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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e
Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias
sobre São Lucas (Homilia 35)
HOMILIA 35 - Lc
12.58,59
Sobre o que está escrito: “Quando te diriges com teu adversário”,
e a sequência, até a passagem que diz: “até pagares o último centavo”.
Parábola do julgamento
Se não houvesse em nossa natureza um sentido inato para apreciar a
justiça, jamais o Salvador teria dito: “Por que, porém, não julgais por vós
mesmos o que é justo?”
Para que não nos estendamos muito longamente no exame desse
pensamento, sobretudo porque questões muito mais difíceis estão atreladas a
este capítulo, ser-nos-á suficiente apenas deter-nos no significado da
passagem.
Estendamos as velas de nossas almas para Deus e roguemos a vinda
de sua Palavra a fim de interpretar esta parábola da Escritura, que diz: “Quando
tu vais com teu adversário diante de um príncipe, no caminho, encarrega-te de
te livrares dele, para que ele não te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao
executor e que sejas enviado para o cárcere. Em verdade, eu te digo que não
sairás daí até que devolvas o último centavo”.
Vejo serem citados quatro personagens: o adversário, o príncipe, o
juiz e o executor. E que o evangelista Mateus parece ter expressado um
pensamento semelhante quando diz: “Faça acordo com teu adversário enquanto
caminhas com ele”.
Busco saber se aí há o mesmo sentido que no texto de Lucas ou se
há alguma proximidade, já que, no texto de Mateus, com efeito, uma personagem
foi omitida e a outra, mudada.
“Príncipe” é omitido e, em vez do “executor”, “o guarda” foi
inserido, enquanto “o adversário” e “o juiz” foram igualmente mencionados nos
dois textos.
“Com o nosso adversário” vamos, então, encontrar “o príncipe”;
enquanto estamos “a caminho”, é necessário que lutemos com coragem para que nos
livremos dele.
Mas nos livrar de quem? De fato, a palavra é ambígua e pode tanto
referir-se ao príncipe quanto ao adversário: “receando que”, seja o adversário,
seja o príncipe, “te entregue ao juiz, e que o juiz te entregue ao executor”;
e: “não sairás daí enquanto não devolveres o último centavo”, por cujas
palavras Mateus diz: “até que devolvas o último quarto de asse”.
Os dois evangelistas conservaram a palavra “último”, porém
pareceram estar em desacordo, porque este citou “quarto de asse”, aquele, a
palavra “centavo”.
Os bons e os maus anjos
Devo tocar algumas verdades mais misteriosas, para que possamos
compreender que o adversário e os outros três personagens, isto é, o príncipe,
o juiz e o executor, representam cada um uma pessoa diferente.
Lemos – se se quer receber este tipo de escritura – que os anjos
da justiça e os da iniquidade discutem sobre a salvação e a perda de Abraão,
enquanto as duas turmas querem reivindicar a presença do patriarca para sua
própria peleja.
Se isso desagrada a alguém, que esse alguém passe ao volume
intitulado “O Pastor” e aí encontrará que para todo homem há dois anjos: um
mau, que o incita ao mal, e um bom, que persuade a todas as coisas melhores.
Está escrito em outra parte que dois anjos assistem os homens,
seja para a boa parte, seja para a má.
O Salvador faz também menção dos bons anjos, quando diz: “Seus
anjos veem sempre a face de meu Pai, que está nos céus”.
Ao mesmo tempo, pergunta se os anjos dos pequeninos que
pertencem à Igreja “veem sempre a face do Pai”, enquanto os anjos de outros não
têm a liberdade de olhar o rosto do Pai.
Não se deve esperar, pois, que os anjos de todos sempre vejam “a
face do Pai, que está nos céus”.
Se eu pertencer à Igreja, ainda que eu seja o menor de todos, o
meu anjo tem a liberdade e a certeza de ver “a face do Pai, que está nos céus”.
Se, porém, eu estiver de fora e não for daquela Igreja “que não
tem mancha nem ruga nem nenhum defeito dessa espécie”, e, por isso mesmo, ficar
provado que sou estranho a tal congregação, meu anjo não tem a certeza de ter
os olhos voltados para o “rosto do Pai, que está nos céus”.
Por isso, os anjos são solícitos para os bons, os quais sabem que,
se nos tiverem dirigido bem e nos tiverem conduzido à salvação, eles próprios
terão a certeza de ver “a face do Pai”.
Se, com efeito, através de seus cuidados e seu zelo, a salvação é
adquirida para os homens, eles veem sempre “a face do Pai”.
