domingo, 7 de novembro de 2021

Encontro 189 - Atanásio de Alexandria (285-373) - Sobre a Encarnação (Capítulo 6)

                                    

Encontro 189
Atanásio de Alexandria (285-373)
Sobre a Encarnação (Capítulo 6)

 

CAPÍTULO VI

CONTRA OS GREGOS FILÓSOFOS E IDÓLATRAS. ARGUMENTOS DA

RAZÃO: A CONVENIÊNCIA COSMOLÓGICA DA ENCARNAÇÃO

1.       Quanto aos gregos, é verdadeiramente espantoso como se riem das questões mais respeitáveis, obcecados também acerca de sua própria vergonha, que lhes passa desapercebida, prestando culto a ídolos de pedra e madeira.

2.       Sentindo-nos à vontade na demonstração de nossa doutrina, confundi-los-emos com boas razões, sobretudo por fatos que constatamos. O que existe de estranho, de ridículo, entre nós? Afirmar que o Verbo realmente se manifestou corporalmente? Ora, se querem ser amigos da verdade, hão de reconhecer conosco que não se trata de evento tão estranho.

3.       Se negam inteiramente a existência do Verbo de Deus, perdem tempo por zombarem do que ignoram.

4.       Se assentem, contudo, que existe um Verbo de Deus, senhor do universo, que nele o Pai criou e por sua providência concede a todos os seres a luz, a vida, o ser, que reina sobre todos a ponto de ser possível perceber sua providência e por meio dele, o Pai, examina, por favor, se imperceptivelmente não caem no ridículo.

5.       Os filósofos gregos asseveram ser o mundo um grande corpo, e é verdade. Efetivamente, notamos que caem sob o domínio dos sentidos o mundo e suas partes. Se, portanto, o Verbo de Deus acha-se no mundo material, e veio a todas e a cada uma de suas partes, porque seria espantoso e estranho afirmar que veio também a um ser humano?

6.       Numa palavra, se é estranho que se tenha encarnado, seria também que viesse ao mundo e todos os seres recebessem de sua providência luz e movimento, uma vez que o universo é também corporal.

7.       Consequentemente, se convém que ele venha ao mundo e seja percebido em todo o universo, também é conveniente que apareça com corpo humano, iluminado e movido por ele. Com efeito, o gênero humano é também parte deste todo. E se não se faz mister que esta parte sirva de instrumento ao Verbo para proclamar sua divindade, seria completamente estranho que se desse a conhecer no conjunto do cosmos.

8.       Considerando-se que o homem ilumina e move o corpo inteiro, quem julga estranho atinja a força do homem também um artelho, passaria por insensato, pois, apesar de conceder que o homem está e age no corpo inteiro, negaria estar também numa parte. De igual modo, quem concede e crê estar o Verbo de Deus presente no mundo inteiro, ser o universo iluminado e movido por ele, não se admira de que ilumine e mova um corpo humano.

9.       Se eles acham não ser apropriado falar de aparição humana do Salvador, pelo fato de ser o gênero humano criado, feito do nada, vê que o estão excluindo também da criação, igualmente tirada do nada pelo Verbo.

10.   Embora também a criação tenha sido produzida, e não seja de admirar que o Verbo nela se ache presente, de igual forma não se estranhe que esteja em corpo humano. Conforme concebem o universo, forçoso é que pensem a respeito das partes dele; e, conforme disse, o homem também é parte do universo.

11.   Por conseguinte, não é inconveniente que o Verbo esteja num homem, e que tudo seja nele, e por ele iluminado, movido e vivificado, segundo asseveram até seus próprios autores: “É nele, com efeito, que temos a vida, o movimento e o ser” (At 17,28).

12.   Em que, portanto, será ridículo afirmar que o Verbo se serve qual instrumento para sua manifestação, deste corpo no qual está? Se nele não se achasse, não poderia utilizá-lo.

13.   Começamos por conceder que ele se acha no todo e nas partes. Que há de incrível em que ele se manifeste nas partes onde se encontra?

14.   Estando todo inteiro, por sua virtude, em cada um dos seres e em todos, e organizando tudo com largueza, se quisesse empregar o sol ou a lua, o céu ou a terra, a água ou o fogo, qual voz para se dar a conhecer a si e ao Pai, ninguém se admiraria, considerando que ele contém todas as coisas, e está simultaneamente em cada parte, revelando-se de modo invisível. Assim também se a todo ser ordena e vivifica, e quer se dar a conhecer aos homens, nada de extraordinário que empregue corpo humano qual instrumento para manifestar a verdade, e revelar o Pai. Pois, a humanidade é também parte do todo.

15.   A alma está difundida no homem todo e se manifesta numa parte do corpo, por exemplo, a língua, e ninguém afirma que a substância da alma com isso fica diminuída.

16.   Não se julgue indigno do Verbo, presente em todos os seres, utilizar-se de instrumento humano. Pois, segundo assegurei, se não convém que use o corpo como instrumento, igualmente não fica bem que esteja em todo o mundo.

17.   Por que, questionam eles, em lugar do homem, não se manifestou em outros seres mais nobres da criação? Por que não se serve de instrumento mais belo, como o sol, a lua, os astros, o fogo, o éter? Fiquem cientes de que o Senhor não veio somente para se exibir, e sim para curar e ensinar os que sofriam.

18.   Para se exibir, bastava aparecer e surpreender os espectadores. Mas para curar e instruir, era insuficiente vir, precisando ainda de se pôr a serviço dos necessitados e aparecer de forma adaptada a suas carências, a fim de não perturbar a humanidade sofredora por excesso e não ser improfícua a manifestação divina.

