domingo, 27 de janeiro de 2019

82 - Tertuliano de Cartago (155-220) Apologia (Capítulo 9)



82
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 9)


CAPÍTULO IX Eis como posso refutar tais acusações: mostrar-vos-ei práticas que vigoram entre vós, em parte abertamente, em parte secretamente, que vos levaram, talvez, a nos acusar de coisas semelhantes. Os meninos eram sacrificados abertamente na África a Saturno até o proconsulado de Tibério, que expôs à vista do público os seus sacerdotes crucificados nas árvores sagradas, que lançavam sombras sobre seus templos - tantas eram as cruzes nas quais a justiça exigida aplicou o castigo por seus crimes, como os nossos soldados podem ainda testemunhar, tendo sido, de fato, esta uma obra daquele Procônsul.
Até presentemente aquele criminoso culto continua a ser feito, secretamente. Não seriam somente os Cristãos, estais vendo, que vos menosprezariam, porque com isso tudo o que fazeis nenhum crime foi inteiramente e permanentemente erradicado, nem nenhum de vossos deuses reformou seus costumes.
Se Saturno não poupou seus próprios filhos, ele também não poupou os filhos dos outros, e os pais desses, na verdade, tinham, eles mesmos, o hábito de fazer tal oferenda, atendendo contentes ao pedido que lhes era feito, mantendo as crianças satisfeitas na ocasião, para que não morressem aos choros.
Destacamos também que há uma grande diferença entre homicídio e parricídio. Mas homens idosos eram sacrificados a Mercúrio, nas Gálias. Tenho em mãos as lendas táuricas feitas para vossos próprios teatros.
Por que, mesmo nesta profundamente religiosa cidade de piedosos descendentes de Enéias, há um certo Júpiter que em vossos jogos é banhado com sangue humano? É o sangue de um lutador feroz, dizeis. Por isso, o sangue de um homem se torna irrelevante? Ou não é mais infame o sangue porque corre das veias de um homem mau? De qualquer modo, é sangue derramado até a morte.
Ó Júpiter, vós soi um Cristão, e de fato, por vossa crueldade, digno filho de vosso pai! Mas com respeito à morte de uma criança, como se não interessasse se fosse cometido para um sagrado culto, ou simplesmente por um impulso próprio (embora haja uma grande diferença, como dissemos, entre parricídio e homicídio), me voltarei para o povo em geral.
A quantos - pensai nisso - desses aglomerados de pessoas investindo em busca de sangue Cristão, a quantos, mesmo, de vossos governantes, notáveis por sua justiça para convosco e por suas severas medidas para conosco, posso acusar perante sua consciência do pecado de condenar sua descendência à morte? Se há alguma diferença no tipo de assassinato, a forma mais cruel é certamente matar por afogamento ou exposição ao frio, à fome e aos cães. Uma costume mais civilizado tem sempre preferido a morte pela espada.
Em nosso caso, para os cristãos, a morte foi de uma vez por todas proibida. Não podemos nem mesmo destruir o feto no útero, porque, mesmo então, o ser humano retira sangue de outras partes de seu corpo para sua subsistência. Impedir um nascimento é simplesmente uma forma mais rápida de matar um homem, não importando se mata a vida de quem já nasceu, ou põe fim a de quem está para nascer. Esse é um homem que está se formando, pois tendes o fruto já em sua semente.
Com relação a alimentos de sangue e de outros tão macabros pratos - Eu não estou seguro onde li isto, em Heródoto, penso - o sangue tirado dos braços e bebido por ambas as partes, constituía um aval ao tratado entre algumas nações. Não estou certo se foi assim bebido no tempo de Catilina. Dizem, também, que entre algumas tribos citas os amigos são comidos por seus amigos.
Mas estou indo longe demais de casa. Atualmente, mesmo entre vós, o sangue consagrado a Bellona, sangue retirado da coxa perfurada e então partilhada, sela a iniciação aos ritos daquela divindade.
Que dizer daqueles, também, que nos espetáculos dos gladiadores, para a cura da epilepsia, bebem com gananciosa sede o sangue dos criminosos mortos na arena, assim que corre fresco de seus ferimentos, apressando-se para chegarem aos que lhes pertencem?
E daqueles, também, que fazem alimentos no sangue de feras selvagens no lugar dos combates - que têm agudo apetite por ursos e veados? Na luta, esse urso foi molhado com o sangue do homem dilacerado por ele; aquele veado rolou no sangue do gladiador ferido pelas suas chifradas.