Assim, se, pela negligência deles, o homem tiver vindo à queda,
eles não ignoram que a coisa não será isenta de perigo para eles.
Do mesmo modo, um bom bispo e um excelente administrador da Igreja
sabem que cabe a seu mérito e virtude que as ovelhas do rebanho a ele confiadas
sejam guardadas.
Compreende, então, que assim o é para os anjos. É uma ignomínia
para um anjo se o homem a ele confiado tiver pecado. Ao contrário, é uma glória
para um anjo se o homem que lhe é confiado, seja ele o menor de todos os que
houver na Igreja, fizer progressos.
Eles verão, com efeito, não uma vez ou outra, mas sempre “a face
do Pai, que está nos céus”, enquanto os outros não a verão sempre.
Segundo o mérito daqueles que dirigem, os anjos contemplarão
sempre ou nunca, ou então com maior ou menor intensidade a face de Deus.
Deus tem um conhecimento claro desse mistério, e, ainda que
dificilmente, também o pode ter aquele que for encontrado tendo sido instruído
por Cristo.
O adversário
Vejamos, pois, primeiramente, quem é “o adversário”, com o qual
fazemos nosso caminho.
O adversário está sempre conosco, infelizes e miseráveis que
somos. Cada vez que pecamos, nosso adversário exulta ao saber, visto que tem a
faculdade de exultar-se e vangloriar-se, junto ao príncipe deste mundo, que o
tinha enviado; razão pela qual, o adversário de um ou de outro, por exemplo,
tornou tanto um quanto o outro sujeitos ao príncipe deste mundo, por causa de
seus pecados, por causa de tantos pecados, por este delito ou por aquele.
Mas sucede, às vezes, que, se alguém estiver preparado com a
armadura de Deus e protegido de todas as partes, o adversário tentará,
evidentemente, infligir uma ferida, mas não terá a possibilidade de golpear.
O adversário caminha sempre conosco, nunca nos abandonará; ele
busca a ocasião de nos colocar armadilhas e o modo de poder derrubar-nos,
fazendo-nos submeter um mau pensamento no fundo de nosso coração.
O príncipe
“Quando tu vais ao encontro do príncipe.” Quem é, pois, esse
príncipe? “Quando o Altíssimo dividia os povos, quando ele espalhava os filhos
de Adão, ele fixou os limites dos povos segundo o número dos anjos de Deus.
A parte de Deus foi seu povo, Jacó, e a extensão de sua herança,
Israel.” Então, desde as origens, a terra foi dividida entre os príncipes,
isto é, os anjos.
Daniel, de fato, atesta claramente que aqueles que Moisés tinha
nomeado de anjos são chamados de “príncipes”, dizendo: “o príncipe do reino dos
Persas”, diz ele, “o príncipe do reino dos gregos e Miguel, vosso príncipe”.
Os anjos são, portanto, os príncipes das nações. E cada um de nós
tem um adversário unido a si; sua tarefa é conduzi-lo a um príncipe e
dizer-lhe: “Príncipe do reino dos Persas”, por exemplo, “aquele que era teu
súdito, eu o guardei, como ele era, para ti; nenhum dos outros príncipes pôde
atraí-lo para si, nem sequer aquele que se gabava de ter vindo para isto: para
arrancar os homens à dominação dos Persas ou dos gregos e de todas as nações,
para fazer deles os súditos da herança de Deus.
O Cristo nosso Senhor venceu todos os príncipes e, atravessando
suas fronteiras, atraiu para si os povos cativos, para a sua salvação.
Também tu pertencias ao partido de um príncipe. Jesus veio e te
arrancou do poder do mal e ofereceu-te a Deus Pai.
Assim nosso adversário caminha, conduzindo-nos ao seu príncipe.
Por isso, eu, crendo que todas as palavras das Escrituras têm uma razão de ser,
penso que não foi em vão que, entre os gregos, “juiz” tenha sido citado com o
artigo [definido] “o”, que é significante de singularidade, enquanto
“príncipe” foi, pura e simplesmente, escrito sem artigo [definido].
“Quando, diz a Escritura, vais com teu adversário”,
significativamente diz “teu”.
Não todos, com efeito, são adversários de todos; cada um tem seu
adversário particular, que o segue por toda parte como um companheiro.
“Quando tu vais com teu adversário ao encontro de um príncipe”, a
palavra príncipe não é precedida do artigo [definido] “o”, para que não
parecesse indicar uma personagem determinada, mas a ausência do artigo
[definido] mostra que se trata de um príncipe entre vários outros, o que é
melhor entendido pelos gregos.
