Encontro
190
Atanásio
de Alexandria (285-373)
Sobre a Encarnação (Conclusão)
1.
Foi, portanto, inteiramente plausível
tivesse o Verbo de Deus assumido corpo e se servido de instrumento humano.
Assim, vivifica o corpo e como na criação suas obras o revelam, ele opera no
homem e por toda a parte se mostra, e nada priva de seu conhecimento e de sua
divindade.
2.
Repito o que disse mais acima: O
Salvador assim procedeu, pois, uma vez que tudo enche com sua presença,
igualmente plenifica todas as coisas com seu conhecimento.
3.
Segundo a Sagrada Escritura: “A terra
ficará cheia do conhecimento do Senhor” (Is 11.9). Se olhar alguém para o céu,
verá a ordem nele reinante. Se for impossível olhar para lá, incline-se somente
para o homem, e haverá de constatar por meio das obras o poder incomparável do
Senhor sobre os homens, reconhecendo ser ele o único Verbo de Deus no meio dos
homens. Se for alguém seduzido e aterrorizado pelos demônios, há de verificar
que ele os expulsa e considerar que se trata do dono deles. Se mergulhar na
natureza das águas, julgando que são deuses, como os egípcios adoradores da
água, notará ter sido a água transformada pelo Senhor e certificar-se-á de que
é o criador das águas.
4.
Se descer aos infernos, e admirar os
heróis que para lá desceram e são venerados quais deuses, observará a
ressurreição do Senhor e a vitória sobre a morte, pensando que mesmo entre eles
Cristo é verdadeiro Senhor e Deus. O Senhor atingiu todas as partes da criação,
libertou-as, desenganou-as de qualquer erro, conforme afirma Paulo: “Ele
despojou os Principados e as Potências” e triunfou sobre a cruz (Cl 2.15), a
fim de que doravante ninguém mais seja iludido, mas encontre em todo lugar o
verdadeiro Verbo de Deus.
5.
Ademais, o homem assim envolvido sempre
e em toda parte, isto é, no céu, no inferno, no homem, na terra, vendo
expandida sobre a terra a divindade do Verbo, não mais se engana acerca de Deus
e adora a um só, e por meio dele conhece bem o Pai.
6.
Provavelmente os gregos ficarão
impressionados com estas boas razões; entretanto se julgarem insuficientes
esses argumentos para confundi-los, acreditem em nossas palavras acerca de
fatos a todos evidentes.
Recursos
aos fatos: O fim da idolatria, da divinização e do reino dos filósofos
7.
Quando os homens começaram a abandonar
o culto dos ídolos, a não ser depois que o Verbo de Deus veio para junto dos
homens? Quando cessou aniquilada a adivinhação entre os gregos e por toda a
parte, senão ao aparecer o Salvador da terra inteira?
8.
Quando os pretensos deuses e heróis dos
poetas foram pela primeira vez convencidos de não passarem de simples mortais,
a não ser quando o Senhor ergueu o troféu contra a morte, e conservou
incorrupto o corpo assumido, ressuscitando-o dentre os mortos?
9.
Quando a fraude e a loucura dos
demônios foi desprezada, senão na oportunidade em que o poder de Deus, o Verbo,
Senhor de tudo e até dos próprios demônios, condescendendo com a fraqueza dos
homens, surgiu na terra? Quando se começou a calcar aos pés a arte e
ensinamentos mágicos, senão por ocasião do aparecimento do Verbo divino entre
os homens?
10. Em
resumo, quando a sabedoria dos gregos foi se enlouquecendo, a não ser ao aparecer
na terra a verdadeira Sabedoria de Deus? Desde muito, a terra habitada e todos os
lugares iludiam-se com o culto dos demônios e os homens julgavam não existirem outros
deuses senão os ídolos. Agora, porém, por toda a terra os homens abandonam o culto
supersticioso dos ídolos, refugiam-se em Cristo, adoram-no como Deus, e por ele
conhecem o Pai, antes ignorado.
