pai de tudo o que é seu, pois o que nasce provém de tudo o que ele é e
permanece em tudo.
22. Em
Deus não há nada de corpóreo. Ele é um todo perfeito. Nele não há partes, mas
Ele é íntegro e tudo abarca. Não foi vivificado, mas é vivo. Todo Ele é vivente
e todo Ele é inteiramente Deus, pois não se compõe de partes e é perfeito pela simplicidade.
23. Assim
sendo, é forçoso que, pelo fato de ser Pai, seja, em tudo, Pai para Aquele que
gerou de si mesmo, porque a perfeita natividade do Filho consuma em perfeição a
sua paternidade.
24. Se é
verdadeiro Pai para o Filho, é necessário que o Filho tenha as propriedades que
o Pai possui. Como se pode pensar que as possui, se não tem a presciência, e
falta à sua natividade algo que provém de seu princípio?
25. Pois
faltará quase tudo, se não tiver o que é próprio de Deus. E o que é mais
próprio de Deus que o conhecimento das coisas futuras, de tal modo que sua
natureza seja capaz de conter os seres existentes e os que existirão depois, os
invisíveis e os que ainda não existem?
Capítulo
62.
26. O
Doutor das Gentes, Paulo, não admite em nós esta ímpia declaração do erro, como
se o Unigênito ignorasse algo, pois diz: Fundados no amor, sejam levados a
todas as riquezas da plena inteligência e ao conhecimento do mistério de Cristo
Deus. Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência (Cl
2,2-3).
27. Cristo
Deus é mistério, e nele se encontram ocultos todos os tesouros da sabedoria e
da ciência. Isto não se pode dizer ao mesmo tempo de uma parte e do todo,
porque nem a parte significa o todo, nem o todo pode ser entendido como uma
parte.
28. Se o
Filho não conhece o dia, já não estão nele todos os tesouros da ciência. Porém
não ignora o dia, se contém em si os tesouros da ciência.
29. Devemos
lembrar-nos de que nele estão ocultos os tesouros da ciência, que, pelo fato de
estarem ocultos, não deixam de estar nele. Por ser Deus, estão nele, por ser
mistério, estão ocultos. Porém nem oculto nem ignorado por nós é o mistério de
Cristo Deus, no qual estão ocultos todos os tesouros da ciência.
30. E,
porque Ele é mistério, vejamos se é ignorante naquilo que não sabe. Pois, se em
outros lugares a declaração de que ignora não tem o sentido de não saber, agora
também não ignora o que desconhece.
31. A
ignorância daquele em quem todos os tesouros da ciência estão ocultos, será
devida mais à economia da salvação do que ao fato de não saber. Tens assim a
causa do ignorar que não deve ser entendido como um não saber.
Capítulo
63.
32. Todas
as vezes que Deus diz ignorar, declara na verdade a ignorância, mas não é impedido
pela ignorância. Nele, o não saber não está relacionado com a fraqueza devida à
ignorância. Somente não é ainda tempo de falar ou ainda não é chegada a
ocasião de agir.
33. Deus
fala a Abraão, dizendo: O clamor de Sodoma e Gomorra chegou ao auge, e seus
pecados são grandes demais. Descerei, portanto, e verei se suas obras correspondem
ao clamor; se não for, eu saberei (Gn 18,20-21).
34. Temos,
portanto, aí, a Deus que não sabe o que, no entanto, não desconhece. Sabe que
são enormes os pecados e desce para ver se já chegaram ao auge ou se ainda não
atingiram o auge.
35. Entendemos
que, se Ele os ignora, não é por não saber, mas que sabe porque chegou o tempo
de agir.
36. O fato
de Deus saber não significa que sua ignorância passe a ser conhecimento,
mas diz respeito à plenitude do tempo.
37. Espera-se
ainda que saiba, mas não podemos pensar que Ele não saiba e ainda espere para
saber. Por isso, é preciso que o fato de não saber sabendo e de, não sabendo,
saber, esteja relacionado ao desígnio de falar ou de agir.
Capítulo
64.
38. Não há
motivo para a hesitação: a ciência de Deus diz respeito mais ao tempo do que à
mudança.
39. Em
relação ao que Deus sabe, trata-se antes do conhecimento do tempo em que foi
revelado do que do momento em que é adquirido o conhecimento.
40. Ficamos
sabendo disto pelo que foi dito a Abraão: Não levantes a mão contra o
menino, e não lhe faças nada; pois agora conheço que temes a Deus, e não
poupaste teu filho dileto por minha causa (Gn 22,12).
41. Deus
sabe agora, mas saber agora é declarar sua ignorância anterior, o que não
condiz com Deus. Não é possível que, antes, ignorasse a fidelidade de Abraão,
de quem foi dito: Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado por justiça (Gn
15,6; Rm 4,22).
42. Que
agora conheça, significa o tempo em que Abraão recebeu o testemunho, não o
tempo em que Deus começou a saber. Abraão, pelo holocausto do filho, mostrou a
sua dileção por Deus. Deus então o conheceu, quando falou. Porque não se deve
pensar que antes não soubesse, é preciso que se entenda ter conhecido então,
porque falou.
43. Entre
muitos testemunhos do Antigo Testamento sobre a ciência de Deus, mostramos
somente este, como exemplo, para que se compreendesse que aquilo que Deus
não conhece não se refere à ignorância, mas ao tempo.
Capítulo
65.
44. No
Evangelho encontramos muitas coisas que o Senhor ignora conhecendo. Diz não conhecer
os operários da iniquidade, que se gloriam de suas virtudes e de seu nome: E
então jurarei que não vos conheço. Afastai-vos de mim todos os que praticais a iniquidade
(Mt 7,23).
