Livro IX
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História
Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro IX
– Capítulos 01 a 08
I - Da fingida
distensão
1.
A palinódia da ordem imperial antes
citada foi exposta por todas as partes e em todo lugar da Ásia, assim como nas
províncias circundantes. Cumprido isto desta maneira, Maximino, o tirano do
Oriente, ímpio como nenhum outro e convertido no maior inimigo da religião do
Deus do universo, ficou muito desgostoso do conteúdo do escrito[1],
e em vez do edito, ordenou verbalmente aos governantes a ele sujeitos que
afrouxassem na guerra contra nós. Efetivamente, como não lhe era permitido
contradizer de outra forma o juízo dos mais poderosos, guardando bem a
mencionada lei e procurando cuidadosamente que nas regiões sujeitas a ele se
fizesse pública, por meio de uma ordem oral manda os governantes a ele sujeitos
afrouxarem a perseguição contra nós[2].
Mas os termos da ordem vão sendo comunicados por escrito.
2. Assim pois, Sabino, honrado entre eles com a dignidade dos magistrados
mais elevados, dá a conhecer a decisão do imperador aos governadores de cada
província mediante uma carta em latim. Sua tradução é a seguinte:
3. "Com o mais nobre e mais santo zelo, já faz tempo que a divindade de
nossos senhores, santíssimos imperadores[3],
determinou orientar as mentes de todos os homens ao santo e reto caminho de
viver, para que, inclusive os que pareciam seguir um costume alheio ao dos
romanos, rendessem o culto devido aos deuses imortais.
4.
Mas a obstinação e a rude vontade
de alguns chegou a tal ponto que nem com a justa razão da ordem podia-se
afastá-los de sua própria determinação, nem o castigo prometido os afastava.
5.
Como aconteceu, pois, que por causa
desta atitude muitos se pusessem em perigo, a divindade de nossos senhores, os
poderosíssimos imperadores, julgando segundo a grande nobreza de sua piedade,
que era alheio a seu próprio e diviníssimo propósito estar lançando os homens a
um perigo tão grande por uma tal causa, ordenou escrever a tua inteligência por
meio de minha devoção, que, se algum cristão for encontrado tomando parte na
religião de sua própria nação, o afastes do mal e do perigo que o ameaça e não julgues que alguém deva ser castigado por
este motivo, já que com o correr de tão longo tempo foi comprovado que
de nenhuma maneira é possível persuadi-los a se afastarem de semelhante
obstinação.
6.
Por conseguinte, tua solicitude
deve escrever aos curadores, aos magistrados municipais e aos prepostos
de distrito rural de cada cidade para que saibam que, de agora em diante, não
lhes convém preocupar-se com este edito[4]."
7.
Depois disto,
os de cada província, pensando que a intenção do que se lhes escrevia era a verdade, dão a conhecer por meio de cartas o pensamento imperial aos curadores, aos magistrados municipais
e aos prepostos de distrito rural. Mas não fizeram avançar o assunto somente
por meio de cartas, mas também, e muito principalmente, por meio das
obras. Com o fim de levar a cabo a decisão imperial, tiravam à luz do dia e
davam liberdade a todos que tinham
encerrados nos cárceres por terem confessado a divindade, e deixavam ir
também os que dentre eles estavam condenados às minas. Ainda que se equivocassem, eles criam que isto era o que verdadeiramente
pensava o imperador.
8.
E ao ocorrerem
deste modo as coisas, de repente, como uma luz que brilha saindo da noite escura, em cada cidade podia-se ver igrejas congregadas, reuniões concorridíssimas e, além disso, as
cerimônias executadas do modo costumeiro.
E todo pagão infiel era presa de grande espanto ante isto e se maravilhava
de mudança tão prodigiosa, e a gritos proclamava grande e único verdadeiro o
Deus dos cristãos.
9.
Dos nossos,
os que haviam sustentado valente e fielmente o combate das perseguições recobraram novamente sua liberdade franca
para com todos; em troca, os que, enfermos na fé, haviam
naufragado em suas almas apressavam-se
alegremente em busca de remédio, implorando e pedindo aos fortes sua mão direita salvadora e suplicando a Deus que lhes fosse propício.