11. E,
coisa admirável, enquanto existem milhares de cultos diferentes, cada país
possui seus próprios ídolos e o que eles denominam Deus não é capaz de ir à
região vizinha persuadir o povo dos arredores a adorá-lo, e apenas é cultuado
em seu próprio domínio — (pois ninguém adora o deus mais próximo, mas cada qual
conserva seu ídolo particular, acreditando ser ele o senhor dos demais) —,
somente Cristo é um só e adorado por toda parte entre os povos. Cristo realiza
o que não consegue fazer a fraqueza dos ídolos: persuadir os povos da
vizinhança. Convence não somente os povos circunvizinhos, mas toda a terra a
adorar um só e mesmo Senhor e por intermédio dele a Deus, seu Pai.
12. Outrora,
o mundo estava cheio de fraudes dos oráculos. Os oráculos de Delfos, de Dodona,
da Beócia, da Lícia, da Líbia, do Egito, das Cabiras e a Pítia enchiam de
admiração a imaginação dos homens. Agora, porém, desde que Cristo é anunciado
por toda parte, esta loucura terminou e não existe mais adivinhos entre eles.
13. Antigamente
também, os demônios impressionavam os homens, apossando-se previamente das
fontes, dos rios, das estátuas de madeira ou de pedra. Seus sortilégios espantavam
os simples. Agora, contudo, após a aparição divina do Verbo, acabaram essas
fantasias. De fato, só pelo sinal da cruz, o homem afugenta estes artifícios.
14. Outrora,
os homens consideravam deuses Zeus, Cronos, Apolo e os heróis, mencionados
pelos poetas, adorando-os erroneamente. Agora, todavia, que o Salvador apareceu
no meio dos homens, foi descoberta sua qualidade de homens mortais, e somente
Cristo é acolhido entre os homens enquanto Deus do Deus verdadeiro, o
Verbo-Deus.
15. Que
dizer da magia, tão admirada entre eles? Antes do advento do Verbo, era todo
poderosa e atuante entre egípcios, caldeus, indianos e enchia de admiração os
espectadores. Mas, pela presença da Verdade e a manifestação do Verbo, foi
igualmente convencida de erro e reduzida inteiramente a nada.
16. Quanto
à sabedoria helênica e às grandes frases dos filósofos, ninguém, a meu ver, carece
de discurso sobre a questão, porque todos podem constatar a seguinte maravilha:
enquanto os sábios da Grécia escreveram tanto, foram incapazes de persuadir até
mesmos alguns de seus vizinhos a abraçarem a doutrina concernente à imortalidade
e à vida virtuosa, Cristo com palavras simples e através de homens de linguagem
inábil convenceu, por toda a terra, numerosas grupos humanos a desprezarem a
morte e a pensarem na imortalidade, a rejeitarem as coisas transitórias, a
olharem para a eternidade, a terem em conta de nada a glória terrena,
pretendendo apenas a da imortalidade.
17. Não
constituem palavras ocas o que acabamos de proferir, pois a própria experiência
atesta sua veracidade.
18. Quem
quiser pode acercar-se para contemplar os sinais da virtude nas virgens de Cristo
e nos jovens que se conservam puros e castos. Verá do coro imenso dos mártires,
a fé na imortalidade.
19. Aproxime-se
quem desejar prova de nossas afirmações e diante das fantasias demoníacas, das
ilusões dos oráculos, dos portentos mágicos, faça uso desse sinal tão escarnecido
entre eles, o sinal da cruz e apenas profira o nome de Cristo. Verá os demônios
fugirem, calarem-se os oráculos, perecerem magia e feitiçaria.
20. Quem,
qual é este Cristo, cujo nome e presença sempre obscurecem e aniquilam todas as
coisas, sozinho é o mais forte e difunde no mundo inteiro seu ensinamento?
Digam-no os gregos, que riem sem pudor.
