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História Eclesiástica de Eusébio de
Cesareia
Livro V
– Prólogo e Capítulo 1
Texto Bíblico: Hebreus 12.4
Prólogo
I -
Quantos foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela religião na
Gália
|
Prólogo
1.
Assim pois, Sotero, o bispo da
igreja de Roma, morreu depois de governar até seu oitavo ano, e foi sucedido por
Eleutério, décimo segundo a partir dos apóstolos. Corria o décimo sétimo ano do
imperador Antonino Vero. Neste tempo
reavivou-se com maior violência em algumas partes da terra a perseguição contra
nós e, pelos ataques dos habitantes das cidades, pode-se conjeturar que foram milhares os mártires que se
distinguiram se levamos em conta o ocorrido em uma só nação, que por ser
realmente digno de lembrança imorredoura, foi transmitido por escrito à
posteridade.
2.
O escrito inteiro do completíssimo
relato sobre estes fatos consta de nossa Recompilação de Martírios, que compreende uma
explicação não apenas narrativa, mas também instrutiva. Na presente obra
tomarei e citarei ao menos o que aquela contenha sobre o tema que nos ocupa.
3.
Outros, ao fazerem as narrativas
históricas, não transmitem por escrito mais do que vitórias em guerras, troféus de
inimigos, façanhas de generais e valentias de soldados manchados de sangue e de
mortes inumeráveis por causa dos filhos, da pátria e demais bens.
4.
Nossa obra, por outro lado, que descreve o modo de vida
segundo Deus, gravará em lápides eternas as
mais pacíficas lutas pela própria paz da alma e o nome dos que nelas se
comportaram varonilmente, mais pela verdade do
que pela terra pátria, e mais pela religião do que pelos seres queridos, e se proclamará publicamente, para eterna memória, a
resistência dos atletas da fé, sua
bravura, curtida em mil sofrimentos, os troféus conquistados contra os
demônios, as vitórias sobre os adversários invisíveis e, depois de tudo, suas
coroas.
I - Quantos
foram e de que modo lutaram nos tempos de Vero pela religião na Gália
1.
Foi pois a Gália o país em que se preparou o estádio, lugar
dos fatos mencionados. Duas metrópoles eram
célebres por sua distinção e por sua importância entre as outras: Lion e
Viena. Ambas são atravessadas pelo Ródano, que flui ao longo de todo o país com
grande caudal.
2.
As ilustríssimas igrejas daquela região transmitiram às
igrejas da Ásia e Frígia[1] a carta sobre
os mártires, e narram o ocorrido da seguinte maneira. Citarei suas
próprias palavras.
3.
"Os servos de Cristo que peregrinam em Viena e em Lion
da Gália, aos irmãos que na Ásia e na Frígia
compartilham conosco a mesma fé e a mesma esperança da redenção: paz, graça e glória por parte de Deus Pai e de
Jesus Cristo, nosso Senhor."
4.
Depois, em continuação, seguem
dizendo outras coisas como prólogo e dão início a seu relato nos seguintes termos:
"Descrever pois, com justiça a magnitude desta tribulação daqui, o
grau de irritação dos pagãos contra os santos e o número de sofrimentos que os bem-aventurados mártires suportaram, nem está em
nossa capacidade nem sequer é possível encerrar em um escrito.
5.
E ocorreu que o adversário[2] atacou com todas as suas forças, como prelúdio já do descaramento
de sua vinda iminente. Meteu-se por todos os lados, acostumando os seus e exercitando-os de antemão contra os servos de
Deus, de forma que não só nos
expulsam das casas, dos banhos e das praças, mas que inclusive proíbem que algum de nós deixe-se ver de qualquer forma
em qualquer lugar que seja.
6.
Mas a graça de Deus opunha-se a sua
estratégia: retinha os fracos e apresentava à frente uma formação de sólidas
colunas, capazes de atrair sobre si, com sua paciência, todo o ímpeto do
malvado. Estes marcharam a seu encontro,
suportando toda sorte de injúrias e castigos[3]. Considerando
pouco o que era muito, apressavam
seu passo para Cristo e mostravam realmente que os sofrimentos do
tempo presente não são comparáveis com a glória que está para ser revelada em
nós[4].
7.
