LIVRO PRIMEIRO
Capítulo 1
1. Procurando
investigar o sentido propriamente religioso da vida humana que, ou provém da
natureza, ou é descoberto pelas investigações laboriosas dos sábios, para obter
o que é concedido ao conhecimento por dom divino, encontrei muitas coisas que,
segundo a opinião corrente, parecem tornar a vida mais útil e desejável.
2. Constatei,
principalmente, que o ócio e a opulência são tidos pelos mortais como os
melhores e mais importantes de todos os bens. Um sem a outra seria, antes,
causa de mal do que de bem, pois o ócio na pobreza pode ser considerado quase
como um exílio da vida, e a inquietação na opulência traz tanto mais
calamidades quanto, com maior preocupação, carece daquilo que, mais do que
tudo, é desejável e ambicionado.
3. Embora
a opulência traga consigo os maiores e melhores encantos da vida, não parece
estar muito longe dos deleites dos animais. Estes, de fato, vagando pelos
bosques repletos de alimentos, sossegados e sem trabalho, encontram a saciedade
nos campos. Se o melhor e o mais importante nesta vida fosse descansar e ter
fartura, seria preciso que tal gênero de vida fosse comum a nós e a todos os
animais privados da razão.
4. Para
estes, a própria natureza, com imensa prodigalidade, além de segurança, livre
de cuidados, fornece com facilidade o necessário.
Capítulo 2
5. Tenho
para mim que a maior parte dos mortais considera absurdo e animal este modo de
viver e o rejeita. Censuram-no nos outros porque, levados pela própria
natureza, julgam indigno do homem imaginar que tenha nascido, como os
irracionais, apenas para o ventre e a inércia, não tendo sidos trazidos a esta
vida para a realização de grandes feitos ou ótimas artes.
6. A
vida, pelo contrário, deve ter sido concedida em vista de algum proveito
eterno, porque não se poderia atribuir ao dom de Deus uma existência atribulada
por angústias, afligida por tantas moléstias e pela ignorância de si mesma e de
seu interior, desde a meninice até se consumar nos achaques da velhice.
7. Por
isso preferem exercer as obras e virtudes da paciência, da continência e da
benignidade, entendendo que viver bem consiste em bem agir e bem compreender.
Não pensam ter sido dada a vida pelo Deus imortal apenas para terminar na
morte, pois compreendem não provir do bom Doador a grande alegria de viver
somente para o tristíssimo medo de morrer.
Capítulo
3
8. Não
considero inepto nem inútil o modo de pensar dos que procuram conservar a
consciência livre de toda culpa e, com prudência, dar um sentido a todas as
dificuldades da vida humana, ou deliberadamente pretendem evitá-las, ou
pacientemente suportá-las.
9. Contudo,
não me parecem bastante idôneos para ensinar como viver bem e com 15
felicidade, pois apenas estabelecem os preceitos comuns das doutrinas
condizentes com o espírito humano.
10. Não
compreender estes ensinamentos é coisa de animal, não exercer o que se
compreendeu parece uma loucura que ultrapassa a ferocidade do animal.
Apressese, pois, a alma, não apenas em agir assim, porque se não o fizesse
estaria cheia de culpa e de sofrimento, mas em conhecer a Deus, Pai de tão
grande dom, a quem se deve entregar totalmente, por reconhecer que servi-lo é
nobilitante, nele colocando toda a esperança, nele descansando entre as
calamidades das preocupações presentes, como em porto seguríssimo e familiar.
11. Por
isso, meu espírito ardia de intenso desejo, não só de compreendê-lo, mas também
de conhecê-lo.
Capítulo
4
12. Muitos
afirmavam a existência de numerosas famílias de pretensos deuses e, julgando
haver na natureza divina o sexo masculino e o feminino, sustentavam haver
nascimentos e sucessões de deuses. Pregavam a existência de deuses, uns
maiores, outros menores, diferentes quanto ao poder.
13. Alguns
afirmavam não haver absolutamente um Deus e veneravam apenas a natureza
constituída por movimentos e encontros fortuitos. A maioria deles, em
conformidade com a opinião popular, dizia que Deus existe, sendo, no entanto, descuidado
e negligente quanto às coisas humanas. Outros ainda adoravam os corpos e formas
visíveis das criaturas, nos elementos terrenos e celestes.
14. Por
fim, colocavam seus deuses em imagens de homens, animais, feras, aves ou
serpentes e encerravam em metais, pedras ou troncos de árvores o Senhor do
universo e Pai da imensidão. Não mereciam que se cresse serem mestres da
verdade aqueles que, seguindo ridículas e irreligiosas ideias, dissentiam, eles
próprios, entre si, por suas vãs opiniões.
