terça-feira, 25 de julho de 2023

235 Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Nono (Capítulos 58 - 67).

 



235

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Nono (Capítulos 58 - 67)


 

05 de agosto de 2023


 

Capítulo 58.

1.      Os hereges, para negar a sua natureza divina, apresentam o que foi dito: O Pai é maior do que eu, e: Quanto ao dia e a hora ninguém sabe, nem os Anjos nos céus, nem o Filho, mas somente o Pai (Mc 13,32).

2.      Objeta-se ao Deus Unigênito a ignorância do dia e da hora. Deus nascido de Deus não teria a perfeição da natureza pela qual Deus é Deus. Seria dominado pela ignorância e, assim sendo, uma força externa, mais poderosa do que Ele, o manteria na incapacidade da ignorância.

3.      O furor dos hereges quer forçar-nos também à impiedade deste modo de ver, obrigando-nos a confessar que assim se deve crer, porque isso foi dito pelo Senhor e seria o cúmulo da irreligiosidade corromper sua clara afirmação sobre si mesmo com uma interpretação diferente.

 

Capítulo 59.

4.      Em primeiro lugar, antes de falar do conteúdo e da razão do que foi dito, deve-se entender, como indica o senso comum, que não é crível que o Senhor de tudo o que é e será não conheça alguma coisa. Tudo existe por Cristo e em Cristo, e existe de tal forma por meio dele, que tudo existe nele (cf. Cl 1,16).

5.      Aquilo que não está fora dele não deixa de existir por meio dele. Como não estará também nele o conhecimento, se muitas vezes, pela força de sua natureza, que nada ignora, apreende aquilo que não existe, nem em si nem por si?

6.      Aquilo que tem sua causa unicamente a partir dele e recebe somente dele o impulso que leva a ser o que é e o que será, acaso poderia permanecer fora do conhecimento próprio de sua natureza, pelo qual e no qual está contido tudo aquilo que deve ser feito?

7.      O Senhor Jesus Cristo não ignora os pensamentos humanos, não apenas os que são movidos pelo impulso presente, mas também os que serão motivados pelos desejos futuros. Atesta-o o Evangelista: Sabia Jesus, desde o início, quais os que não acreditavam e quem era aquele que o entregaria (Jo 6,64).

8.      Seria possível imaginar que o poder de sua natureza, que conhece coisas ainda não existentes e não ignora as inquietações que sofrerão espíritos ainda em repouso, pudesse desconhecer o que existe por Ele e nele?

9.      Acaso seria incapaz, em relação ao que é seu, o que é poderoso em relação ao que é alheio? A respeito dele lembramos que foi dito: Tudo foi criado por Ele, e Ele existe antes de todos (Cl 1,16), e: Aprouve a Deus fazer habitar nele toda a Plenitude, e por Ele e para Ele reconciliar todos os seres (Cl 1,19).

10.  Se toda a plenitude está nele, se tudo será reconciliado por Ele e nele, e aquele dia é a esperança da nossa reconciliação, acaso ignorará Ele quando será aquele dia, se o tempo desse dia está nele e é dele o seu mistério?

11.  Na verdade, este é o dia de seu advento, sobre o qual disse o Apóstolo: Quando Cristo, vossa vida, aparecer, então também vós aparecereis com Ele na glória (Cl 3,1). Se ninguém desconhece o que existe por si e em si, Cristo, que virá, ignora o dia de sua vinda? É o seu dia, de acordo com o mesmo Apóstolo: Porque o dia do Senhor virá como o ladrão à noite (1Ts 5,2), e dever-se-á entender que o ignora?

12.  Se os seres humanos decidem o que fazer e preveem tudo o que é possível conhecer de antemão e se, ao conhecimento do que se deve fazer, segue-se a vontade de agir, acaso Aquele que nasceu como Deus não conheceria o que existe por meio dele e nele?

13.  Por Ele existem os tempos e nele está o dia, porque, por meio dele se determinam as coisas futuras e a Ele compete dispor a sua vinda.

14.  Haverá nele tal ignorância a ponto de desconhecer, pelo entorpecimento do senso natural, aquilo que lhe diz respeito, como as feras e os brutos, que não sabem nem mesmo o que fazem, mas são movidos por qualquer movimento da vontade estúpida e agem ao acaso, de modo incerto?

 

Capítulo 60.

