domingo, 25 de fevereiro de 2024

249 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Décimo Segundo (Capítulos 15 - 26).

 




249

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Décimo Segundo (Capítulos 15 - 26)

 


 

O livro XII fala do nascimento eterno do Verbo e termina com a Oração que resume a sua fé na Trindade, Pai, Filho e Espírito Santo, e com a súplica para que Deus conserve a sua fé. São 57 capítulos.

 

Capítulo 15.

1.      O povo de Israel nasce para ser feito. Pelo fato de se dizer que nasceu, não se deve entender que não tenha sido feito, pois é filho por adoção, não por geração. Não é filho por natureza, mas porque recebeu esse nome.

2.      Embora esteja escrito a seu respeito primogênito meu, é grande a diferença entre meu Filho dileto e filho primogênito meu.

3.      Onde há natividade, aí está Meu Filho dileto. Quando se trata de eleição dentre as nações, e a adoção vem da vontade, aí se diz: filho primogênito meu. Aqui, a palavra se refere ao primogênito, lá, ao Filho.

4.      Na natividade, Filho é, em primeiro lugar, seu e, por isso, dileto. Na eleição, é, em primeiro lugar, primogênito, depois é seu. Porque foi adotado como Filho entre todos os povos, é próprio de Israel ser primogênito.

5.      Já ao Filho único, que nasceu como Deus, é próprio ser Filho. Não há verdadeira e perfeita natividade, onde a geração é apenas atribuída. Não há dúvida de que aquele povo que nasceu como filho tenha sido feito filho. Porque se fez o que não era, e porque dele foi dito que nasceu como filho, porque foi feito filho, não se trata de verdadeira natividade, visto que, antes de nascer, era outra coisa.

6.      Por isso não era filho antes de nascer, isto é, antes que fosse feito filho. O filho retirado dentre os povos é mais um povo do que um filho, não é verdadeiro filho, visto que não foi sempre filho.

7.      Ao contrário, o Deus Unigênito nem existiu em tempo algum sem ser Filho, nem foi coisa alguma antes de ser Filho. Como é sempre Filho, não se pode entender que não tenha existido em algum tempo.

 

Capítulo 16.

8.      Os homens, quando nascem, não existiam no tempo, primeiro, porque todos nascem daqueles que não existiam antes. Embora cada um dos que nascem tenha na sua origem alguém que existia, este mesmo do qual ele nasce não existia antes de ter nascido.

9.      Além disso, aquele que nasce nasceu depois de não ter existido, porque antes que nascesse já existia tempo, pois, tendo nascido hoje, não existia ontem.

10.  Começou a ser a partir do que não era. Vê-se claramente que o que hoje nasce não existia ontem. E assim, seu nascimento, pelo qual existe, vem depois do tempo no qual não existia. Porque é forçoso que ontem venha primeiro e depois venha hoje, deve ter havido um tempo em que não tenha existido.

11.  Isto é comum à origem da existência humana. Tudo teve seu início, porque antes não existia. Isto acontece em primeiro lugar, como ensinamos, em relação ao tempo, em seguida em relação à causa.

12.  Quanto ao tempo, não há dúvida de que aquilo que agora começa a ser antes não existia; quanto à causa, porque consta que sua existência não é devida a uma causa.

13.  Estuda todas as causas das origens e volta tua inteligência para o que é anterior: nada encontrarás que tenha começado por uma causa.

14.  Tudo é criado para ser o que é pela força de Deus, não nasce de outra coisa. Pertence à natureza de cada gênero de seres, por esta mesma sucessão, não ter existido e começar a ser, pois existem depois do tempo e no tempo.

15.  Como todas as coisas começaram a existir depois do tempo, recebem seu princípio daquilo que antes não existia, pois nascem dos que em algum tempo não existiam.

16.  O próprio pai do gênero humano, Adão, saiu da terra, que veio do nada, e depois do tempo, isto é, depois do céu, da terra, do dia, do sol, da lua e dos astros. Não teve origem pelo nascimento e começou a existir depois de um tempo em que não existia.

Capítulo 17.

17.  Como não existiu tempo algum anterior ao Deus Unigênito, não se pode admitir que, em algum tempo, não tenha existido, pois Ele mesmo é anterior a algum tempo.