21. Se é
homem, como sozinho poderia se elevar acima de todos os seus deuses, e
comprovar por seu poder que eles nada são? Se é mago, como é possível a mago
destruir toda a magia, em vez de a fortalecer? Se houvesse vencido os magos,
homens como são, se não tivesse triunfado a não ser de um só dentre eles,
teriam podido pensar com razão que os superava por meio de arte superior.
22. Mas se
a cruz de Cristo alcançou vitória sobre toda espécie de magia, até mesmo sobre
o nome de magia, é evidente que mago não é o Salvador, de quem fogem os
demônios invocados por outros magos, qual de um senhor?
23. Então,
quem é ele? Digam-no os gregos que só cuidam de zombar. Talvez assegurem que
foi demônio e daí provém sua força. Mas, com tal afirmação, tornam-se ridículos,
por sua vez, e os nossos precedentes raciocínios deixam-nos suficientemente confundidos.
Como pode ser demônio quem expulsa demônios?
24. Pois,
se tivesse apenas exorcizado demônios, talvez se pudesse pensar que lhe vem do
príncipe dos demônios o poder contra os subordinados deste último, conforme
asseguravam os judeus, querendo ultrajá-lo (cf. Mt 9.34; Jo 8.48-52). Mas se
apenas a invocação de seu nome exorciza e afugenta a loucura dos demônios,
evidencia-se que nisso também eles se enganam e Cristo nosso Senhor e Salvador
não é, conforme eles opinam, potência demoníaca.
25. Assim,
pois, se o Salvador não é simples homem, nem mago, nem demônio, e a sua
divindade aniquilou e obnubilou as ficções dos poetas, as fantasmagorias dos
demônios, a sabedoria dos gregos, evidencia-se e todos reconhecem que ele é
verdadeiramente o Filho de Deus, Verbo, Sabedoria e Poder do Pai. Por isso,
suas obras não são humanas e sim super-humanas e se fazem notórias como
verdadeiramente oriundas de Deus, conforme os fatos e a comparação com as obras
puramente humanas atestam.
26. Terá
jamais existido homem que plasmasse para si corpo, somente de uma virgem? Que
homem jamais curou doenças tais quais o comum Senhor de todos curou? Quem
supriu deficiência natural, e fez cego de nascença ver?
27. Esculápio
foi divinizado pelos pagãos por ter exercido a medicina e aplicado plantas no
tratamento de doenças corporais. No entanto, ele não as extraiu da terra, e sim
as descobriu, por meio da ciência de que era dotado naturalmente. Que dizer do
Salvador, o qual não apenas curou feridas, mas formou a natureza e reconstituiu
a integridade corporal?
28. Heracles
é adorado como deus pelos gregos, por ter combatido seus semelhantes e com
astúcia eliminado monstros. Que dizer do Verbo, a expelir do corpo humano
doenças, demônios e até a própria morte? Os gregos honram Dioniso porque
ensinou aos homens a embriaguez, enquanto o verdadeiro Senhor e Salvador do
mundo, por ter ensinado a temperança, é objeto de suas zombarias.
29. Sobre
o assunto, basta. Que narrar acerca dos outros milagres operados pela divindade?
Qual a morte que provocou escurecimento do sol e terremoto? Morrem os homens
até hoje e desde o começo morreram. Quando tal maravilha se produziu por causa
disso?
30. Ou
melhor, para calar as obras realizadas corporalmente e mencionar somente as operadas
após a ressurreição do corpo, quem jamais fez sua própria doutrina dominar de uma
extremidade do mundo à outra e permanecer uma só e idêntica em toda parte, a
ponto de se estender seu culto através da terra inteira?
31. E se
Cristo, conforme sua opinião, é apenas homem e não Deus-Verbo, por que seus
deuses não impedem que se espalhe seu culto pelas regiões onde eles habitam?
Por que acontece o oposto, pois o advento do Verbo com sua doutrina põe termo
ao culto e cobre de confusão a vã aparência dos deuses?