15.  Como se pode ainda crer que o Senhor da glória, por ignorar o dia de sua vinda, possua uma natureza tão desordenada e imperfeita que deva vir, mas não tenha conhecimento do tempo de sua vinda? Seria melhor atribuir a Deus a ignorância que lhe retirar o conhecimento.

16.  Além disso, seria duplamente favorecida a impiedade se, além de se atribuir a incapacidade a Cristo, também se atribuísse uma falha a Deus Pai, que teria enganado o Deus Unigênito, o Filho de sua dileção, a respeito desse dia e, com um sentimento maligno, teria impedido, por inveja, que conhecesse a futura consumação.

17.  Se não quis que ignorasse o dia e a hora de sua paixão, teria negado a Ele o conhecimento do dia de seu poder, quando iria ser glorificado em seus santos? Se lhe concedeu a presciência de sua morte, teria impedido que conhecesse sua felicidade?

18.  A consciência humana não pode aceitar que se presuma, arbitrariamente, tal coisa a respeito de Deus e se atribuam a Ele vícios e alterações humanas, de tal modo que o Pai negue algo ao Filho, ou que Aquele que nasceu como Deus ignore algo.

 

Capítulo 61.

19.  Deus não sabe ser outra coisa senão amor, nem outra coisa a não ser Pai. Quem ama não inveja, e quem é Pai é inteiramente pai, e não é outra coisa. Este nome não admite divisões, de modo que, sob algum aspecto, seja Pai, sob outro, não o seja. É Pai em tudo quanto nele existe e se possui inteiramente naquele para quem não é Pai só em parte. Não é Pai do que é seu para vantagem própria, mas é inteiramente Pai, em tudo o que é, para Aquele que recebe dele o seu ser.

20.  Segundo a natureza dos corpos humanos provenientes de elementos díspares, que existem a partir de componentes diversos, ninguém pode ser pai se não for pai de tudo o que é seu, porque a natividade perfeita conserva nos filhos todas as partes e propriedades que estão em cada um.

21.  Quem é pai é pai de tudo o que é seu, pois o que nasce provém de tudo o que ele é e permanece em tudo.

22.  Em Deus não há nada de corpóreo. Ele é um todo perfeito. Nele não há partes, mas Ele é íntegro e tudo abarca. Não foi vivificado, mas é vivo. Todo Ele é vivente e todo Ele é inteiramente Deus, pois não se compõe de partes e é perfeito pela simplicidade.

23.  Assim sendo, é forçoso que, pelo fato de ser Pai, seja, em tudo, Pai para Aquele que gerou de si mesmo, porque a perfeita natividade do Filho consuma em perfeição a sua paternidade.

24.  Se é verdadeiro Pai para o Filho, é necessário que o Filho tenha as propriedades que o Pai possui. Como se pode pensar que as possui, se não tem a presciência, e falta à sua natividade algo que provém de seu princípio?

25.  Pois faltará quase tudo, se não tiver o que é próprio de Deus. E o que é mais próprio de Deus que o conhecimento das coisas futuras, de tal modo que sua natureza seja capaz de conter os seres existentes e os que existirão depois, os invisíveis e os que ainda não existem?

 

Capítulo 62.

26.  O Doutor das Gentes, Paulo, não admite em nós esta ímpia declaração do erro, como se o Unigênito ignorasse algo, pois diz: Fundados no amor, sejam levados a todas as riquezas da plena inteligência e ao conhecimento do mistério de Cristo Deus. Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência (Cl 2,2-3).

27.  Cristo Deus é mistério, e nele se encontram ocultos todos os tesouros da sabedoria e da ciência. Isto não se pode dizer ao mesmo tempo de uma parte e do todo, porque nem a parte significa o todo, nem o todo pode ser entendido como uma parte.

28.  Se o Filho não conhece o dia, já não estão nele todos os tesouros da ciência. Porém não ignora o dia, se contém em si os tesouros da ciência.

29.  Devemos lembrar-nos de que nele estão ocultos os tesouros da ciência, que, pelo fato de estarem ocultos, não deixam de estar nele. Por ser Deus, estão nele, por ser mistério, estão ocultos. Porém nem oculto nem ignorado por nós é o mistério de Cristo Deus, no qual estão ocultos todos os tesouros da ciência.

30.  E, porque Ele é mistério, vejamos se é ignorante naquilo que não sabe. Pois, se em outros lugares a declaração de que ignora não tem o sentido de não saber, agora também não ignora o que desconhece.