18.  Além disso, não ter existido já se refere ao tempo e, portanto, o tempo não começaria a existir depois dele, mas Ele mesmo teria começado a ser depois do tempo, pois se não existisse antes do tempo anterior ao seu nascimento, este tempo em que não existia seria anterior a Ele.

19.  Em seguida, não se pode entender que o que nasceu daquele que é tenha nascido daquele que não foi, porque Aquele que é a causa do seu ser, e o não ser não pode ser origem do seu nascimento.

20.  Portanto, se Ele não existe no tempo, de tal maneira que tenha deixado de existir, e se também não está no Pai, isto é, no Criador, subsistindo a partir do nada, então não é possível que tenha nascido do nada, nem que não tenha existido antes de nascer.

 

Capítulo 18.

21.  Bem sei que muitos deles têm a mente obscurecida pela impiedade. Sua mente não entende o mistério de Deus e, dominada pelo espírito adverso, simulando professar a verdadeira religião, são levados a caluniar a Deus com furor.

22.  Costumam encher os ouvidos dos mais simples, dizendo: Nós dizemos que o Filho sempre existiu e que nada lhe faltou em tempo algum. Ensinamos que não nasceu porque sempre existiu, porque, em conformidade com o senso comum humano, o que sempre existiu não pode ter nascido, já que a causa de nascer é que venha a existir o que não existia, e o nascimento é o começo da existência do que não era.

23.  Acrescentam ainda esta sentença muito arguta e agradável aos ouvidos: Se nasceu, começou a ser, se começou a ser, não era e, se não era, não se aceita que tenha sido.

24.  Por isso, defendem estar de acordo com a fé sua interpretação, segundo a qual: Não existia antes de nascer; porque o que não existia nasceu para existir, pois não existia. O que existia não precisou nascer, já que nasceu para existir, porque não existia.

 

Capítulo 19.

25.  Em primeiro lugar seria necessário que os homens, que a tudo preferem o conhecimento da ciência religiosa das realidades divinas, quando se mostra a verdade da pregação evangélica e apostólica, rejeitassem as tortuosas questões de uma filosofia astuciosa, e seguissem a fé que tem seu fundamento em Deus; porque o sofisma da interrogação silogística deixa, facilmente, desprotegida a fé de uma inteligência fraca.

26.  A proposição capciosa apresentada em forma de interrogação pode privar de todo o sentido uma resposta simples e condizente com a pergunta, de sorte que aquilo que se perde pela afirmação já não será sentido pela consciência.

27.  Pois o que estaria mais de acordo com a interrogação de quem pergunta se algo existe antes de nascer, do que dizer que não existia antes de nascer?

28.  Nem pela natureza, nem pela necessidade o que é deve nascer, pois nascer é necessário somente para que algo exista e não porque já existe.

29.  Se isto for aceito por nós, porque temos razões para concedê-lo, ficaremos privados da consciência da fé e, já capturados, concordaremos com os ensinamentos ímpios e estranhos.

 

Capítulo 20.

30.  Prevendo isso, o Santo Apóstolo Paulo, como muitas vezes já demonstramos, nos adverte dizendo: Tomai cuidado para que ninguém vos escravize por vãs e enganosas especulações da filosofia, segundo a tradição dos homens, segundo os elementos do mundo, e não segundo o Cristo, no qual habita corporalmente toda a plenitude da divindade (Cl 2,8-9).

31.  É preciso precaver-se contra a filosofia, e as tradições humanas não devem ser apenas evitadas, mas refutadas. Não se pode permitir que, além de enganar, consigam convencer porque, pregando nós a Cristo, virtude de Deus e sabedoria de Deus, convém-nos não tanto fugir das doutrinas humanas quanto repeli-las.

32.  Aos mais simples, para que não se deixem espoliar, será preciso protegê-los e instruí-los. Já que a sabedoria tudo pode e Deus pode fazer tudo sabiamente, não faltará força à sua razão nem razão à sua força.

33.  É necessário que aqueles que pregam Cristo ao mundo oponham às doutrinas irreligiosas e imperfeitas do mundo a ciência da sábia onipotência, conforme as palavras do bem-aventurado Apóstolo: Nossas armas não são carnais, mas são o poder de Deus para destruir fortalezas. Destroem os raciocínios presunçosos e todo poder altivo que se levanta contra o conhecimento de Deus (2Cor 10,4-5).

