segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

83 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 10 - 11)



83
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 10 - 11)


CAPÍTULO X - Vós nos acusais: "Não adorais os deuses e não ofereceis sacrifícios aos imperadores". Sim, não oferecemos sacrifícios a outros pela mesma razão pela qual não os oferecemos a nós mesmos, ou seja, porque vossos deuses não são, de modo algum, referenciais para nossa adoração. Por isso, somos acusados de sacrilégio e de traição. Esse é o principal fundamento de vossa perseguição contra nós. Sim, é toda a razão de nossa ofensa.
É digna, então, de exame a respeito, se não forem nossos juizes a prevenção e a injustiça, pois a prevenção não leva a sério descobrir a verdade, e a injustiça a rejeita simples e totalmente. Não adoramos vossos deuses porque sabemos que não existem tais divindades. Eis o que, portanto, deveríeis fazer: deveríeis nos intimar a demonstrar a inexistência delas, e, então, provar que elas não merecem adoração, pois somente se vossas divindades fossem comprovadamente verdadeiros deuses, haveria toda obrigação de lhes serem rendidas homenagens divinas. Punição, igualmente, mereceriam os cristãos, se ficasse evidente que aqueles aos quais recusam adoração são verdadeiramente divinos.
Vos dizeis: são deuses. Nós negamos e apelamos para vosso próprio entendimento a respeito. Que ele nos julgue, que ele nos condene, se é incapaz de negar que todas essas vossas divindades não passam de pessoas humanas. Se vosso entendimento se atreve a negar isso, será refutado por vossos próprios livros de histórias primitivas, pelos quais tomou ciência delas, pois esses livros se constituem incontestáveis testemunhas até nossos dias, seja das cidades onde elas nasceram, seja das regiões nas quais elas deixaram marcas de suas andanças, bem como, comprovadamente elas foram enterradas.
Examinarei agora, um por um, a esses vossos deuses tão numerosos e tão diferentes, novos e antigos, gregos, romanos, estrangeiros, de escravos e de adotados, privados e públicos, machos e fêmeas, rurais e urbanos, marítimos e militares? Não. É inútil até pesquisar todos os seus nomes, de modo que me contento com um resumo, e isso não para vossa informação, mas para que tenhais em mente o que colocastes em vossa coleção, porque indubitavelmente agis como se tivésseis esquecido tudo sobre eles. Nenhum de vossos deuses é mais antigo do que Saturno. Dele fizestes provir todas as vossas divindades, mesmo aquelas de maior dignidade e mais conhecidas.
O que, então, puder ser provado sobre o primeiro, poderá ser aplicado àqueles que dele provieram. De tempos tão primitivos quanto nos informam os livros, nem o grego Diodoro ou Thallos, nem Cássio Severo nem Cornélio Nepos, bem como nenhum outro escritor que escreveu sobre as coisas sagradas primitivas, se aventurou a dizer que Saturno era alguém mais senão um homem. Tanto quanto esse assunto depende dos fatos, nada mais encontro digno de fé do que isso: sabemos o local no qual Saturno se estabeleceu na própria Itália, após muitas expedições e após compartilhar da hospitalidade da Ática, obtendo cordiais boas vindas de Jano ou Janis como os Sálicos o chamavam.
A montanha na qual ele morou foi chamada Satúrnio. A cidade que ele fundou foi denominada Satúrnia até aos nossos dias. Por fim, toda a Itália, após ter surgido com o nome de Enótria, foi chamada Satúrnia por causa dele. Foi ele que por primeiro vos ensinou a arte de escrever e de cunhar moedas. Daí, aconteceu que ele passou a governar o Tesouro Público.
Mas, se Saturno foi um homem, teve, sem dúvida, uma origem humana e tendo uma origem humana não foi rebento nascido do céu e da terra. Como seus pais eram desconhecidos, não era incomum que tenha se chamado filho desses elementos dos quais nós todos parecemos nos originar. Quem não fala do céu e da terra como de um pai e de uma mãe numa forma de veneração e homenagem?
Não há até o costume, ainda existente entre nós, de dizer que alguém que nos é estranho ou que surgiu inesperadamente em nosso meio caiu dos céus? Do mesmo modo, aconteceu com Saturno, onde apareceu como um hóspede repentino e inesperado - porque o hóspede recebe em todo o lugar a designação de nascido do céu. Mesmo a tradição popular chama de filhos da terra as pessoas de parentesco desconhecido.
Eu não sei quantos homens naqueles tempos primitivos eram levados a assim procederem quando admirados pela visão de alguém estranho que surgia em seu meio, considerando-o divino, já que naquelas eras distantes até homens de cultura transformavam em deuses pessoas que eles sabiam terem morrido como homens, um dia ou dois antes, movidos pela tristeza geral que lhes acometia. Que essas observações de Saturno, tão concisas como são, sejam suficientes. Assim, também, pode-se provar que Júpiter era certamente homem, já que nascido de homem, e que uma após outra, todas essas divindades eram mortais como o primitivo rebento. »

