domingo, 27 de novembro de 2022

219 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima - Trindade Livro Sétimo (Capítulos 20 - 23)

 


219

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Sétimo (Capítulos 20 - 23)



Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.

O livro VII demonstra, também a partir do testemunho da Escritura, que o Pai e o Filho são um só Deus porque têm a mesma natureza.

 

Capítulo 20.

1.     E em seguida, para que, devido às palavras dá a vida a quem quer, não parecesse possuir a natureza pela natividade e seu poder não parecesse ser o daquele que nasceu do Pai, imediatamente acrescenta: Porque o Pai a ninguém julga, mas entregou ao Filho todo o julgamento (Jo 5,22).

2.     Pelo fato de ter-lhe sido entregue todo julgamento, se demonstra tanto a natureza como o nascimento, porque ter tudo somente pode a natureza não diferente da do Pai. Por outro lado, o que é nascido não pode ter algo, a menos que lhe seja dado.

3.     Mas todo julgamento lhe foi dado, porque dá a vida a quem quer. Não se pode pensar ter sido o julgamento retirado do Pai porque Ele não julga, porque o poder de julgar do Filho provém do poder de julgar do Pai, por quem foi dado todo o julgamento.

4.     A causa pela qual foi dado o julgamento não está velada, pois seguese: entregou ao Filho todo o julgamento, a fim de que todos honrem o Filho como honram o Pai. Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou (Jo 5,22-23).

5.     Que possibilidade existe, ainda, de suspeita, ou que motivo para a impiedade ainda pode haver? O Pai não julga ninguém, mas entregou ao Filho todo o julgamento.

6.     A razão para entregar o julgamento consiste em ter o Filho honra igual à do Pai.

7.     Logo, quem desonra o Filho, desonra também o Pai. Como se pode, depois disso, entender que haja uma natureza diferente no que nasceu, quando não apenas as obras, a virtude, a honra, mas também a desonra, quando lhe negam a honra, são iguais?

8.     A resposta divina não se refere a outra coisa senão ao mistério do nascimento divino, e não se deve distinguir o Filho do Pai, a não ser ensinando que nasceu, mas que não tem uma natureza diferente.

 

Capítulo 21.

9.     O Pai trabalha até agora e também o Filho trabalha. Tens os nomes que indicam a natureza, quando o Pai trabalha e o Filho trabalha.

10. Entende também a natureza operante de Deus, pela qual Deus opera. E para que, talvez, não julgues dever entender duas operações de natureza dessemelhante, lembra-te do que foi dito a respeito do cego: para que se manifestem nele as obras de Deus, devo realizar as obras daquele que me enviou (Jo 9,3).

11. Porque é o Filho quem opera, é obra do Pai, e a obra do Filho é obra de Deus. A palavra seguinte é ainda sobre as obras. Até agora a minha resposta nada esclareceu, a não ser que toda a obra se refere a ambos.

12. A natureza de ambos não se diferencia no operar, visto que o Pai opera, e também o Filho opera. Para que não se pense que o Senhor do sábado trabalha no sábado (pois o Filho do Homem é senhor do sábado – Lc 6,5), saiba-se que, pela natureza da natividade, sua obra tinha em si a autoridade paterna.

13. Por conseguinte, não se confunde nem é abolida a natureza, de forma a não ser o Filho. Também não se exclui a natureza, de forma a não ser Deus; nem se distinguem pela diversidade, de forma a não serem Um; e o fato de serem Um não significa que não sejam um e outro.

14. Em primeiro lugar, reconhece o Filho, quando diz: O Filho, por si mesmo, nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer (Jo 5,19). Tens a natividade do Filho, que, por si mesmo, nada pode fazer, a não ser que veja o Pai fazer.

15. Dizendo que nada poder fazer por si mesmo, afasta o erro dos que professam sua inascibilidade, pois o que nasceu não pode operar por si mesmo.

16. Mas, porque vê, revela o conhecimento da natureza consciente de si mesma. Reconhece agora a verdadeira natureza de Deus nele: Tudo o que o Pai faz, o mesmo também o Filho faz de modo semelhante (Jo 5,19).

17. Depois do poder da natureza, entende o poder da unidade indiferenciável: a fim de que todos honrem o Filho assim como honram o Pai que o enviou (Jo 5,23).

18. E para que a unidade da natureza não se confunda com a unidade de um solitário, aprende pelo mistério da fé: Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou. Fechados estão todos os caminhos para os estratagemas do furor herético.