45. Até
com juramento afirma que não conhece aqueles que, no entanto, não desconhece
como operários da iniquidade. Se não os conhece, portanto, não é por
ignorância, mas por causa da iniquidade de suas obras, e confirma com religioso
juramento a verdade da sua palavra.
46. Tendo
por natureza o poder de não desconhecer, conserva o não-saber no mistério da
sua vontade.
47. O Deus
Unigênito também desconhece as virgens loucas, aquelas descuidadas, que não
prepararam o óleo para si à entrada do tálamo de sua gloriosa vinda. Elas
chegam e rogam, mas o fato de serem conhecidas não impede que Ele lhes
responda: Em verdade eu vos digo; não vos conheço (Mt 25,12).
48. Pela
chegada e pela súplica, não seria possível que fossem desconhecidas, mas a
resposta de não conhecer não vem da natureza, mas da vontade, pois são
indignas de ser conhecidas por Ele, que conhece tudo.
49. Finalmente,
para que não se julgue ignorar por fraqueza, logo fala aos Apóstolos: Vigiai,
portanto, porque não sabeis nem o dia nem a hora (Mt 25,13). Quando exorta
a vigiar, por causa da ignorância do dia e da hora, quer que saibam que Ele
desconheceu as virgens, porque, sonolentas e negligentes, tornaram-se indignas
de entrar no tálamo, por causa da falta do óleo.
Capítulo
66.
50. O
Senhor Jesus Cristo, que é o Deus que perscruta os corações e os rins, não tem
a fraqueza da natureza que desconhece.
51. Sua
ignorância deve ser interpretada como procedente do conhecimento próprio de sua
natureza. Se alguns quiserem imputar-lhe a ignorância, temam que Aquele que
conhece os pensamentos lhes diga: Por que pensais mal em vossos corações? (Mt
9,4).
52. Pois
às vezes, conhecendo bem os pensamentos e as ações, interroga como se não os
conhecesse. Quando interrogou, por exemplo, a mulher que lhe tocou a fímbria da
veste, os Apóstolos que discutiam a respeito de suas palavras, os que choravam
perto do sepulcro de Lázaro, não se deve entender que se tratasse de um
desconhecimento, mas de um modo de falar. Pois não tem sentido que Aquele que, estando
ausente, sabia que Lázaro morrera e fora sepultado não soubesse onde estava o sepulcro,
que Aquele que vê os pensamentos não conhecesse a fé possuída pela mulher e que
Aquele que não tem necessidade de interrogar coisa alguma ignorasse o motivo da
discussão dos Apóstolos.
53. Para
Aquele que tudo conhece, pertence a um desígnio oculto dizer algumas vezes que
ignora o que sabe.
54. Com
Abraão, esconde o que sabe por algum tempo, em relação às virgens loucas e aos
operários da iniquidade o conhecimento é negado aos indignos.
55. Se, no
mistério do Filho do Homem, pergunta como se ignorasse, isso se deve à sua
condição humana. Acomoda-se à realidade do nascimento corpóreo em tudo o que
limita a fragilidade da nossa natureza, não por ser fraco por natureza, visto
que é Deus, mas por causa da fraqueza humana que Deus, nascido Homem, assumiu.
56. Assumiu,
porém, não de forma que a natureza imutável fosse reduzida à natureza fraca,
mas de tal modo que o mistério da assunção se deu na natureza imutável.
57. Aquele
que era Deus é Homem e o que é Homem não deixa de ser Deus.
58. Agindo
e mostrando-se como Homem, o Verbo que permanece Deus muitas vezes utiliza o
modo de falar próprio do seu ser de Homem e, muitas vezes, o modo de falar de
Deus é o mesmo que o dos homens, quando diz não saber aquilo que não quer
que seja conhecido porque ainda não chegou o tempo da revelação ou quando
se trata de algo que não deve ser conhecido.
Capítulo
67.
59. Deve-se,
pois, entender por que declarou não conhecer o dia. Se pensarmos que o ignora
de modo absoluto, o Apóstolo o contradiz: Nele estão escondidos todos os tesouros
da sabedoria e da ciência (Cl 2,3).
60. Há,
portanto, uma ciência oculta que, por estar, às vezes, escondida, é tida como
não conhecida, para que permaneça escondida, pois se estivesse sendo sempre
proclamada, não permaneceria em segredo.
61. Portanto,
nega conhecer, para que o conhecimento continue escondido. Aquele que tudo sabe
não é ignorante por natureza, pois somente ignora para que seu conhecimento
continue oculto, e a razão para ocultar o conhecimento do dia não está oculta.
62. Exortando-nos
a permanecer atentos e manter sempre uma fé inabalável, retira a segurança de
um conhecimento definitivo, de modo que a mente fique em suspenso pela incerta expectativa
e se empenhe em aguardar com esperança o dia da vinda, sempre de prontidão para
que a incerteza quanto ao tempo mantenha a atenção vigilante e não permita
duvidar que o tempo há de chegar.
63. Por
isso assim disse o Senhor: Ficai também vós preparados, porque não conheceis
a hora em que o Filho do Homem virá (Mt 24,44), e ainda: Feliz aquele
servo que o Senhor, ao voltar, encontrar vigilante (Mt 24,46).
64. A
ignorância não serviu para fazer-nos errar, mas para a perseverança. Não causou
prejuízo negar o conhecimento de algo cuja ignorância é benéfica, pois a
certeza poderia acarretar a negligência na fé, enquanto a expectativa incerta
pode manter ininterrupta a preparação.
65. Do
mesmo modo que o medo do ladrão põe em guarda o dono da casa, sempre vigilante
pelo temor do dano que ele pode causar à sua casa, a expectativa nos faz sempre
precavidos.
O que você destaca no texto?
Como serve para sua
espiritualidade?
O que você destaca na fala do
seu irmão/ã?
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