10. E logo, os nobres atletas da religião, liberados do sofrimento das minas,
regressava a suas casas caminhando majestosos e radiantes através das cidades e transbordando uma indizível alegria e
uma liberdade franca que não é possível traduzir com palavras.
11. Assim pois, ao longo dos caminhos e das praças,
multidões em tropel realizavam sua viagem louvando a Deus com
cantos e salmos, e os que antes estavam
presos com duríssimos castigos e desterrados de suas pátrias, deverias vê-los agora recobrando seus lares com rosto
transbordante de alegria e satisfação, tanto que inclusive os que antes gritavam
contra nós, ao ver agora um prodígio tão
contrário ao que se poderia esperar, uniam-se também a nosso regozijo
pelo ocorrido.
II
- Da posterior piora
1. Mas o tirano[5] que, como
dissemos, governava a parte do Oriente, inimigo que era do bem e
conspirador contra todos os bons, incapaz de suportar isto, nem seis meses completos agüentou que se fizesse desta maneira.
Por conseguinte, pôs-se a maquinar
meios para destruir a paz. Primeiramente tentou com um pretexto impedir-nos a reunião nos cemitérios[6];
depois, valendo-se de alguns homens malvados, enviou a si mesmo
embaixadas contra nós, pois exortou aos cidadãos de Antioquia a que pedissem
para obter dele como um dos maiores
benefícios que de modo algum se permitisse que um cristão habitasse em sua
pátria, e que sugerissem a outros esta mesma manobra. Na própria Antioquia o autor de tudo isto foi Teotecno, homem temível, charlatão, malvado e que não fazia honra
a seu nome[7].
Era, segundo parece, curador da cidade.
III - Da
estátua recém-erigida em Antioquia
1. Este homem[8]
pois, que nos fez a guerra o quanto pôde e por todos os meios se esforçou para que os nossos fossem caçados em seus esconderijos
como ladrões sacrílegos, e que tudo isto maquinou baseado na calúnia e acusações contra nós e foi o causador da morte de
inúmeras pessoas, terminou por
erigir uma estátua de Zeus Filios[9]
com práticas de magia e bruxarias. Inventou para ele cerimônias
impuras, iniciações de mau agouro e purificações abomináveis, e até diante do
imperador fez pompa de sua prodigiosa
categoria mediante o que ele tinha por oráculos. Este, para adular seu dono e senhor no que lhe agradava, excitou o
demônio contra os cristãos e disse que o deus ordenava expulsar os
cristãos para fora dos limites da cidade e da região circundante, por serem,
afirmava, seus inimigos.
IV - Das decisões votadas
contra nós
1. Este foi o primeiro que se saiu bem em seu propósito. Todas
as demais autoridades que habitavam as
cidades sujeitas ao mesmo comando apressavam-se a tomar resoluções semelhantes, enquanto os governadores de província, ao perceberem que isto agradava o
imperador[10],
sugeriam a seus súditos que fizessem o mesmo.
2.
O tirano,
satisfeitíssimo, dava seu assentimento a estas decisões mediante um decreto, e
novamente reavivou-se a perseguição contra nós. O próprio Maximino estabeleceu para cada cidade como sacerdotes
dos ídolos, e acima destes sumos sacerdotes, a todos os que mais se distinguiam
nas funções públicas e que tinham adquirido
fama em todas. Também eles foram muito solícitos
em tudo o que tangia ao culto dos deuses que tinham a seu cuidado.
3. Em resumo, a absurda superstição do dono e senhor
induzia todos os súditos, governantes e
governados, a fazer tudo contra nós para obter as suas graças. Em troca dos benefícios que acreditavam que obteriam dele, faziam-lhe este favor, o maior: desejar nosso extermínio e
continuar fazendo exibição das mais novas maldades contra nós.
V - Das "Memórias" fingidas
1.
Depois de se
inventar - como parece - umas Memórias de Pilatos[11] e de
Nosso Salvador, abarrotadas de todo
gênero de blasfêmia contra Cristo, com a
anuência do soberano são distribuídas por todo o país sujeito a seu comando, com instruções escritas para que em todo
lugar, assim no campo como nas cidades, fossem expostas publicamente a
todos, e que os professores nas escolas cuidassem de ensiná-las às crianças em
vez das ciências, e fazer com que as decorassem.