A expansão miraculosa e a força divina
do ensinamento de Cristo
32. Anteriormente
existiram muitos reis e tiranos na terra. Contam os historiadores ter
33. havido
entre caldeus, egípcios e indianos, muitos sábios e magos. Qual dentre eles foi
capaz, não digo após a morte, mas até mesmo durante a vida, de ter bastante
poder para encher com seu ensinamento a terra inteira, e de afastar da
superstição idolátrica tão grande multidão como nosso Salvador atraiu,
apartando dos ídolos?
34. Os
filósofos gregos escreveram muitos livros, compostos com eloquência e arte. Teriam
sido tão convincentes quanto a cruz de Cristo? Seus sofismas até a morte conservaram
força persuasiva. Mas durante a vida, o que aparentava força suscitava rivalidades,
e suas discussões se transformavam até em contendas.
35. O
Verbo de Deus, porém (coisa espantosa!) ensinava com palavras bem simples e superou
os mais hábeis sofistas, eliminando suas doutrinas. Atraiu todos a si e encheu suas
igrejas. Mais admirável ainda, sofrendo a morte enquanto homem, confutou as eloquentes
palavras dos sábios sobre os ídolos.
36. Quem,
de fato, por sua morte expulsou demônios? Quem morreu de forma mais temível
para os demônios quanto a de Cristo? Desde que se nomeia o Salvador, os demônios
fogem. Quem eliminou as paixões da alma a ponto de transformar impudicos em
castos, de fazer com que homicidas larguem da espada, de mudar tímidos em corajosos?
37. Quem
persuadiu bárbaros, habitantes de regiões pagãs, a renunciarem ao furor e conceberem
pensamentos de paz, senão a fé em Cristo e o sinal da cruz? Quem transmitiu aos
homens fé na imortalidade quanto a cruz de Cristo e a ressurreição de seu corpo?
38. Apesar
de todas as suas mentiras, os gregos não foram capazes de imaginar uma ressurreição
de seus ídolos, nem de forma alguma pensar que o corpo pudesse reviver após a
morte. Nisto, aliás, é possível aprová-los porque este pensamento convence de fraqueza
a idolatria e oferece oportunidade a Cristo de se dar a conhecer a todos como Filho
de Deus.
39. Quem
após a morte, ou até durante a vida, ensinou a virgindade e estimou não ser impossível
aos homens a prática de tal virtude? Ora, o ensinamento de nosso Salvador e rei
universal, Cristo, sobre o assunto, foi bastante poderoso para que até crianças
antes de atingirem a idade legal, professassem a virgindade, superior à lei.
40. Quem
pode percorrer tais distâncias e ir à busca dos citas, etíopes, persas, armênios,
godos, dos que habitam, como se conta, a região além do Oceano, ou além da Hircânia,
dos egípcios e caldeus, povos praticantes da magia, extremamente supersticiosos,
de costumes selvagens, a fim de pregar-lhes a virtude, a continência, o abandono
do culto idolátrico, conforme fez o Senhor de todos, o Poder de Deus, nosso Senhor
Jesus Cristo?
41. Ele
não somente pregou através de discípulos, mas ainda os dissuadiu interiormente da
selvageria de seus costumes, do culto dos deuses de seus pais e, ao invés,
induziu-os a reconhecê-lo e por seu intermédio adorar o Pai?
42. Outrora
eles eram idólatras. Gregos e bárbaros guerreavam-se mutuamente, cheios de
crueldade até para os de sua raça. Era impossível atravessar a terra ou o mar,
sem uma espada à mão, por causa das lutas irredutíveis entre eles.
43. Passavam
a vida sob as armas, a espada lhes servia de bastão, de sustento, de único recurso.
E no entanto, segundo mencionei acima, serviam os ídolos, sacrificavam aos demônios.
No entanto, essa idolatria supersticiosa em nada se prestava à reforma de sua maneira
de pensar.
44. Ao
adotarem, porém, a doutrina de Cristo (então, coisa maravilhosa!), realmente compungidos
no seu íntimo, renunciaram à crueldade dos assassínios, sem cogitar mais de
guerra. Tudo entre eles tornou-se pacífico e nada mais desejavam que a amizade.