As entranhas das próprias feras, embora misturadas com indigestas vísceras humanas, são muito procuradas. E de vossos homens disputando carne nutrida por carne humana? Se vós partilhais de alimentos como esses, em que vossos repastos diferem daqueles de que acusais a nós, cristãos? Aqueles que, com luxúria selvagem, disputam corpos humanos, cometem menor mal porque devoram os vivos?
Estão menos contaminados do sangue humano porque degustam aquilo que está para se tornar sangue? Eles se alimentam, isto é evidente, não tanto de crianças, como de adultos. Ruborizai-vos por vossos vis costumes perante os cristãos, que não têm sequer o sangue de animais entre seus alimentos, alimentos que são simples e naturais, que se abstêm de animais estrangulados ou que morrem de morte natural.
E isso pela única razão de que eles não querem se contaminar, nem mesmo de sangue contido nas vísceras. Para encerrar o assunto com um simples exemplo, vós tentais os cristãos com lingüiças de sangue, exatamente porque estais perfeitamente cientes de que assim tentais fazê-los transgredir o hábito que eles consideram ilegal. E como é irracional acreditar que aqueles sobre os quais bem sabeis que olham com horror a idéia de beber o sangue de bois, estejam ansiosos por sangue de homens. Isso a não ser que vós tenhais saboreado o sangue humano e o achastes mais gostoso!
Sim, realmente, eis aqui um teste que podereis aplicar para descobrir os cristãos, bem como a panela e o censor. Eles poderiam ser testados pelo seu apetite por sangue humano, tanto quanto por sua recusa de oferecer sacrifícios. E assim como poder-se-ia afirmar serem cristãos por sua recusa de beber sangue e sua recusa de oferecer sacrifícios, não haveria necessidade de sangue de homens, tão solicitado como é nas torturas e na condenação dos prisioneiros cristãos. Ora, quem se entrega mais ao crime de incesto do que aqueles que seguem as instruções do próprio Júpiter?
Césio nos diz que os persas mantêm relação carnal ilícita com suas mães. Os macedônios, igualmente, são suspeitos do mesmo; porque ouvindo pela primeira vez a tragédia de Édipo, eles coroaram com mirto o incesto, com exclamações em sua língua.
Ainda atualmente, reflitam quantas oportunidades existem para erros que vos levem a uniões incestuosas - vosso promíscuo relaxamento fornece essas oportunidades. Antes de tudo, abandonais vossas crianças que podem ser levadas por qualquer transeunte compadecido, para os quais elas são totalmente desconhecidas; ou as entregais para serem adotados por aqueles que podem cumprir melhor para elas o papel de pais.
Bem, com algum tempo toda a memória do parentesco alienado pode ser esquecida; e quando se faz um erro, a transmissão do incesto poderá até ocorrer - o parentesco e o crime caminhando juntos. Pois, mais tarde, onde estejais, em casa ou fora, nos mares - vossa luxúria está à vossa disposição, com indulgência geral, ou mesmo com uma menor indulgência, e podeis facilmente, e não propositadamente, procriar em algum lugar uma criança, de modo que dessa maneira um parente lançado na corrente da vida poderá vir a ter relação carnal com aqueles que são de sua própria carne, sem ter noção que está ocorrendo incesto no caso.
Uma castidade perseverante e firme nos tem protegido de algo assim, pois, resguardando-nos, como fazemos, de adultérios e todas as infidelidades após o matrimônio, não estamos expostos a infortúnios incestuosos.
Alguns de nós - tornando o assunto ainda mais seguro - nos abstemos inteiramente do pecado sensual, pela continência virginal; mesmos meninos nossos tomam tal decisão quando ficam adultos. Se tiverdes notícia de que tais pecados que mencionei existem entre vós, examinem e vejam que eles não existem entre os cristãos.
Os mesmos olhos poderão constatar ambos os fatos. Mas as duas cegueiras caminham juntas. Aqueles que não vêem o que acontece, pensam que vêem o que não acontece. Demonstrarei como ocorre assim em qualquer assunto. Mas, por enquanto deixai-me falar de assuntos que são mais importantes. »

O que você destaca neste texto?
Como ele serviu para sua espiritualidade?










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