2.
Enquanto isto
se cumpria desta maneira, outro, um comandante militar, que os romanos chamam dux, ordenou que tirassem à
força da praça pública de Damasco da Fenícia umas mulheres
desprezíveis e as ameaçava com a aplicação
de torturas, forçando-as a declarar por escrito que durante algum tempo
haviam sido cristãs e que entre os cristãos tinham visto ações criminosas, e que estes cometiam ações licenciosas
nas próprias casas do Senhor, e tudo quanto queriam que elas dissessem
para calúnia de nossa doutrina. Em seguida
inseriu estas declarações em umas memórias[12]
e as comunicou ao imperador, que ordenou que também este documento fosse tornado
público em todo lugar e em cada cidade.
VI - Dos que neste tempo sofreram martírio
1. Não tardou muito, porém, para que este comandante militar pagasse a pena
de sua maldade suicidando-se. Quanto a nós, novamente recomeçaram os desterros
e as terríveis perseguições, e mais uma vez levantaram-se contra nós os
governadores de todas as províncias, até o ponto de que alguns dos mais eminentes na doutrina divina foram presos e receberam sentença
inapelável de morte. Deles, três em Emesa, cidade da Fenícia, que se confessaram cristãos e foram entregues como pasto
às feras. Entre eles estava o bispo
Silvano, de avançada idade, que havia exercido seu ministério durante quarenta
anos completos.
2.
Também por este mesmo tempo, Pedro,
que presidia brilhantemente as igrejas de
Alexandria - um modelo divino de bispo por sua vida virtuosa e por seu
estudo assíduo das Sagradas Escrituras -, foi preso sem nenhum motivo e sem que se esperasse tal coisa, de
repente e sem razão, como por ordem de Maximino, e foi decapitado. E junto com
ele sofreram a mesma pena muitos outros bispos do Egito.
3. E Luciano, homem excelentíssimo em tudo, merecedor de
aplauso por sua vida, sua continência e seus conhecimentos sagrados, presbítero
da igreja de Antioquia, foi conduzido à cidade de Nicomedia, onde casualmente
se encontrava o imperador. Tendo exposto publicamente em presença do soberano a defesa da doutrina pela qual o faziam
comparecer, foi encarcerado e executado.
4. Na verdade, foi tanto o que aquele inimigo do bem,
Maximino, organizou contra nós em breve espaço de tempo, que
nos pareceu que tinha levantado uma perseguição muito
mais cruel do que a primeira.
VII - Do edito contra nós
afixado nas colunas
1.
Pelo menos -
coisa que nunca havia ocorrido - gravavam-se em esteias de bronze e se expunham ao público no meio das cidades as decisões que as cidades votavam contra nós e os decretos com as
ordens imperiais correspondentes, e
as crianças nas escolas cada dia tinham em seus lábios a Jesus, Pilatos
e as Memórias inventadas para insultar.
2.
Aqui me parece
que é necessário inserir o próprio edito de Maximino, o que foi exposto nas
esteias, para que ao mesmo tempo se evidencie, por um lado, a arrogância jactanciosa e insolente do ódio daquele
homem contra Deus, e por outro, o desagrado do mal por parte
da justiça divina, sempre alerta contra os
ímpios, que o perseguia de perto, pois não muito depois, impelido por ela, começou a dizer sobre nós todo o contrário e o
decretou em leis escritas.
Cópia da tradução do decreto
de Maximino correspondente às decisões votadas contra nós, tomadas da estela de tiro.
3. "Por
fim, a débil audácia da mente humana fortificou-se ao ter sacudido e dissipado
toda obscuridade e trevas do erro - o mesmo que antes assediava com a sombra
funesta da ignorância - dos sentidos de uns homens não tão ímpios quanto
desgraçados, e reconhece que é regida e consolidada pela providência
benevolente dos deuses imortais.
4.