Em primeiro lugar suportaram
generosamente os assaltos massivos de toda a plebe: insultos,
golpes, sacudidas, rapinas, apedrejamentos, passagem por apertos e tudo quanto fosse do gosto de uma plebe enfurecida contra
pessoas que considera odiosas e inimigas.
8.
E depois de serem conduzidos a praça pública e de serem
julgados pelo tribuno e pelos magistrados da cidade em presença de toda a
multidão, foram encerrados no cárcere até a chegada do governador.
9. Mais tarde
conduziram-nos ante o governador. Como estes usou de toda sua crueldade contra
nós, um dos irmãos, Vetio Epágato, que possuía em plenitude o amor a Deus e ao próximo e cuja conduta tinha sido tão
estrita que, sendo ainda jovem,
fez-se merecedor do testemunho do ancião Zacarias, já que havia
caminhado irrepreensivelmente em todos os mandamentos e preceitos do Senhor, diligente em todo serviço ao próximo, com muito
zelo com Deus e fervor de espírito, por ser de tal índole, não suportou
que se procedesse contra nós com um juízo
tão irracional. Fortemente indignado, pediu para ser também ele ouvido e
defendeu, em favor dos irmãos, que entre nós nada há de ateu nem de ímpio.
10.
Os que rodeavam o tribunal passaram
a gritar contra ele - pois era homem importante -, e o
juiz, não tolerando a petição assim proposta por ele, queria unicamente saber
se também era cristão. Como Vetio o confessasse com voz claríssima, também ele foi recebido nas fileiras dos mártires. Foi
chamado consolador[5] dos cristãos,
pois dentro de si tinha o consolador, o Espírito de Zacarias, o que havia mostrado com a plenitude de seu amor achar bom sair
em defesa dos irmãos e expor sua própria vida, porque era e continua sendo genuíno discípulo de Cristo, que vai
atrás do Cordeiro onde quer que este vá.
11.
A partir daqui, os demais se
dividem: aparecem claramente os preparados para dar testemunho, os que com todo
ser ardor completavam a confissão do martírio; mas também se manifestaram os
que não estavam dispostos, destreinados e até fracos, incapazes de agüentar a
tensão de um grande combate. Destes uns dez
abortaram. Grande foi a aflição e imensa a dor que nos causaram e grave
o dano causado ao entusiasmo dos outros que não haviam sido presos com eles e que, apesar de estar sofrendo toda classe
de horrores, contudo, assistiam os mártires e não os abandonaram.
12.
Mas então todos ficamos muito
aterrados ante a incerteza da confissão, não por temor aos castigos, mas porque
víamos como distante o fim e temíamos que alguém sucumbisse.
13.
Mesmo assim, a cada dia detinham os que eram dignos de
completar o número daqueles, tanto que
juntaram todas as pessoas importantes das duas igrejas, graças às quais,
sobretudo, tem importância os assuntos daqui.
14.
Foram presos também alguns pagãos,
criados dos nossos, quando o governador mandou que se buscassem todos os
nossos. Estes, pelas insídias de Satanás, temendo os tormentos que viam padecer
os santos e forçados a isto pelos soldados,
acusaram-nos falsamente de ceias canibais, de promiscuidades edípicas e de tantas outras coisas que para
nós não é lícito nem dizer nem pensar,
nem mesmo crer que tais coisas tenham ocorrido entre os homens.
15. Quando
este rumor se espalhou, todos se revoltaram como feras contra nós, tanto que, se a princípio alguns se comportaram
com moderação por amizade, começaram
então a mostrar-se muito hostis e raivosos contra nós. Estava se cumprindo o que dissera nosso Senhor: Virá um
tempo em que todo aquele que
vos matar pensará estar prestando culto a Deus[6].
16.
Desde então os santos mártires suportaram castigos que
excedem a toda descrição, enquanto Satanás
se esforçava para arrancar-lhes também alguma palavra blasfema.
17. Toda a fúria da multidão, do governador e dos soldados abateu-se
transbordante sobre o diácono Santos, de Viena, sobre Maturo, recém-batizado
mas nobre
lutador, sobre Atalo, oriundo de Pérgamo e que sempre havia sido coluna e fundamento dos cristãos daqui, e sobre
Blandina, por meio da qual Cristo demonstrou que o que entre os homens
parece vulgar, disforme e facilmente desprezável, por parte de Deus é
considerado digno de grande glória devido ao
amor a Ele, amor que se mostra na força e que não se vangloria da
aparência.