19.   Criatura alguma, senão o homem, equivocava-se no conhecimento de Deus. Pois, nem o sol ou a lua, o céu ou os astros, a água ou o éter, perturbam a ordem estabelecida, mas reconhecendo o Verbo, seu criador e rei, mantém-se tais quais foram criados.

20.   Somente os homens se apartaram do bem, fizeram ídolos de nada em lugar da verdade e atribuíram a honra devida a Deus, o conhecimento de Deus, a demônios, a homens figurados em pedra.

21.   Desta forma, sendo indigno da vontade de Deus desinteressar-se de tal situação, e visto que os homens não o percebiam presente a governar o mundo, assumiu qual instrumento uma parte do todo, o corpo humano, ao qual acedeu. Assim, os homens que não conseguiam conhecê-lo através do todo, não o desconheceriam através de uma parte; uma vez que não podiam erguer os olhos ao poder invisível, ao menos podiam compreendê-lo e contemplá-lo num ser semelhante a si mesmos.

22.   Homens como são, poderiam por meio de um corpo igual ao seu e pelas obras divinas corporalmente realizadas, conhecer mais rapidamente e mais de perto o Pai do Verbo, pela reflexão de não serem humanas e sim divinas, as obras realizadas.

23.   E se acaso se lhes afigurar estranho dê-se o Verbo a conhecer pelas obras corporais, também espantoso será que se manifeste pelas obras operadas no universo. Estando embora no meio da criação, em nada participa dos seres criados, mas, ao invés são estes que participam de seu poder. De igual sorte, utilizando qual instrumento o seu corpo, em nada participa de condições corporais; ao invés, santifica o corpo.

24.   Platão, tão admirado entre os gregos, disse que o autor do universo, vendo-o agitado pela tempestade e em perigo de soçobrar nas desigualdades, assentou-se ao leme da alma e veio socorrê-la, reparando todas as suas faltas. Por que admirar a asserção de que no seio da humanidade desnorteada o Verbo veio se estabelecer, aparecer como homem, a fim de salvá-la da tempestade por sua direção e sua bondade?

 

A conveniência física da encarnação

25.   Talvez eles, envergonhados, concedam tudo isso, tentando, porém declarar que se Deus quisesse instruir e salvar os homens, o fizesse por ato voluntário apenas, como outrora fizera, ao tirar os seres do nada, sem que o Verbo tocasse o corpo.

26.   Provavelmente se responda a essa objeção da seguinte maneira: Outrora, nada existia e bastava um só ato da vontade e um propósito para criar o universo. Depois, contudo, que o homem foi feito e não se impunha fossem seres tirados do nada e sim a cura de seres já existentes, segue-se que o médico e salvador devia aproximar-se das criaturas, para curá-las. Por isso, ele se fez homem e empregou o corpo humano, qual instrumento.

27.   Ao invés, se assim não devia acontecer, de que maneira havia de vir o Verbo, empregando um instrumento? De onde tomá-lo, senão dentre seres já existentes, necessitados do socorro da divindade, por meio de ser semelhante a eles? O nada não carecia de salvação e era suficiente apenas uma ordem. Mas, o homem já existia, entregue à corrupção e à ruína; fez-se mister, então, que o Verbo se servisse de instrumento humano e se estendesse a todas as coisas.

28.   Em seguida, faz-se mister saber que a corrupção não se achava fora do corpo. Nele penetrara. Forçoso era que em vez da corrupção, a vida a ele se apegasse. A morte estivera no corpo, a vida também nele se instalasse.

29.   Assim, se a morte fosse exterior ao corpo, a vida deveria ficar também de fora. Mas, uma vez que a morte se lhe unira, exercendo poder sobre ele, a vida precisava apegar-se ao corpo, a fim de que este, revestindo-se da vida, se livrasse da corrupção. De outro modo, se o Verbo se mantivesse fora do corpo e não dentro, a morte teria sido muito naturalmente vencida, por não possuir poder algum contra a vida. No entanto, a corrupção restaria no corpo no qual se sobrepusera.

30.   Consequentemente, o Salvador devia se revestir de corpo, a fim que este, assim apegado à vida, cessasse de estar unido à morte, enquanto mortal; ao invés, revestindo a imortalidade e ressuscitado, perdurasse imortal. Revestido da corrupção, era impossível ressurgir sem revestir a vida. Além disso, como a morte não subsiste em si mesma, e sim num corpo, o Verbo revestiu corpo, para ir ao encontro da morte neste corpo e fazê-la desaparecer. Como, pois, teria o Senhor demonstrado ser a Vida, senão vivificando o que é mortal?

31.   O fogo naturalmente consome a palha; afastada do fogo, não se queima, continua sendo palha, mas como tal tem medo das ameaças do fogo, pois naturalmente ele a consome. Se, contudo, a palha estiver bem revestida de amianto, o qual, diz-se, é incompatível com o fogo, a palha não mais teme o fogo, apoiada na segurança oferecida por este revestimento incombustível.

32.   O mesmo se pode dizer relativamente ao corpo e à morte. Se o Verbo tivesse apartado a morte somente por uma ordem, o corpo, contudo, manter-se-ia mortal e corruptível, segundo a lei que rege os corpos. A fim de que tal não sucedesse, o corpo vestiu o Verbo incorpóreo de Deus. Assim, não receia mais a morte, nem a corrupção, uma vez que revestiu a vida e a corrupção desapareceu.

 

O que você destaca no texto?

Como serve para sua espiritualidade?

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