CAPÍTULO XI - Já que não ousais negar que essas vossas divindades foram homens e deveis aceitar que foram elevadas à divindade após sua morte, examinemos no que isso implica. Antes de tudo deveis confirmar a existência de um Deus Altíssimo - alguém possuidor da divindade - que concedeu a tais homens a divindade. Pois que eles não poderiam assumir uma divindade que não lhes pertencesse e somente um Deus que a possuísse poderia conferi-la a alguém. Se não houvesse Alguém para criar divindades, seria inútil, também, sonhar em divindades criadas pois não existiria o seu Criador.
Certamente, se elas pudessem se tornar divindades por si mesmas, com uma divindade superior governando-as, elas nunca teriam se tornado homens. Se, então, há Alguém que é capaz de criar divindades, eu volto a examinar qual razão que a levaria a criálas. Não encontro outra razão senão de que o Deus Supremo precisava de administradores e ajudantes para exercer os ofícios de Deus. Mas, primeiramente, é uma idéia indigna pensar que Ele precisasse de ajuda de um homem, e, ainda, de um homem morto. Se Ele tivesse necessidade de assistência, poderia mais apropriadamente ter criado uma divindade desde seu nascimento.
Depois, nem sequer vejo algum motivo para tal. Pois todo esse universo, se existente por si mesmo e incriado, como afirma Pitágoras, ou criado por forças de um Criador, como afirmou Platão, foi, incontestavelmente, já, em sua organização original, programado, dotado, ordenado e governado com uma sabedoria perfeita. Não poderia ser imperfeito Alguém que tudo fez perfeito. Ninguém estaria esperando por Saturno e sua raça para assim fazê-lo.
Os homens ficam loucos quando se recusam a acreditar que o primeiríssimo impulso nasceu do céu, e, então, as estrelas piscaram, a luz brilhou, os trovões rugiram, e o próprio Júpiter temeu os relâmpagos que pondes em suas mãos.
O mesmo aconteceu com Baco, Ceres e Minerva, e não somente com o primeiro homem, quem quer que tenha sido, ante os quais toda espécie de frutos brotaram abundantemente do interior da terra, providenciados tão somente para prover e sustentar o homem que depois disso pôde existir. Em consonância, dizem que essas necessidades da vida foram descobertas, não criadas.
As coisas que alguém descobre, já antes existem, e o que tem uma preexistência não deve ser visto como pertencente àquele que o descobriu mas àquele que o criou, porque certamente esse Ser existia antes daquilo que poderia ser descoberto.
 Se Baco foi elevado à divindade porque foi o descobridor do vinho, entretanto Lúculo que primeiro introduziu a cerejeira do Ponto na Itália não o foi porque, como descobridor de uma nova fruta, não se arrogou o mérito de ter sido seu criador nem de se galardoar com honras divinas.
Portanto, se o universo existiu desde o início provido de seu sistema, agindo sob determinadas leis para a execução de suas funções, não há nenhuma razão para constituir a humanidade em divindade, porque as situações e poderes que atribuís a vossas divindades existiram desde o começo, exatamente como deveriam ser, embora não as tenhais nunca deificado. Mas apontais outra razão, dizendo-nos que a atribuição de divindade foi um meio dignificá-las. E daí sois concordes, concluo, de que o Deus que é Deus é de transcendente retidão - Alguém que não quer nem insensata, nem inadequada, nem desnecessariamente outorgar uma recompensa tão grande. Pediria que, então, considerásseis se as atitudes de vossas divindades são de tal qualidade que as elevassem aos céus e não antes as submergissem no mais profundo do Tártaro - o lugar que considerais, como a maioria, como um cárcere de punições eternas.
Ora, pois que nesse lugar temível são dignos de ser lançados todos aqueles que pecam contra a piedade filial, assim como os culpados de incesto com irmãs e sedutores de viuvas, os raptores de virgens e corruptores de menores, os homens de temperamentos furiosos, os assassinos, os ladrões, os enganadores, todos, em resumo, que seguem os exemplos de vossas divindades.
Não, porém, alguém que pode provar estar inocente de crimes e vícios, a não ser o de afirmar que essas divindades foram sempre humanas. Além de não poderdes negar isso, tendes, também, em seus desalmados crimes mais uma razão para não acreditardes que tenham sido elevados à divindade após sua morte. Porque se legislais com verdadeiro propósito de punir tais crimes, se cada homem virtuoso dentre vós se nega a ter qualquer correspondência, conversa, intimidade com os culpados e vis, como, diferentemente, o Deus Altíssimo os tomaria seus pares para compartilhar de sua Majestade?
Em que posição ficaria se fosse companheiro daqueles aos quais adorais? Vossas deificações é uma afronta aos céus. Deificais vossos mais vis criminosos quando quereis agradar vossos deuses.
Vós os honrais concedendo honras divinas a seus companheiros. Mas para não mais falar de uma maneira de agir tão indigna, há homens virtuosos, puros e bons. Contudo, quantos desses homens nobres não relegastes às regiões da condenação? Como fizestes a Sócrates, tão renomado por sua sabedoria; Aristides, por sua justiça; Temístocles, por sua boa sorte; Creso por sua riqueza; Demóstemes por sua eloquência.
Qual dos vossos deuses é mais notável por sua seriedade e sabedoria do que Catão; mais justo e combatente do que Cipião? Qual deles mais magnânimo do que Pompeu; mais próspero do que Silas; de maior riqueza do que Creso, mais eloqüente do que Túlio?
Quão mais digno seria para o Deus Supremo esperar que Ele pudesse tomar tais homens para serem seus pares celestes, sabedor como Ele deve ser de suas mais dignas qualidades! Ele está em vexame, suponho, e fechou os portões celestes. Agora, certamente sente vergonha por cauda dessas sumidades que estariam a murmurar, nas regiões infernais, contra sua escolha. »

O que você destaca neste texto?
Como ele serviu para sua espiritualidade?

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