É realmente incrível dizer quão
grato e quão prazeroso e gratificante foi para
nós que nos tenhais dado a maior demonstração de vossos sentimentos de
amor aos deuses quanto, mesmo antes de agora, ninguém ignorava o quanto éreis observantes e piedosos para com os
deuses imortais, pois vossa fé não
se dava a conhecer como fé de novas e ocas palavras, mas como fé sólida
e extraordinária em excelentes obras.
5. Pelo que vossa cidade poderia chamar-se justamente templo e habitáculo dos
deuses imortais, já que está bem claro por muitos exemplos que deve seu atual
florescimento ao fato de nela habitarem os deuses do céu.
6. Vede pois que vossa cidade, descuidando de todos seus
interesses particulares e passando por alto as anteriores
solicitudes sobre assuntos que lhe diziam respeito, quando novamente percebeu
que estavam começando a infiltrar-se
os sequazes desta maldita impostura e que era como uma fogueira descuidada e adormecida, cujas brasas ao reavivarem-se produzem os maiores incêndios, imediatamente e sem demora alguma
recorreu a nossa piedade, como à metrópole de todas as religiões,
pedindo algum remédio e ajuda.
7. É evidente que este saudável pensamento vos foi
sugerido pelos deuses por causa da fé de vossa religião. Foi
ele efetivamente, ele, Zeus, o maior e o mais
elevado, que preside vossa ilustríssima cidade e livra da ruína funesta vossos
deuses pátrios, vossas mulheres, vossos filhos e vossos lares, quem insuflou
em vossas almas esta vontade salvadora, mostrando e tornando manifesto quão
excelente, esplêndido e saudável é aproximar-se com a devida veneração ao culto
e às cerimônias sagradas dos deuses imortais.
8.
Porque, quem
poderia ser tão insensato e alheio a todo entendimento que não compreenda que devemos à solicitude benevolente
dos deuses que a terra não negue as sementes a ela confiadas,
nem arruine com a espera vã a esperança
dos camponeses; que não se firme inevitavelmente sobre a terra o espectro de uma guerra ímpia nem a morte arraste consigo os
corpos esquálidos ao corromper-se o bom temperamento do
céu; que o mar embravecido pelo sopro
dos ventos desmedidos não se levante, os furacões, soprando inesperadamente, não levantem tempestades mortíferas; mais
ainda, que a terra, mãe e nutriz de todos os seres, não se afunde com tremor
espantoso desde seus abismos mais profundos nem as
montanhas que há em cima caiam nas fendas abertas? Ninguém
ignora que precisamente todas estas calamidades,
e outras ainda muito piores, ocorreram com freqüência antes de agora.
9. E todas elas ocorreram por causa do erro funesto da vã impostura desses homens iníquos, quando prevalecia em suas almas e
quase, por assim dizer, oprimia com suas desonras a todas as regiões do
mundo habitado."
10. A isto, depois de outras coisas, acrescenta:
"Que contemplem como florescem nas amplas
planícies as messes ondulantes de
espigas, como reluzem os prados com suas plantas e flores, graças à chuva benfazeja, e como o céu se transformou em suavíssima tempérie.
11. Alegrem-se todos de agora em diante porque, graças a nossa piedade, a nossos sacrifícios rituais e nossa veneração,
aplacou-se o poderosíssimo e firme
ar, e que por isto mesmo se comprazam em desfrutar da mais tranqüila paz,
seguros e em sossego. E em conseqüência, que todos quantos, com absoluto proveito, retornaram daquele cego erro e
extravio para um reto e ótimo
pensar, alegrem-se ainda mais, como se se vissem livres de um furacão imprevisto ou de uma terrível enfermidade e
colheram para o futuro o gozo prazenteiro da vida.
12. Mas se permanecerem em sua maldita impostura, que sejam separados e lançados bem longe de vossa cidade e suas
cercanias, como pedistes, para que
desta maneira vossa cidade, separada de toda mancha e de toda impiedade,
seguindo vossa louvável diligência neste assunto e vosso propósito natural, possa com a devida reverência dedicar-se
aos sacrifícios rituais dos deuses imortais.
13. E para que saibais quão agradável nos foi vossa
petição sobre este assunto e quão predisposta ao amor do bem
está nossa alma, por vontade própria, mesmo
sem decreto e sem petição, permitimos a vossa devoção que peçais o maior
dom que queirais em troca deste vosso religioso propósito.