45. Quem
realizou tudo isso, aproximou pacificamente povos que se odiavam, senão o bem-amado
do Pai, o Salvador comum, Jesus Cristo, que no seu amor tudo suportou por nossa
salvação? Há muito profetizara a Escritura que ele traria a paz, nesses termos:
“Quebrará as suas espadas, transformando-as em relhas, e suas lanças em foices.
Uma nação não levantará a espada contra outra, nem se aprenderá mais a guerra”
(Is 2,4).
46. Tal
coisa não é incrível, pois ainda agora os bárbaros, de costumes naturalmente selvagens,
que sacrificam a seus ídolos, enfurecem-se uns contra os outros e não toleram ficar
uma hora desarmados de espadas.
47. Ao
ouvirem, porém, a doutrina de Cristo, logo deixam a guerra e dedicam-se à agricultura.
Em vez de com as mãos tomar da espada, estendem-nas para a oração. Em resumo,
em vez de se guerrearem mutuamente, munem-se contra o diabo e os demônios e
vencem-nos pela temperança e a virtude da alma.
48. Constitui
sinal da divindade do Salvador o fato de que os homens dele aprenderam o que os
ídolos não lhes haviam ensinado. Esta comprovação da fraqueza e nulidade dos demônios
e ídolos não carece de importância. Conhecedores da debilidade humana, os demônios
os incitavam outrora à guerra entre si, a fim de não suceder que, terminadas as
contendas, dirigissem a luta contra os próprios demônios.
49. Assim,
os discípulos de Cristo, que já não se combatem mutuamente, opõem-se aos
demônios, por meio de costumes e ações virtuosas, afugentam-nos, escarnecem-lhe
o chefe, o diabo. Na juventude, guardam a temperança, nas provações a
paciência, nos sofrimentos a capacidade de suportar. Toleram as injúrias,
desprezam as espoliações e o que é admirável, desdenham a própria morte e
tornam-se mártires de Cristo.
50. Acrescentemos
ainda sinal mais admirável da divindade do Salvador. Jamais houve homem, mago,
tirano, rei capaz de assumir tamanha empresa qual a de combater a idolatria e o
exército dos demônios, a magia, a sabedoria grega, tão poderosa, ainda no auge
do vigor, causa de geral admiração, capaz, digo, de se opor a todos, num só
ataque, como o fez nosso Senhor, o Verbo de Deus verdadeiro? Refutava
invisivelmente cada erro, só contra todos, afastando-os dos erros, de sorte que
os adoradores dos ídolos agora calcam-nos aos pés, os admiradores dos magos
queimam-lhes os livros, os sábios preferem a interpretação do evangelho a tudo.
51. Renunciam
aos deuses antes adorados, e adoram aquele que ridicularizavam, Cristo crucificado,
professando que é Deus. São expulsos os que eram tidos na conta de deuses, pelo
sinal da cruz. O Salvador crucificado é proclamado por toda a terra Deus e
Filho de Deus. Os próprios gregos rejeitam envergonhados os deuses que
adoravam; e os que acolhem o ensinamento de Cristo levam vida mais honesta que
a daqueles.
52. Se
todas essas realidades, e outras semelhantes, não passam de coisas humanas, que
se nos apresentem provas de que fatos idênticos sucederam outrora. Se evidentemente
tais feitos não são próprios dos homens, e sim obras divinas, por que continuam
tão ímpios os infiéis, sem aceitarem o Mestre que as operaram?
53. Erram
tanto quanto os que não descobrem a Deus Criador por meio das obras criadas. Se
tivessem crido na divindade por seu poder sobre todas as coisas, teriam igualmente
visto que as obras operadas por Cristo corporalmente não são obras humanas, e
sim do Salvador de todos, o Verbo de Deus. E se o tivessem reconhecido, segundo
a palavra de Paulo: “Não teriam crucificado o Senhor da glória” (1Cor 2.8).