18.
Efetivamente, enquanto todos nós
estávamos temerosos e sua própria senhora segundo a carne - também ela uma de nossos
mártires combatentes -temíamos que por
fraqueza de seu corpo não tivesse forças para proclamar livremente sua
confissão, Blandina viu-se cheia de uma força tão grande que extenuava e
esgotava aqueles que, em turnos e de todas as maneiras, torturavam-na desde o
amanhecer até o ocaso; eles mesmos confessavam que estavam vencidos, sem nada
poder fazer com ela, e se admiravam de como
podia manter-se com alento estando todo seu corpo dilacerado e aberto, e atestavam que um só tipo de suplício bastaria
para tirar a vida, sem necessidade de tantos e tão terríveis.
19. Mas a bem-aventurada mulher, como nobre atleta, rejuvenescia na confissão,
e
para ela era recuperação de forças, descanso e ausência de dor em meio aos
acontecimentos o dizer: "Sou cristã, e nada de mal é feito entre
nós!"
20. Também Santos suportou nobremente, além de toda medida humana, todos os maus-tratos que
provêm dos homens. Os iníquos esperavam que pela persistência e magnitude dos tormentos ouviriam dele algo indevido, mas
resistiu-lhes com tal firmeza, que não revelou nem seu próprio nome, nem de sua
família, nem da cidade de onde vinha nem se era escravo ou se era livre, mas a
tudo que lhe perguntavam respondia em latim: "Sou cristão!" Em lugar de seu nome, de sua cidade, de sua
família e de tudo, isto é o que confessava
sucessivamente, e nenhuma outra palavra ouviram dele os pagãos.
21. Por esta razão, tanto o governador quanto os torturadores ensandeceram-se de tal maneira
contra ele que, quando já não sabiam o que fazer-lhe, por último aplicaram-lhe placas de cobre em brasa aos
membros mais delicados de seu corpo.
22. Estes certamente
se queimaram, mas ele se manteve inflexível e firme, constante na confissão,
borrifado e fortalecido pela fonte santa da água viva que brota das entranhas
de Cristo[7].
23. Seu corpo atestava o ocorrido: todo ele era uma chaga, todo confusão,
moído e tendo perdido toda forma humana; mas Cristo padecia nele e realizava
grandes glórias anulando o adversário e mostrando, para exemplo dos demais, que
nada há de temível onde está o amor do Pai, nem doloroso onde está a glória de
Cristo.
24. Efetivamente, depois de alguns dias, aqueles malvados começaram novamente a torturar o mártir, pensando que poderiam vencê-lo se, estando suas
carnes
inchadas e inflamadas, lhe aplicassem os mesmos suplícios agora que nem sequer
suportava o toque das mãos, ou então que, morrendo em meio aos tormentos,
infundiria temor aos outros. Mas não somente nada disso aconteceu com ele, mas, contra o que todos pensavam,
recuperou-se, e seu corpo se endireitou entre os tormentos que seguiram
e recobrou sua forma original e o uso dos
membros, de maneira que a segunda tortura foi para ele não um suplício,
mas cura pela graça de Cristo.
25. E Biblida também, uma das que haviam renegado. O diabo já pensava que a havia devorado[8], mas querendo
também condená-la por blasfêmia, conduziu-a à tortura e
a forçava a declarar sobre nós aquelas ímpias calúnias, já seguro de sua
fragilidade e covardia.
26. Mas ela, no tormenta, voltou a si e, por assim dizer, despertou de um sono
profundo. Recordando então, graças àqueles castigos
temporários, o castigo eterno no inferno[9], pôs-se pelo
contrário, a replicar aos detratores e dizia: "Como poderiam estas pessoas
comer uma criança se nem sequer lhes é permitido
comer sangue de animais irracionais?"[10] E desde esse
instante passou a confessar que também ela mesma era cristã, e foi
incorporada à fila dos mártires.