15. No
meio de tudo isso, meu espírito solícito, esforçando-se por seguir o caminho
útil e necessário para o conhecimento de seu Senhor, não considerava digno de
Deus o descaso pelas coisas criadas por Ele e julgava também não competir à
natureza forte e incorrupta o sexo dos deuses e as sucessões de progenitores e
nascidos.
16. Também
tinha por certo que, ao Divino e Eterno, competia ser somente Um e sem
diferença, porque, sendo Ele mesmo o fundamento de seu próprio ser, não poderia
deixar fora dele nada que fosse melhor do que aquilo que lhe é próprio.
17. A
onipotência e a eternidade não poderiam estar senão em um mesmo ser, pois não
teria sentido existir, na onipotência, o mais forte e o mais fraco e, na
eternidade, o antes e o depois, visto que em Deus não se deve venerar nada que
não seja eterno e poderoso.
Capítulo
5
18. Revolvendo
no espírito estas e muitas outras coisas, deparei com aqueles livros escritos
por Moisés e os Profetas, que transmitiam a religião dos hebreus. Neles, o
próprio Deus criador, dando testemunho de si mesmo, assim se expressa: Eu sou o
que sou.[...] Isto dirás aos filhos de Israel: Enviou-me a vós aquele que é (Ex
3,14). Fiquei cheio de admiração por tão perfeita definição de Deus que, de
modo inteiramente apto, dava à inteligência humana o conhecimento da natureza
divina e incompreensível, pois entende-se que nada é mais próprio a Deus do que
ser.
19. O
que é, não se diz de alguém a quem falta algo, nem de quem teve começo, mas
daquele que, com o poder da incorrupta beatitude, é perpétuo e não pode nem
poderia, em algum tempo, não ser. O Ser divino não está sujeito à extinção nem
ao começo e, como nada falta à eternidade de Deus, somente dele se deve afirmar
a incorrupta eternidade.
Capítulo
6
20. Com
esta definição de sua infinidade, concorda aquela palavra: Eu sou o que sou.
Para nós, porém, é ainda necessário entender a obra de sua magnificência e
poder.
21. Sendo-lhe
próprio o ser, pois permanece sempre e não começa de modo algum, escuta-se a
palavra digna do Deus eterno e incorrupto: O que tem o céu nas palmas e a terra
no côncavo da mão (Is 40,12), e também: O céu é meu trono, e a terra, escabelo
de meus pés. Que casa me edificareis, ou qual o lugar de meu repouso? Não foi a
minha mão que fez isto? (Is 66,1-2). O céu inteiro está na palma de Deus e toda
a terra está contida no côncavo da sua mão.
22. Quanto
à palavra de Deus, por mais que se aprofunde sua compreensão, seu sentido
íntimo contém sempre mais do que aquilo que o ouvido percebe. Pois o céu,
fechado nas palmas, é também o trono de Deus, e a terra, contida no côncavo da
mão, é igualmente o escabelo de seus pés. Trono e escabelo não se podem
entender como uma extensão da forma do corpo, segundo o modo de assentar-se, já
que aquilo que é para si trono e escabelo é também aquilo que a infinidade
poderosa encerra segurando na palma da mão. Deve-se reconhecer, nestas
comparações tiradas das criaturas, que Deus está dentro e fora de todas as
coisas, que transcende e está no mais íntimo de tudo e mostra o seu poder sobre
a natureza exterior, contendo-a na mão.
23. O
trono e o escabelo, postos como base, manifestam que as coisas exteriores estão
submetidas Àquele que está no interior, pois Deus está dentro das coisas
exteriores e encerra as interiores a partir do exterior. Ele mesmo contém tudo
o que está dentro e fora e, como é infinito, não está longe de nada, e nada
deixa de estar dentro daquele que é infinito.
24. Demorando-se
nestas afirmações tão religiosas, com muito empenho, meu espírito se deleitava.
Julgava que nenhum pensamento era digno de Deus, por estar Ele além da
compreensão das coisas. Quanto mais a mente finita se dilata para além dos
limites do pensamento, mais a infinidade da desmedida eternidade excede a
infinidade do que procura atingi-la.
25. Aquilo
que piedosamente chegamos a entender, o Profeta confirmava claramente ao dizer:
Aonde irei longe do teu espírito ou fugirei de tua face? Se subo aos céus, lá
estás; se desço aos infernos, ali te encontro. Se tomasse minhas asas, antes da
luz, e fosse habitar nos confins dos mares, também ali tua mão me conduziria e
tua destra me seguraria (Sl 138,7-10).
26. Nada
existe sem Deus e não há lugar algum em que Deus não esteja. Nos céus está, no
inferno está, além dos mares está. Está dentro do que é interior, transcende o
que é exterior. Tal como contém, assim é contido. Não está em coisa alguma sem
que esteja em todas.
O
que você destaca no texto e como ele serve para sua espiritualidade?