14. E agora não vacileis em fazê-lo e em receber o prêmio,
pois o alcançareis sem a menor demora. Este prêmio
outorgado a vossa cidade proporcionará por todos os séculos um
testemunho de vossa religiosa piedade para com os deuses imortais e demonstrará
a vossos filhos e descendentes como haveis
alcançado de nossa benevolência dignos prêmios por este vosso plano de
vida."
15. Estas medidas contra nós tornaram-se públicas em cada província, impedindo
a nossos interesses qualquer boa esperança, ao menos quanto ao que depende dos
homens, tanto que, segundo aquele divino oráculo, sendo possível, até os
próprios eleitos poderiam tropeçar sob tais circunstâncias[13].
16. Mesmo
assim, quando a esperança já estava quase morrendo na maioria, de repente, estando ainda a caminho por algumas
regiões os servidores deste edito[14]
contrário a nós, Deus, campeão de sua própria Igreja, fazendo travar o freio, por assim dizer, ao orgulho do tirano
contrário a nós, demonstrou que o céu era um aliado posto ao nosso lado.
VIII - Dos acontecimentos que seguiram entre fome, peste e guerras
1.
Por
conseguinte, os aguaceiros costumeiros e as chuvas contínuas retiveram seu habitual tributo à terra, mesmo sendo a estação invernal, e uma fome inesperada fez sua aparição, ao que se juntou a
peste e o ataque de alguma outra
enfermidade: uma úlcera que, por causa de sua inflamação, chamava-se significativamente carbúnculo[15],
ocorrendo por todo o corpo, causava sérios
perigos aos pacientes, e não só isso, mas atacando na maior parte dos casos particularmente os olhos, deixava cegos
inúmeros homens, mulheres e crianças.
2.
Por cima
disto tudo sobreveio ao tirano a guerra contra os armênios, amigos antigos e aliados dos romanos. Como também eles eram
cristãos e cultivavam com diligência a piedade para com a
divindade, o inimigo de Deus tratou de obrigá-los a
sacrificar aos ídolos e demônios, e de amigos tornou-os inimigos, e de aliados,
adversários.
3. O fato de que tudo isto afluísse de um golpe e a um
mesmo tempo serviu para refutar a jactância do ousado
tirano contra Deus, já que, efetivamente, vinha
se vangloriando de que, por causa de seu zelo pelos ídolos e de sua obsessão contra nós, nem a fome, nem a peste, nem
sequer a guerra tinham lugar em seus dias. Estas calamidades
pois, sobrevindo juntas e ao mesmo tempo, constituíram
também o prelúdio de sua queda.
4. Assim, ele mesmo se ocupava junto com suas tropas na guerra contra os armênios, enquanto a fome e a peste juntas
deixavam terrivelmente exaustos os
demais habitantes das cidades sujeitas a ele, tanto que por uma medida de
trigo dava-se em troca dois mil e quinhentos dracmas áticos.
5.
Em conseqüência eram milhares os
que morriam nas cidades, ainda que mais numerosos do que estes fossem os que
morriam nos campos e nas aldeias, até o
ponto de que os antigos censos, abundantes em camponeses, por pouco não
foram completamente apagados quando morreram quase todos de uma vez por falta
de alimento e pela pestilenta enfermidade.
6.
Assim pois, alguns julgaram bom
vender seus mais apreciados bens aos mais
ricos por umas migalhas de alimento; outros, vendendo pouco a pouco suas
posses, haviam chegado à mais extrema penúria, e houve ainda alguns que, tendo
mastigado fiapos de ervas ou comido por descuido certas plantas mortíferas,
arruinaram o estado físico de seu corpo e pereceram.
7.
E algumas mulheres nobres das
cidades, empurradas pela indigência ao mais
vergonhoso mister, saíam pelas praças públicas a mendigar, e somente no rubor de seu rosto e na decência de sua
vestimenta deixavam entrever a prova de sua antiga criação nobre.
8.