27. Anulados por
Cristo os tormentos dos tiranos por meio da constância dos santos, o diabo pôs-se a imaginar outros recursos,
o encerramento no pior e mais escuro
lugar do cárcere, a distensão dos pés no cepo, separados até o quinto furo, e os demais suplícios que os
funcionários irritados e endiabrados costumavam
infligir aos presos, tanto que no cárcere a maior parte morreu asfixiada, ao menos quando o Senhor quis que assim
morressem, mostrando sua própria glória.
28. Efetivamente,
alguns que haviam sido cruelmente torturados até o ponto de parecer que não poderiam viver ainda que se lhes
desse todo tipo de cuidados, permaneciam no cárcere, desprovidos,
naturalmente, de toda assistência humana; mas fortalecidos pelo Senhor em seus
corpos e em suas almas, animavam e
consolavam os demais. Outros, em compensação, jovens e recém-detidos, cujos corpos não haviam sido torturados
antes, não suportavam o peso do encerramento e morriam lá dentro.
29. O bem-aventurado Potino, a quem fora confiado o ministério do episcopado de Lion, passava já da idade de noventa anos e seu corpo estava fraco. Por
causa desta sua debilidade corporal apenas conseguia
respirar, mas por seu grande desejo do martírio[11], o ardor de
seu espírito devolvia-lhe as forças. Também ele foi
arrastado ao tribunal com o corpo desfazendo-se pela velhice e pela enfermidade, mas com sua alma conservada para que por ela Cristo triunfasse.
30. Levado pelos soldados ante o tribunal com acompanhamento das autoridades da cidade e de toda a plebe gritando-lhe toda classe de injúrias, como se
ele mesmo
fosse o Cristo, deu formoso testemunho.
31. Quando o
governador perguntou-lhe quem era o Deus dos cristãos, disse: "Se fores digno, o conhecerás." Então
arrastaram-no sem cuidados e sofreu diversas feridas; os que estavam perto
faziam-lhe todo tipo de afronta com pés
e mãos, sem o menor respeito por sua idade, e os que estavam distantes atiravam
cada um o que tivesse à mão, e todos criam errar gravemente e ser uns ímpios se omitissem alguma insolência contra
ele, pois pensavam que assim vingavam
seus deuses. Ele, apenas respirando, foi jogado no cárcere, e ao fim de
alguns dias entregou sua alma.
32. Foi então que teve lugar uma grande dispensação de Deus e se manifestou a imensa misericórdia de Jesus, como raramente havia ocorrido na comunidade dos irmãos,
mas muito de acordo com o modo de Cristo.
33. Efetivamente, os
que haviam renegado nas primeiras detenções foram também encarcerados e compartilhavam dos mesmos horrores, já que nesta ocasião
de nada lhes serviu sua apostasia. Os que confessavam o que na verdade eram, eram encerrados como cristãos, sem
nenhuma outra acusação; em compensação, os outros eram presos como
homicidas e impuros e castigavam-nos em dobro do que aos demais[12].
34. E assim os primeiros eram aliviados pela alegria do martírio, pela
esperança do prometido, pelo amor de Cristo e o Espírito do Pai, enquanto que para estes outros, a consciência os atormentava
grandemente, ao ponto de que, ao morrerem, podia-se reconhecer seu
aspecto entre todos.
35. De fato, enquanto uns avançavam prazerosamente, com um misto de glória e graça abundantes em seus rostos, de modo que até suas correntes os
cingiam como esplêndido adorno, como uma noiva ataviada com multicoloridos fios de ouro, e ao mesmo tempo espalhavam o suave
odor de Cristo a ponto de fazer os
outros pensarem que tinham-se ungido com perfumes mundanos, os outros,
pelo contrário, faziam-no sombrios, cabisbaixos, disformes e cheios de rancor,
e como se fosse pouco, até os pagãos tachavam-nos de ignóbeis e covardes: levavam a acusação de homicidas além de terem
perdido seu nome venerabilíssimo,
glorioso e vivificador. Quando os demais viram isto, reafirmaram-se, e os que iam sendo detidos confessavam já sem
vacilação e sem ter um único pensamento de cálculo diabólico."
36. Depois de juntar a isto algumas coisas intermediárias continuam:
"Além disto, os gêneros de morte dos mártires eram muito variados, pois
com flores de toda espécie trançavam uma só coroa para oferecê-la ao Pai, e assim era necessário que aqueles generosos atletas, depois de ter
sustentado uma luta variada e ter vencido em toda a
linha, recebessem a grande coroa da imortalidade[13].