Com efeito, não cada um de nós tem um príncipe próprio, mas se
alguém é egípcio, depende do príncipe do Egito; o sírio é súdito do príncipe
dos sírios; e cada um é súdito do príncipe de sua nação. Basta-me ficar por
aqui; não há necessidade alguma de estender essa discussão, enumerando
igualmente todas as outras nações. Assim é dito: “Vede Israel segundo a carne”.
Para o sábio, ter começado é ter dito; talvez seja mesmo temerário
ter começado a tratar de semelhante assunto em público.
Diz a Escritura, quem quer conduzir-te a seu príncipe e fazer-te
mudar de mestre, “quando tu vais com teu adversário ao encontro de um príncipe,
pelo caminho, esforça-te para que te livres dele”.
Se, com efeito, não lutares com todos os teus esforços para que
sejas livrado dele, enquanto ainda percorres o caminho, antes que entres na
casa de um príncipe, antes que tal príncipe te entregue ao juiz, em vão farás
tuas tentativas depois que o adversário preparou-te para que fosses entregue.
“Esforça-te, pois, para que te livres” do teu adversário ou do
príncipe, para quem te arrasta o adversário. Faz teu esforço para que tenhas a
sabedoria, a justiça, a força, a temperança, e
então se cumprirá a palavra: “eis o homem, seus trabalhos estão diante de seu
rosto”.
Se não fizeres esforços, não poderás quebrar o pacto de teu
adversário, cuja “amizade é inimizade contra Deus”. “Quando
vais com teu adversário ao encontro de um príncipe, no caminho, esforça-te.”
Nessa passagem “no caminho, esforça-te” está oculta amiúde não sei
qual verdade, e há um mistério.
O Salvador diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Se
fizeres o esforço para te livrares do adversário, estarás no caminho. Quando te
ativeres àquele que diz: “eu sou o caminho”, “esforça-te para te livrares” do
adversário; não basta ter-se dedicado.
Se não fizeres o esforço, com efeito, para que te livres do
adversário, escuta o que te acontecerá: o adversário “te arrasta ao encontro do
juiz”, ou então o príncipe, quando te tiver recebido em sua casa pelo
adversário, “te arrasta ao encontro do juiz”.
“Arrasta” é um termo bem escolhido para mostrar, de certo modo,
como aqueles que se esquivam e não querem ser arrastados para a condenação são
obrigados a comparecer diante dela.
Qual homicida, com efeito, comparece à corte judicial com passo
ligeiro? Quem se apressa na alegria de ir à sua própria condenação e não é
arrastado contra a sua vontade e insurgindo-se? Pois ele sabe que comparece
para receber sua sentença de morte.
O juiz
“Para que ele não te arraste à corte judicial.” A teu ver, quem é
esse juiz? Eu não conheço outro juiz senão Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual é
dito em outra parte: “Ele porá as ovelhas à direita e os bodes à esquerda”.
E novamente: “Quem tiver confessado a mim diante dos homens, eu o
confessarei também diante de meu Pai que está nos céus; quem, porém, tiver me
negado diante dos homens, eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus”.
“Para que ele não te arraste à corte judicial, e o juiz te
entregue ao executor.” Cada um de nós, através de cada pecado, sofre uma pena,
e a intensidade da pena é medida segundo a qualidade e a natureza das faltas.
Devo trazer um testemunho da Escritura a respeito da pena e da
multa pecuniária.
Um é condenado a pagar quinhentos denários e ele os deve, outro é
condenado a cinquenta denários, quantias que a ambos é retirada pelo credor.
Depois, outro, segundo a Escritura, “foi-lhe apresentado, e esse
devia dez mil talentos”; e ele foi condenado a pagar dez mil talentos.
Que necessidade há que eu continue com vários exemplos? Segundo a
natureza e o número dos pecados, cada um recebe uma condenação a uma multa
diferente. Se teu pecado é pequeno, serás golpeado com uma pena “de um
centavo”, como escreve Lucas; ou “de um quarto de asse”, segundo Mateus.
É, entretanto, indispensável pagar também essa pequena quantia, da
qual te mostraste devedor, pois tu não sairás do cárcere antes de teres pagado
mesmo as menores quantias.
Todavia, aquele que é fiel não é golpeado com nenhuma pena, mas se
enriquece a cada dia, “uma profusão de riquezas lhe pertence, enquanto o infiel
não tem um óbolo sequer”.
Um é condenado por um denário; outro, por uma mina; outro, por um
talento.
O juiz desse negócio, que conhece a importância de todos os
pecados, também diria: “Essa falta é condenada por um talento; aquele pecado
merece uma multa desse tipo”.