34.  O Apóstolo não permite que a fé se veja desarmada e destituída de razão, porque, embora seja importantíssima para a salvação, se não for instruída pela doutrina, oferecerá, na verdade, um refúgio seguro contra a adversidade, mas não conservará sempre a firmeza para resistir.

35.  Será o que é o acampamento para os fracos que, depois da fuga, já não têm a impávida coragem dos invasores. Por isso, devem ser esmagadas as insolentes afirmações contra Deus, destruídos os falazes argumentos e subjugados os espíritos que se elevam com impiedade, não por meio de armas carnais, mas espirituais, não pela doutrina terrena, mas pela sabedoria celeste, de tal modo que o conhecimento das coisas celestes seja tão diferente das invenções terrenas quanto é diferente o divino do humano.

 

Capítulo 21.

36.  Cesse, portanto, esta pérfida solicitude e não julgue que, pele fato de não ser entendido por ela o que somente nós entendemos e cremos corretamente, nós o negamos.

37.  Quando afirmamos ter o Filho nascido, não professamos que não tenha nascido, pois não é a mesma coisa não ter nascido e nascer. Não ter nascido significa não proceder de ninguém, nascer significa vir de outro.

38.  É diferente ser sempre eterno, e ser co-eterno com o Pai, isto é, o Princípio. Onde está o Pai, como princípio, aí há nascimento, e onde o princípio é eterno, há eternidade de nascimento. porque, como o nascimento vem do que é o seu princípio, o nascimento eterno vem do Princípio eterno.

39.  Tudo o que é, sempre, também é eterno. Mas nem tudo o que é eterno é também não nascido, porque o que nasce do eterno é eterno porque nasceu, porém, o que não nasceu não nasceu eternamente. Se, porém, o que nasceu do eterno não nasceu como eterno, o Pai não será o princípio eterno.

40.  Se o que nasceu do Pai eterno não possui a eternidade, também Aquele que é o seu princípio não a possui, porque o que é infinito para o que gera também é infinito para o que nasce.

41.  Nem a razão nem o bom senso admitem um meio termo entre a natividade de Deus Filho e a geração de Deus Pai, porque na geração está o nascimento e, no nascimento, a geração.

42.  Ambos existem inseparavelmente, porque um não existe sem o outro. Portanto, o que não tem consistência a não ser a partir de ambos não pode permanecer senão em ambos, já que um não pode existir sem o outro de modo algum, e não se pode considerar um independentemente do outro.

 

Capítulo 22.

43.  Mas, afirmará alguém, incapaz de entender o mistério: o que nasceu não existia antes, porque para isto nasceu: para ser.

 

Capítulo 23.

44.  Quem duvida, na verdade, de que, no que se refere às coisas humanas, quem nasceu antes não tenha existido? Mas, uma coisa é nascer daquele que não era, outra coisa é nascer daquele que sempre é.

45.  Toda infância, que antes não era, começa a existir do tempo. E ainda, cresce, a partir dela, na puerícia, depois até a adolescência, e chega a tornar-se pai. E aquele que chegou à adolescência, vindo da puerícia, à qual chegou vindo da primeira infância, não foi sempre pai. Portanto, aquele que nem sempre foi pai não gerou sempre.

46.  Onde, porém, o Pai existe sempre, o Filho também existe sempre. Se tens no pensamento ou no coração um Deus, e se ao mistério do seu conhecimento é próprio ser Pai, mas não ser sempre Pai do Filho gerado, também sabes e conheces que Aquele que foi gerado nem sempre é Filho.

47.  Porém, se é próprio do Pai ser sempre Pai, forçoso é que seja sempre próprio do Filho ser Filho. E como se ajustará às nossas palavras e à nossa inteligência que Aquele a quem é próprio sempre ter nascido não tenha existido antes de nascer?

 

Capítulo 24.

48.  O Deus Unigênito, que tem em si a forma e a imagem de Deus invisível, pela plenitude da verdadeira divindade que tem em si, se iguala ao Pai em tudo que é próprio de Deus, pois, como acima ensinamos, por seu poder e dignidade Ele, como o Pai, também é digno de honra e é poderoso.

49.  Como o Pai existe sempre, também o Filho, por ser Filho, existe sempre em comunhão com o Pai. Conforme o que foi dito a Moisés: Enviou-me a vós Aquele que é (Ex 3, 14), não há dúvida de que é próprio de Deus ser, porque não se pode dizer nem entender que o que é não seja.