37. Assim pois, Maturo e Santos, assim como Blandina e Atalo, foram conduzidos às feras, ao
local público e para espetáculo comum da inumanidade dos pagãos, pois o dia de luta de feras deu-se precisamente por causa
dos nossos.
38. No anfiteatro, Maturo e Santos passaram novamente por todo tipo de tormentos como se antes não tivessem padecido absolutamente nada, ou melhor, como atletas que
já venceram os adversários em muitos combates e que seguem lutando pela mesma
coroa. De novo sofreram as passadas dos chicotes
que ali eram de costume, os puxões das feras e tudo o que o povo enlouquecido, cada qual de seu lugar, gritava e
ordenava. E como arremate de tudo, a cadeira de ferro, de onde os corpos, ao
serem assados, lançavam ao público um odor de carne queimada.
39. Mas estes, nem com tudo isto recuavam, mas até aumentava-se-lhes o frenesi
querendo vencer a constância daqueles. Mas nem assim
conseguiram ouvir de Santos outra coisa além da frase de confissão que desde o
começo costumava repetir.
40. Assim pois, os mártires, que depois de atravessar o grande combate seguiam
com muita vida foram por fim sacrificados[14], convertidos
naquele dia em espetáculo para o mundo em substituição à variada série de
combates de gladiadores.
41. Blandina, por
outro lado, foi pendurada num madeiro e ficou exposta às feras, que se lançavam sobre ela. Apenas por
vê-la pendendo em forma de cruz e com sua oração contínua, infundia-se
muito ânimo aos outros combatentes, que
neste combate viam com seus olhos corpóreos, através de sua irmã, aquele
que por eles próprios havia sido crucificado. E assim ela persuadia aos que
crêem n'Ele de que todo aquele que padece pela glória de Cristo entra em
comunhão perpétua com o Deus vivo.
42. Por não ter sido tocada então por nenhuma fera, desceram-na do madeiro e de novo levaram-na
ao cárcere, guardando-a para outro combate; assim, depois de vencer em mais lutas, por um lado tornaria implacável a condenação da serpente tortuosa[15], e por outro
animaria seus irmãos; ela. Pequena, frágil e desprezada, mas revestida
do grande e invencível atleta, Cristo, bateria
o adversário em sucessivos combates, e pelo combate seria cingida com a
coroa da incorruptibilidade.
43. Atalo, por sua vez, também foi reclamado com grande empenho pela plebe (pois tinha grande renome). Entrou já como lutador treinado, graças a sua
boa consciência, pois havia-se exercitado sinceramente na disciplina cristã e sempre havia
sido entre nós uma testemunha da verdade.
44. Conduziram-no
dando a volta ao anfiteatro, precedido de um cartaz no qual estava escrito em latim "Este é Atalo, o cristão"[16], enquanto o
público se inflamava terrivelmente contra ele. Ao saber o governador que
ele era romano, mandou que o levassem com os demais que estavam no cárcere,
acerca dos quais escreveu uma carta ao imperador e ficou esperando sua
resposta.
45. O tempo que passou
não foi ocioso nem estéril para eles, mas por sua paciência manifestou-se a imensa misericórdia de Cristo: por viverem
eles, reviviam os mortos, e por
serem mártires, outorgavam a graça aos que não o eram; assim, grande foi
a alegria da Virgem Mãe ao recuperar vivos os que havia abortado mortos[17].
46. Efetivamente, por meio deles, a maioria dos que haviam renegado voltavam sobre seus passos e de novo eram concebidos, reanimavam-se e aprendiam a
confessar, e já com vida e fortalecidos, aproximavam-se do tribunal para serem novamente interrogados pelo governador, enquanto Deus, que não quer a morte do pecador[18], preferindo o
arrependimento, suavizava-lhes o caminho.
47. De fato, o imperador dispunha em seu edito que uns fossem degolados e os outros, contanto que renegassem, absolvidos[19]. Ao iniciar-se
a grande festa local (comparece a ela grande multidão de pessoas de todas as
raças), o governador fez levar novamente ao tribunal os bem-aventurados, como
forma de teatro e de espetáculo para as multidões. Por isso interrogou-os
novamente, e aos que pareciam ter título de cidadãos romanos, fazia decapitar[20], enquanto os
demais eram mandados às feras.