Conclusão: a universalidade efetiva da
encarnação
54. Se
alguém quer ver a Deus, invisível por natureza, e que de forma alguma pode ser
visto, há de apreendê-lo, conhecê-lo por suas obras. Igualmente quem não vê espiritualmente
Cristo, vá se tornando ciente por meio de suas obras corporais, e examine se
derivam de homem ou de Deus.
55. Se
originárias de homem, ria-se delas; se, porém, não se trata de obras humanas, e
sim de Deus, aceite, não se ria daquilo de que não se zomba. Ou melhor,
admire-se de terem realidades divinas aparecido através de meios tão simples e
de se ter a imortalidade, através da morte, estendido a todos; aprecie que a
encarnação do Verbo nos tenha tornado notórios a providência universal e o
Verbo de Deus, regente de coro e demiurgo.
56. Ele se
fez homem para que fôssemos deificados; tornou-se corporalmente visível, a fim
de adquirirmos uma noção do Pai invisível. Suportou ultrajes da parte dos
homens, para que participemos da imortalidade. Com isso nenhum dano suportou,
sendo impassível e incorruptível, o próprio Verbo e Deus. Mas, em sua própria impassibilidade
guardou e preservou os homens sofredores, em prol dos quais tudo isso suportara.
57. Numa
palavra, as ações do Salvador se realizaram depois da encarnação, tais e tão grandes
que os que pretenderem narrá-las hão de assemelhar-se aos que contemplam a amplidão
do mar, buscando contar-lhe as ondas. Da mesma forma com que não se abraça com
o olhar o conjunto das ondas, pois à medida que elas chegam, superam a percepção
de quem experimenta contá-las, também quem quisesse abranger as ações corporais
de Cristo, nem pelo pensamento consegue apreendê-las, pois as que ultrapassam
sua compreensão apresentam-se em maior número do que as que julga ter entendido.
58. É
preferível não falar de tudo que vês, pois até mesmo uma só parte seria inexprimível,
mas deves relembrar um ponto e admirar globalmente o todo. Pois o conjunto é
igualmente admirável, e para onde quer que dirijas o olhar, ficas estupefato divisando
a divindade do Verbo.
Conclusão geral: exortação ao estudo da
Escritura e à prática das virtudes
59. Após
tudo que dissertamos, aprende o que vem em seguida, tendo-o por princípio de
todos esses discursos. Admira-te de que, por ocasião da aparição do Salvador, a
idolatria não se desenvolve, mas o restante diminui e cessa progressivamente. A
sabedoria dos gregos não progride, mas tende a desaparecer. Os demônios não
mais seduzem os homens com suas fantasmagorias, a adivinhação e a magia e desde
que ousam empreender algo, são confundidos pelo sinal da cruz.
60. Em
resumo, vê como a doutrina do Salvador se propaga, enquanto a idolatria e qualquer
oposição à fé de Cristo diminui cada dia, debilita-se e cai. Ao contemplar tudo
isso, adora o Verbo, Salvador de todos e Deus todo poderoso. Condena os que ele
rebaixa e faz desaparecer.
61. Da
mesma forma que ao raiar do sol as trevas desvanecem e ele expulsa o pouco que
delas restar em algum canto, igualmente a divina aparição do Verbo dissipa as
trevas da idolatria e o universo fica iluminado com sua doutrina.
62. Se
acaso um rei não aparece, mas fica dentro de casa, muitas vezes cidadãos sediciosos
abusam de sua ausência, proclamam-se reis e com disfarce iludem os simples, passando
por verdadeiros reis. E assim, os cidadãos são iludidos por este nome. Ouvem dizer
que existe um rei, mas não o veem, porque nem podem entrar em sua morada.
63. Quando,
porém, aparece o genuíno rei e se manifesta, sua presença convence de mentira a
esses rebeldes e os outros, diante do rei verdadeiro, apartam-se de seus
sedutores.
64. Assim,
os demônios há muito seduziam os homens, atribuindo a si mesmos honras divinas;
entretanto, com a aparição corporal do Verbo de Deus que trouxe o conhecimento
de seu Pai, dissipou-se, cessou a ilusão demoníaca. Os homens em presença do
Deus verdadeiro, Verbo do Pai, renunciam aos ídolos e de ora em diante acolhem
o Deus verdadeiro.