31.  A ignorância daquele em quem todos os tesouros da ciência estão ocultos, será devida mais à economia da salvação do que ao fato de não saber. Tens assim a causa do ignorar que não deve ser entendido como um não saber.

 

Capítulo 63.

32.  Todas as vezes que Deus diz ignorar, declara na verdade a ignorância, mas não é impedido pela ignorância. Nele, o não saber não está relacionado com a fraqueza devida à ignorância. Somente não é ainda tempo de falar ou ainda não é chegada a ocasião de agir.

33.  Deus fala a Abraão, dizendo: O clamor de Sodoma e Gomorra chegou ao auge, e seus pecados são grandes demais. Descerei, portanto, e verei se suas obras correspondem ao clamor; se não for, eu saberei (Gn 18,20-21).

34.  Temos, portanto, aí, a Deus que não sabe o que, no entanto, não desconhece. Sabe que são enormes os pecados e desce para ver se já chegaram ao auge ou se ainda não atingiram o auge.

35.  Entendemos que, se Ele os ignora, não é por não saber, mas que sabe porque chegou o tempo de agir.

36.  O fato de Deus saber não significa que sua ignorância passe a ser conhecimento, mas diz respeito à plenitude do tempo.

37.  Espera-se ainda que saiba, mas não podemos pensar que Ele não saiba e ainda espere para saber. Por isso, é preciso que o fato de não saber sabendo e de, não sabendo, saber, esteja relacionado ao desígnio de falar ou de agir.

 

Capítulo 64.

38.  Não há motivo para a hesitação: a ciência de Deus diz respeito mais ao tempo do que à mudança.

39.  Em relação ao que Deus sabe, trata-se antes do conhecimento do tempo em que foi revelado do que do momento em que é adquirido o conhecimento.

40.  Ficamos sabendo disto pelo que foi dito a Abraão: Não levantes a mão contra o menino, e não lhe faças nada; pois agora conheço que temes a Deus, e não poupaste teu filho dileto por minha causa (Gn 22,12).

41.  Deus sabe agora, mas saber agora é declarar sua ignorância anterior, o que não condiz com Deus. Não é possível que, antes, ignorasse a fidelidade de Abraão, de quem foi dito: Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado por justiça (Gn 15,6; Rm 4,22).

42.  Que agora conheça, significa o tempo em que Abraão recebeu o testemunho, não o tempo em que Deus começou a saber. Abraão, pelo holocausto do filho, mostrou a sua dileção por Deus. Deus então o conheceu, quando falou. Porque não se deve pensar que antes não soubesse, é preciso que se entenda ter conhecido então, porque falou.

43.  Entre muitos testemunhos do Antigo Testamento sobre a ciência de Deus, mostramos somente este, como exemplo, para que se compreendesse que aquilo que Deus não conhece não se refere à ignorância, mas ao tempo.

 

Capítulo 65.

44.  No Evangelho encontramos muitas coisas que o Senhor ignora conhecendo. Diz não conhecer os operários da iniquidade, que se gloriam de suas virtudes e de seu nome: E então jurarei que não vos conheço. Afastai-vos de mim todos os que praticais a iniquidade (Mt 7,23).

45.  Até com juramento afirma que não conhece aqueles que, no entanto, não desconhece como operários da iniquidade. Se não os conhece, portanto, não é por ignorância, mas por causa da iniquidade de suas obras, e confirma com religioso juramento a verdade da sua palavra.

46.  Tendo por natureza o poder de não desconhecer, conserva o não-saber no mistério da sua vontade.

47.  O Deus Unigênito também desconhece as virgens loucas, aquelas descuidadas, que não prepararam o óleo para si à entrada do tálamo de sua gloriosa vinda. Elas chegam e rogam, mas o fato de serem conhecidas não impede que Ele lhes responda: Em verdade eu vos digo; não vos conheço (Mt 25,12).

48.  Pela chegada e pela súplica, não seria possível que fossem desconhecidas, mas a resposta de não conhecer não vem da natureza, mas da vontade, pois são indignas de ser conhecidas por Ele, que conhece tudo.

49.  Finalmente, para que não se julgue ignorar por fraqueza, logo fala aos Apóstolos: Vigiai, portanto, porque não sabeis nem o dia nem a hora (Mt 25,13). Quando exorta a vigiar, por causa da ignorância do dia e da hora, quer que saibam que Ele desconheceu as virgens, porque, sonolentas e negligentes, tornaram-se indignas de entrar no tálamo, por causa da falta do óleo.