E outros, já secos, como fantasmas
cadavéricos, lutando com a morte e resvalando
aqui e acolá, terminavam caindo, impotentes para manter-se em pé. Estendidos de boca para baixo no meio das
praças, imploravam que se lhes
estendesse um pedacinho de pão, e com a alma já nos últimos sopros, gritavam
que estavam famintos, sem ter mais forças do que para este único e
doloroso grito.
9.
Outros, por
outro lado, os que pareciam ser dos mais acomodados, estupefatos ante a multidão de pedintes, depois de terem repartido inumeráveis esmolas, passaram a se encerrar numa atitude dura
e insensível, esperando ainda não
padecer também eles o mesmo que os pedintes. De fato, em meio às praças
e às vielas ofereciam já à vista o mais lamentável espetáculo os cadáveres
desnudos que jaziam insepultos desde muitos dias.
10. Alguns até já eram repasto para os cães, e por esta causa, sobretudo, os vivos começaram a matar cães, temerosos de que
tivessem raiva e se dedicassem a devorar homens.
11. Mas a própria peste causava maiores estragos em todas
as casas, sobretudo naquelas em que a fome não era capaz de
exterminá-los porque abundavam em provisões.
Assim, os opulentos: magistrados, governadores e muitíssimos funcionários, deixados pela fome como de propósito para
a peste, padeceram uma morte cruel e rapidíssima. Tudo, em conseqüência, estava
cheio de gemidos e por todas as vielas, praças e avenidas não se podia
contemplar outra coisa que as lamentações com seu costumeiro acompanhamento de
flautas e ruído de golpes[16].
12. Desta maneira, lutando ao mesmo tempo com as armas acima, a peste e a
fome, a morte devorou em pouco tempo famílias inteiras, ao ponto de ser
possível ver num só enterro levarem-se os corpos de dois ou três mortos.
13. Tais calamidades eram o pagamento pela grande
jactância de Maximino e pelas petições das cidades contra nós,
sendo assim que a todos os pagãos se manifestava a prova do
zelo e da piedade dos cristãos em tudo.
14. Eles eram, efetivamente, os únicos
que nesta circunstância calamitosa demonstravam
com suas próprias obras a compaixão e o amor aos homens. Uns
perseveravam todo o dia no cuidado e no enterro dos mortos (pois eram milhares os que não tinham quem se ocupasse
deles), e outros, reunindo num mesmo
lugar a multidão dos que em toda a cidade estavam esgotados pela fome, repartiam pão para todos, de forma que
o fato correu de boca em boca e todos os homens glorificavam o Deus dos
cristãos, e convencidos pelas próprias
obras, confessavam que estes eram os únicos verdadeiramente piedosos e
temerosos a Deus.
15. Depois de cumprido isto como foi dito, Deus, o maior e celestial defensor
dos cristãos, depois de ter mostrado
pelos meios mencionados sua ira e seu desagrado
contra todos os homens, novamente nos devolveu, em resposta aos excessos que eles haviam mostrado contra nós, o raio propício e
esplendoroso de sua providência para conosco. Como numa escuridão profunda, fez com que do modo mais maravilhoso
nos iluminasse a luz da paz, que dele procede, e a todos deixou
manifesto que Deus mesmo foi e segue sendo o
supervisor de nossos interesses, o que açoita seu povo e que, valendo-se das circunstâncias segundo a ocasião,
converte-o novamente, e por fim, o
que depois de uma boa lição se mostra propício e piedoso para os que
n'Ele esperam.
- O que mais te chamou atenção no texto?
- Qual a contribuição do texto para sua espiritualidade?
[1]
Como visto acima, o nome de Maximino não aparece no cabeçalho do edito de tolerância,
mas ele teve que assiná-lo com os outros imperadores e por algum tempo teve que
respeitá-lo.
[2]
Como se vê, é uma repetição do que já foi dito. Eusébio deve ter se esquecido
de apagar o texto duplicado.
[3]
A carta aparenta refletir o pensamento dos quatro imperadores, mas na verdade
expressa a vontade pessoal de Maximino.
[6]
Como não havia outros lugares de reunião, isto equivalia a proibir todo tipo de
assembléia religiosa.
[16] Sons musicais ruidosos eram
usados para afastar os maus espíritos que acompanhavam a morte; este uso durou
pelo menos até o final da Idade Média.
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