50.  Ser e não ser são contrários, e estes significados diferentes não podem unir-se em um só e o mesmo, porque, existindo um, não há o outro. Por conseguinte, onde há ser, não podemos pensar nem dizer que não haja nada.

51.  Quando nosso pensamento retrocede até as origens e procura compreender o que é Deus, o próprio fato de ser é anterior a tudo o que se possa pensar, por mais que o pensamento retroceda no tempo ou no espaço, porque o que é infinito em Deus sempre se esquiva ao nosso espírito, que tenta abranger o infinito, e nosso esforço para recuar até o princípio não consegue perceber nada anterior a isto: Deus sempre é.

52.  Quando tentamos avançar para a eternidade, só nos vem ao encontro, para que se possa entender a Deus, o fato de que Ele existe sempre.

53.  Os Evangelhos nos ensinam o mesmo que é dito por Moisés a respeito de Deus, e o bom senso não permite entender nada de diferente. É próprio do Deus Unigênito o ser, porque no princípio era o Verbo, e estava junto de Deus, e era a luz verdadeira. E o Deus Unigênito está no seio do Pai, e Jesus Cristo é Deus sobre todas as coisas.

 

Capítulo 25.

54.  O Verbo era e é porque procede daquele que sempre é o que é. Proceder dele, isto é, do Pai, é nascer dele. E ser sempre, vindo daquele que sempre é, significa eternidade, que não vem de si mesma, mas do eterno.

55.  Do que é eterno, não vem nada que não seja eterno. Se não é eterno, também o Pai, que é o princípio da sua geração, não é eterno. É próprio do Pai ser sempre Pai e é próprio do Filho ser sempre Filho. Como ser significa a eternidade, é próprio dele ser eterno, pela mesma razão pela qual Ele é aquilo que lhe é próprio.

56.  Ninguém tem dúvida de que a geração indica a natividade, e a natividade não indica o que não é, mas sim o que é. Também não se pode duvidar de que quem já existia não nasce, porque não haveria razão para que nascesse Aquele que por si já existe desde sempre.

57.  O Deus Unigênito que também é Sabedoria e Poder de Deus e é o Verbo de Deus, tendo nascido, dá testemunho de que o Pai é seu princípio. Por ter nascido antes dos tempos eternos, com seu nascimento se antecipa a todo o entendimento.

58.  Por isso, não se pode dizer que não existia antes de nascer. Se pudéssemos dizer que não existia antes de nascer, então, a nossa razão e o tempo seriam anteriores ao seu nascimento porque tudo o que não existiu em algum momento está submetido ao tempo e à nossa razão, justamente pelo próprio fato de não ter existido, visto que não ter existido já se refere a um período de tempo.

59.  Aquele, porém, que é desde a eternidade, e sempre existiu, nem existe sem nascer, nem deixou de ser, já que ter existido sempre significa transcender o tempo, e ter nascido significa ser Filho.

 

Capítulo 26.

60.  Professamos, sim, que o Deus Unigênito nasceu, mas nasceu antes dos tempos eternos porque é necessário dar testemunho daquilo a que nos obrigam as palavras dos Apóstolos e dos Profetas.

61.  Contudo, a mente humana não apreende a ideia da natividade intemporal, porque o poder ter nascido antes de todos os tempos não se ajusta às realidades terrenas. Mas como é justamente isso o que nós pregamos e afirmamos, como podemos dizer, segundo a mesma doutrina, que não existia antes de nascer, se, segundo o Apóstolo, o Deus Unigênito existe antes dos tempos eternos? (Cf. 2Tm 1,9; Tt 1,2.) A afirmação de que tenha nascido antes dos tempos eternos não é uma afirmação da razão humana, mas é profissão de fé prudente, porque a natividade vem de um princípio, e o que ultrapassa os tempos é eterno.

62.  A inteligência terrena não apreende o que nasceu antes dos tempos eternos. Por isso exaltamos com ímpia vontade a capacidade da razão humana quando afirmamos, à semelhança do que ocorre no mundo, que não existia antes de ter nascido porque bem além da capacidade de compreensão da mente humana e da inteligência do mundo, nasce o que é eterno. Pois é eterno o que ultrapassa o tempo.

 

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