 

Capítulo 66.

50.  O Senhor Jesus Cristo, que é o Deus que perscruta os corações e os rins, não tem a fraqueza da natureza que desconhece.

51.  Sua ignorância deve ser interpretada como procedente do conhecimento próprio de sua natureza. Se alguns quiserem imputar-lhe a ignorância, temam que Aquele que conhece os pensamentos lhes diga: Por que pensais mal em vossos corações? (Mt 9,4).

52.  Pois às vezes, conhecendo bem os pensamentos e as ações, interroga como se não os conhecesse. Quando interrogou, por exemplo, a mulher que lhe tocou a fímbria da veste, os Apóstolos que discutiam a respeito de suas palavras, os que choravam perto do sepulcro de Lázaro, não se deve entender que se tratasse de um desconhecimento, mas de um modo de falar. Pois não tem sentido que Aquele que, estando ausente, sabia que Lázaro morrera e fora sepultado não soubesse onde estava o sepulcro, que Aquele que vê os pensamentos não conhecesse a fé possuída pela mulher e que Aquele que não tem necessidade de interrogar coisa alguma ignorasse o motivo da discussão dos Apóstolos.

53.  Para Aquele que tudo conhece, pertence a um desígnio oculto dizer algumas vezes que ignora o que sabe.

54.  Com Abraão, esconde o que sabe por algum tempo, em relação às virgens loucas e aos operários da iniquidade o conhecimento é negado aos indignos.

55.  Se, no mistério do Filho do Homem, pergunta como se ignorasse, isso se deve à sua condição humana. Acomoda-se à realidade do nascimento corpóreo em tudo o que limita a fragilidade da nossa natureza, não por ser fraco por natureza, visto que é Deus, mas por causa da fraqueza humana que Deus, nascido Homem, assumiu.

56.  Assumiu, porém, não de forma que a natureza imutável fosse reduzida à natureza fraca, mas de tal modo que o mistério da assunção se deu na natureza imutável.

57.  Aquele que era Deus é Homem e o que é Homem não deixa de ser Deus.

58.  Agindo e mostrando-se como Homem, o Verbo que permanece Deus muitas vezes utiliza o modo de falar próprio do seu ser de Homem e, muitas vezes, o modo de falar de Deus é o mesmo que o dos homens, quando diz não saber aquilo que não quer que seja conhecido porque ainda não chegou o tempo da revelação ou quando se trata de algo que não deve ser conhecido.

 

Capítulo 67.

59.  Deve-se, pois, entender por que declarou não conhecer o dia. Se pensarmos que o ignora de modo absoluto, o Apóstolo o contradiz: Nele estão escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência (Cl 2,3).

60.  Há, portanto, uma ciência oculta que, por estar, às vezes, escondida, é tida como não conhecida, para que permaneça escondida, pois se estivesse sendo sempre proclamada, não permaneceria em segredo.

61.  Portanto, nega conhecer, para que o conhecimento continue escondido. Aquele que tudo sabe não é ignorante por natureza, pois somente ignora para que seu conhecimento continue oculto, e a razão para ocultar o conhecimento do dia não está oculta.

62.  Exortando-nos a permanecer atentos e manter sempre uma fé inabalável, retira a segurança de um conhecimento definitivo, de modo que a mente fique em suspenso pela incerta expectativa e se empenhe em aguardar com esperança o dia da vinda, sempre de prontidão para que a incerteza quanto ao tempo mantenha a atenção vigilante e não permita duvidar que o tempo há de chegar.

63.  Por isso assim disse o Senhor: Ficai também vós preparados, porque não conheceis a hora em que o Filho do Homem virá (Mt 24,44), e ainda: Feliz aquele servo que o Senhor, ao voltar, encontrar vigilante (Mt 24,46).

64.  A ignorância não serviu para fazer-nos errar, mas para a perseverança. Não causou prejuízo negar o conhecimento de algo cuja ignorância é benéfica, pois a certeza poderia acarretar a negligência na fé, enquanto a expectativa incerta pode manter ininterrupta a preparação.

65.  Do mesmo modo que o medo do ladrão põe em guarda o dono da casa, sempre vigilante pelo temor do dano que ele pode causar à sua casa, a expectativa nos faz sempre precavidos.

 

O que você destaca no texto?

Como serve para sua espiritualidade?

O que você destaca na fala do seu irmão/ã?

 

 

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