48. Mas Cristo foi grandemente glorificado naqueles que primeiramente haviam renegado e que agora, contra o que poderiam esperar os pagãos, confessavam
sua fé. Estes, na verdade, eram interrogados privadamente,
como para serem em seguida postos em liberdade, mas ao confessar sua fé foram
sendo juntados à fila dos mártires. Ficaram fora, porém, os que nunca tiveram nem um vestígio de fé, nem o sentido da
vestimenta nupcial[21] nem idéia do temor a Deus, mas que com sua maneira de viver
infamavam o caminho[22], ou
seja, os filhos da perdição.
49. Por outro lado, todos os demais foram incorporados à Igreja. Quando
estavam sendo interrogados, um tal Alexandre, frígio de nascimento e médico por profissão, que tinha vivido muitos anos nas
Gálias e era conhecido de quase todos por seu amor a Deus e pela
franqueza de seu falar (pois também participava
do carisma apostólico), achava-se de pé junto ao tribunal e com gestos animava-os à confissão, parecendo aos que
rodeavam a tribuna como se tivesse dores de parto.
50. A plebe,
enfurecendo-se porque novamente confessavam aqueles que primeiro tinham renegado, pôs-se a gritar contra Alexandre,
considerando-o causador de tudo, e o
governador, notando-o, perguntou-lhe quem era, e como respondesse: "Um cristão", encolerizou-se e condenou-o às
feras. No dia seguinte entrou na arena junto com Atalo, já que o
governador, para agradar a plebe, entregou novamente Atalo às feras.
51. Os que passaram
por todos os instrumentos inventados para torturar no anfiteatro e sustentaram um grande combate, também eles foram ao final
sacrificados. Alexandre nem soluçou nem murmurou um mínimo sequer, mas
em seu coração conversava com Deus.
52. Atalo, por outro lado, quando foi posto sobre a cadeira de ferro e começou
a
queimar-se e de seu corpo desprendia-se o cheiro de carne queimada, disse dirigindo-se em latim à multidão:
"Estais vendo! Isto é comer homens, o que estais fazendo. Nós, por
outro lado, nem comemos homens nem fazemos
nada de mau." E como lhe perguntassem que nome tem Deus, respondeu:
"Deus não tem nome como um homem."
53. Depois de tudo isto, no último dia de lutas de gladiadores, levaram novamente Blandina
junto com Pôntico, rapaz de uns quinze anos. Cada dia tinham sido apresentados para que vissem as torturas dos outros. Começaram
obrigando-os a jurar pelos ídolos dos pagãos; mas como eles permaneciam firmes e até os menosprezaram, a multidão
ficou enfurecida contra eles ao ponto de não ter pena da idade do rapaz
nem respeito pelo sexo feminino.
54. Entregaram-nos a todos os horrores e fizeram-nos percorrer todo o ciclo de
torturas, uma após a outra, tentando forçá-los a jurar, sem que o conseguissem. Efetivamente, Pôntico, animado por sua irmã tanto que até os pagãos podiam ver que era ela que o exortava e confortava, depois de sofrer
generosamente todo tipo de tormentos, entregou o espírito.
55. E a bem-aventurada Blandina, a última de todos, como nobre mãe que infundiu ânimo a seus filhos e os enviou adiante vitoriosos para seu rei,
depois de percorrer também ela todos os combates de seus filhos, voava para
eles alegre
e prazerosa da partida, como se fosse convidada a um banquete de bodas e não
lançada às feras.
56. Depois dos açoites, depois da feras e depois das chamas, por último
atiraram-na a um touro. Lançada ao alto longo tempo pelo animal, insensível já ao
que lhe acontecia por sua esperança mantida em tudo o que havia crido e por sua
conversação com Cristo, também ela foi sacrificada, enquanto os próprios pagãos
confessavam que jamais entre eles uma mulher havia padecido tantos e tais
suplícios.
57. Mas nem assim fartou-se sua loucura e crueldade para com os santos,
porque, incitada por uma fera selvagem, aquela tribo selvagem
e bárbara não podia calar-se facilmente. Sua cruel insolência
tomou outro rumo particular: fartar-se nos cadáveres.