Pois está escrito: “Quando, porém, ele começasse o acerto de
contas”. O cômputo deve ser calculado para todos nós.
Não há outro tempo para calcular o cômputo senão o tempo do
julgamento, quando será conhecido como líquido o que nos tenha creditado e o
que tenhamos feito de lucro ou de prejuízo. Entre nós haverá quem receba uma
mina; quem um único talento; quem dois; quem cinco.
Que necessidade há de trazer à memória mais detalhes, visto que
basta ter dito isto de modo geral, que haveremos de devolver o pagamento de
nossas contas e que, se formos identificados como devedores, seremos arrastados
à corte judicial e entregues pelo juiz ao executor?
O executor
Temos, cada um de nós, nossos próprios executores; mas toda
multidão é entregue a vários executores, segundo o que está escrito em Isaías:
“Meu povo, vossos executores vos pilham e os poderosos reinam sobre vós”.
Os executores são nossos mestres, se somos devedores. Se, porém,
tivermos confiança, se pudermos dizer de cabeça erguida: “Guardei o preceito
que ordena: ‘devolvei a todos o que lhes é devido; a quem o tributo, o tributo;
a quem o temor, o temor, a quem as taxas, as taxas; a quem a honra, a honra” – se
a todos eu tiver devolvido tudo o que lhes devia –, então vou encontrar o
executor e respondo-lhe com pensamento intrépido: nada te devo.
O executor volta a seu cargo e lhe resisto; pois sei que, se não
terei devido nada, ele não tem nenhum poder sobre mim; mas, se eu sou devedor,
“meu executor me mandará para o cárcere”, segundo o processo que foi predito: o
adversário me conduz ao encontro do príncipe; o príncipe, à corte judicial; o
juiz me entregará ao executor; o executor me mandará para o cárcere.
Qual é a lei desse cárcere? Não sairei dele; o executor não me
deixará sair se eu não tiver pago toda a minha dívida.
O executor nãotem o poder de me conceder o perdão de nem mesmo um
“quarto de asse”, nem mesmo “a menor” quantia.
Há apenas um que pode perdoar aos devedores que não tenham com que
saldar suas dívidas.
“Um”, diz a Escritura, “que devia quinhentos denários aproximou-se
dele, e um que devia cinquenta; e como não tivessem com que quitar suas dívidas,
a ambos perdoou”.
Quem perdoou era o Senhor; mas o Senhor não é o executor; o
executor é o preposto pelo Senhor para exigir as dívidas.
Não foste digno que te perdoassem quinhentos ou cinquenta
denários, nem mereceste ouvir: “Teus pecados te foram remidos”; serás
mandado para o cárcere e lá serás obrigado a pagar pelo trabalho e pelas
tarefas a cumprir; ou, então,penas e suplícios; e de lá não sairás, se não
tiveres saldado o “quarto de asse” ou o “último lépton”, que em grego significa
“leve”.
Entre nossos pecados, alguns são grossos, como está escrito: “O
coração deste povo se tornou espesso”; outros,
em comparação com os pecados mais graves, são leves e ínfimos.
Bem-aventurado primeiramente aquele que não peca e, em segundo
lugar, se ele peca, quando se contará suas faltas, possa ele ter apenas um
pecado leve.
Mas há igualmente diferenças entre as faltas leves e ínfimas,
pois, se no domínio das faltas leves e ínfimas não houvesse mais e menos, nunca
o Evangelho teria dito: “Tu não sairás de lá até que tenhas devolvido o último
quarto de asse”.
Mas não posso dizer claramente isto: se fosse necessário entender
a expressão “o último centavo” como referida a uma quantia de dinheiro – uma
quantia bem pequena, quer dizer um denário, ou um escudo, ou um óbolo, ou um
estáter –, qual a natureza do que pagaremos, se devemos uma grande quantia de
dinheiro, como no caso daquele do qual está escrito que devia mil talentos; ou,
enfim, a duração do tempo no qual ficaremos encerrados no cárcere, até que
saldemos nossa dívida.
Com efeito, se aquele que deve pouco não sai do cárcere antes de
ter pago “o mínimo quarto de asse”, o devedor responsável por uma grande
quantia verá ser contado um número infinito de séculos para pagar sua dívida.
É por essa razão que devemos “nos esforçar, para que nos livremos
de nosso adversário”, enquanto estamos no caminho, e unamo-nos ao Senhor Jesus:
“a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.
O que você destaca no texto?
Como o texto serve para sua espiritualidade?
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