65. Eis
uma prova de que Cristo é o Verbo, Deus, Poder de Deus. Uma vez que passam as
realidades humanas e a palavra de Cristo permanece, evidencia-se em geral que
terminou o que é transitório. Subsiste, contudo, Deus, o Filho de Deus, o Verbo
realmente unigênito.
66. Eis o
que te apresento brevemente, amigo de Cristo, acerca dos elementos e do caráter
da fé em Cristo e da divina manifestação entre nós. Sirva-te a oportunidade, se
começas a estudar a Escritura, para aplicar o espírito nessas questões e
apreenderás de forma mais completa e clara a exatidão de nossas asserções.
67. Esses
textos foram proferidos e escritos, da parte de Deus, por homens que dele nos
falam. E nós os recebemos desses mestres divinamente inspirados, testemunhas da
divindade de Cristo. A ti nós os transmitimos, tentando satisfazer teu desejo
do saber.
68. Ficarás
ciente também de seu segundo advento, glorioso e realmente divino, quando não
virá mais na simplicidade, mas na glória que lhe pertence. Não mais com humildade,
e sim na grandeza que possui. Vem, não para sofrer e sim no intuito de comunicar
a todos os benefícios da morte na cruz, isto é, a ressurreição e a incorruptibilidade.
69. Então,
não será julgado, mas julgará a todos os homens sobre as ações que cada qual
tiver praticado na vida corporal, boas ou más; em seguida, o reino dos céus
está reservado aos bons, e quanto aos que praticaram ações más, irão para o
fogo eterno e as trevas exteriores.
70. Pois o
próprio Senhor assim se exprime: “Eu vos digo que de ora em diante, vereis o
Filho do Homem sentado à direita do Poderoso e vindo sobre as nuvens do céu”
(Mt 26-64), na glória do Pai.
71. Por
esta razão, é salutar que o Verbo nos previna relativamente a esse dia e nos diga:
“Estai preparados e vigiai, porque não sabeis em que hora virá” (Mt 24,42-44). Efetivamente,
segundo declara são Paulo: “Porquanto todos nós teremos de comparecer manifestamente
diante do tribunal de Cristo, a fim de que receba cada um a retribuição do que
tiver feito durante a sua vida, seja para o bem, seja para o mal” (1Cor 5,10).
72. Mas,
além do estudo das Escrituras e da ciência genuína, importa a vida honesta, a pureza
da alma e a virtude segundo ensina Cristo, a fim de que o espírito, seguindo
tal caminho, possa obter e aprender o que deseja, tanto quanto é possível à
natureza ser instruída acerca do Verbo de Deus.
73. Se
alguém quer ver a luz do sol, forçosamente há de enxugar e iluminar o olho, purificando-o
para tornar um tanto semelhante ao objeto desejado. Um olho transformado em luz
veja a luz do sol. Quem quiser contemplar uma cidade ou região deve ir aonde
está localizada. Assim, no intuito de se entender o pensamento dos teólogos, deve-se
pelo modo de viver purificar e lavar a alma, assemelhar-se aos santos nas
ações, a fim de que, unidos a eles pela conduta, se compreenda o que Deus lhes revelou.
Unido a eles, evite-se o perigo que ameaça os pecadores, o fogo que os aguarda no
dia do julgamento e receba-se a recompensa reservada aos santos no reino dos
céus, “o que os olhos não viram, os ouvidos não ouviram e o que o coração do
homem não percebeu. Isso Deus prepara para os” (1Cor 2,9) que vivem
virtuosamente e amam seu Deus e Pai, em Cristo Jesus nosso Senhor, por quem e
com quem seja a ele o Pai, com ele, o Filho, no Espírito Santo, honra, poder e
glória nos séculos dos séculos. Amém.
1. O que você destaca no texto?
2. Como
ele serve para sua espiritualidade?
3. O que
você destaca na fala do seu irmão?