58. De fato, não lhes
causava a menor vergonha terem sido vencidos, já que não raciocinavam como homens, mas inflamava-se ainda mais sua cólera, como a de uma fera, e assim, tanto o governador
como a plebe demonstravam ter o mesmo ódio injusto contra nós, para que
se cumprisse a Escritura: que o injusto continue em sua injustiça, e que o
justo continue sendo justificado[23].
59. Efetivamente, os que haviam perecido asfixiados no cárcere eram lançados aos cães, sendo vigiados noite e dia para evitar que algum dos nossos lhes
fizesse
as honras fúnebres. Também então expuseram os restos deixados pelas feras e pelo fogo, em parte despedaçados e
em parte carbonizados, e durante alguns dias seguidos custodiaram com
guarda militar as cabeças dos outros, junto
com seus troncos, assim mesmo insepultos.
60. E sobre estes restos alguns
resmungavam e rangiam os dentes, buscando tomar
deles alguma vingança suplementar; outros riam-se e zombavam, ao mesmo tempo que engrandeciam seus ídolos, a quem
atribuíam o castigos daqueles, e os mais moderados e que pareciam
compadecer-se um pouco repetiam insultos
dizendo: "Onde está seu Deus e de que lhes valeu sua religião, a
qual preferiram inclusive a sua própria vida?"
61. Assim variada era
a atitude daqueles; nós, por outro lado, afundávamos em grande dor porque não podíamos enterrar os corpos, já que nem a noite
nos ajudava nisto, nem o dinheiro conseguia persuadir nem as súplicas abrandar, mas por todos os meios os custodiavam,
como se no fato de que os corpos não receberem sepultura eles tivessem
grande vantagem."
62. Em continuação a
isto, depois de algumas outras coisas, dizem: "Assim
pois, os corpos dos mártires, depois de serem expostos ao escárnio de todos os modos possíveis e de ficarem às
intempéries durante seis dias, foram logo queimados e reduzidos a cinzas, que
aqueles ímpios lançaram ao rio Ródano, que passa perto dali, para que
nem sequer suas relíquias ficassem ainda visíveis sobre a terra.
63. E faziam isto pensando que poderiam vencer Deus e arrebatar daqueles seu
novo nascimento, com a finalidade de que, como eles diziam, "nem sequer esperança tenham de ressurreição; persuadidos dela, estão introduzindo uma
religião estranha e nova, desprezam os tormentos e vêm
dispostos e alegres à morte: vejamos agora se vão ressuscitar e se seu Deus
pode socorrê-los e arrancá-los de nossas mãos".
1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui
para a sua espiritualidade?
[1] A
explicação tradicional sobre a relação de pontos tão distantes é que as igrejas
destas cidades seriam formadas principalmente por cristãos emigrados da Ásia
Menor, mas existe a possibilidade de que Eusébio tenha confundido a Galácia do
Ponto com a Gália do ocidente.
[2] Depois
de destacar a irritação popular contra os cristãos, declara-se o causador: o
"adversário", Satanás.
[3] Hb
10:33.
[4] Rm 8:18.
[5] Pode ser
traduzido também como "advogado".
[6] Jo 16:2.
[7] Jo 7:38;
19:34; Ap 21:6.
[8] 1Pe 5:8.
[9] Mt
25:46.
[10] Alusão à
norma apostólica de At 15:29, não implica que ainda estivesse vigente em Lion.
[11] Martírio
significa originalmente "testemunho".
[13] 1 Co
9:25.
[14]
Provavelmente pelo confector.
[15] Is 27:1.
[16] Cartaz
obrigatório para condenados que eram cidadãos romanos, mas a mente do redator
pode estar mais próxima ao cartaz sobre a cruz de Jesus (Mt 27:37; Mc 15:26; Lc
23:38; Jo 19:19).
[17] A
"Virgem Mãe" é a Igreja.
[18] Ez 18:23;
33:11; 2 Pe 3:9.
[19] Marco
Aurélio na verdade atém-se em sua resposta à regra de Trajano em sua carta a
Plínio.
[20] Atalo
seria uma exceção.
[21] Mt
22:11-13.
[22] At 19:9;
2 Pe 2:2.
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