19. É Filho, porque por si mesmo nada pode fazer; é Deus, porque faz tudo e o mesmo que o Pai faz. São Um, porque se igualam na honra.

20. O Filho faz o mesmo que o Pai e não outra coisa. Ele não é o mesmo que o Pai, porque foi enviado.

21. Somente o nascimento tem este mistério, já que nele se contêm o nome, a natureza, o poder e a confissão, porque tudo o que nasce não pode deixar de ter em si a natureza daquele princípio de onde nasceu.

22. Não recebe de algo exterior a substância, porque vindo do que é Um, não subsiste como diferente.

23. Tudo o que não é alheio a si mesmo é Um na natureza e o que é Um pelo nascimento não é compatível com a solidão, porque a solidão é própria de um sozinho, e a unidade da natividade se refere aos dois.

 

Capítulo 22.

24. Além disso, apresenta-se o testemunho da sentença de Deus sobre si mesmo: Minhas ovelhas escutam minha voz, e eu as conheço, e elas me seguem; eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais perecerão e ninguém as arrebatará de minha mão. O que o Pai me deu, é maior que tudo. Ninguém o poderá arrebatar da mão de meu Pai. Eu e o Pai somos Um (Jo 10,27-30).

25. Quem, indago, quer embotar nossa inteligência pelo rudeestupor da mente, de sorte que não entre em nosso entendimento o que foi dito de modo tão claro? Ou que orgulho de espírito tão insolente ilude a fraqueza humana, para que os que aderem ao conhecimento de Deus julguem, por estas palavras, que não deve ser entendido pelos meios pelos quais é conhecido? Devem ser apresentados outros Evangelhos para nos ensinar? Se somente estes Evangelhos ensinaram sobre Deus, por que não cremos no que ensinaram? Se somente deles vem o conhecimento, por que de onde vem conhecimento não vem também a fé?

26. Quando se descobre que a fé se opõe ao conhecimento, esta fé já não vem do conhecimento, mas sim do crime de assumir para si a fé contrária ao conhecimento confessado.

27. O Deus Unigênito, consciente de sua natureza, indica, com a maior clareza possível, o inenarrável mistério da própria natividade, para a confissão da nossa fé.

28. Deve-se entender que Ele existe na natureza de Deus e que, sendo Um com o Pai e confessando-se tal, não pode ser pensado como solitário. Também não se pode pensar que Ele seja o próprio Pai, perdendo assim sua condição de Filho.

29. Afirma, em primeiro lugar, o poder da natureza, quando diz a respeito de suas ovelhas: Ninguém as arrebatará de minha mão (Jo 10,28). É a palavra de quem, consciente de sua autoridade, proclama a liberdade de um poder inabalável, pelo fato de ninguém arrebatar as ovelhas de sua mão.

30. Porque a sua natureza deve ser entendida como vinda de Deus, acrescenta: O que o Pai me deu é maior do que tudo (Jo 10,29).

31. Não esconde ter nascido do Pai, porque o que recebeu do Pai é maior do que tudo. O que recebeu, possui o que recebe por ter nascido, não depois. No entanto, vem de outro, porque recebe de outro. Para que não se pense que Aquele que recebe é diferente por natureza daquele de quem recebe, diz: Ninguém o arrebatará da mão de meu Pai.

32. De sua mão ninguém arrebata, porque recebe do Pai o que é maior do que tudo. Que quer dizer uma declaração tão diferente: que ninguém arrebata da mão de seu Pai?

33. A mão é do Filho, que recebe do Pai, e é também a mão do Pai, que deu ao Filho. Como não se arrebata da mão do Filho aquilo que não se arrebata da mão do Pai?

34. Se perguntas como, entende: Eu e o Pai somos Um (Jo 10,30). A mão do Filho é a mão do Pai. A natureza não degenera pela natividade, de forma a não ser a mesma, e o fato de ser a mesma não prejudica a idéia da natividade, porque a natividade não admite em si nada de alheio.

35. Pela referência ao que é corpóreo, poderás conhecer o poder da mesma natureza, lembrando-te de que a mão do Filho é a mão do Pai, porque a natureza e o poder do Pai estão no Filho.

36. Finalmente, para que reconheças, pelo mistério da natividade, a verdade da unidade da natureza, foi dito: Eu e o Pai somos Um.

37. Porque são Um, não se pense que há distinção de natureza nem que se trata de um ser solitário, pois é próprio do nascimento e da geração não haver uma natureza diferente no que gera e no que é gerado.

 

Capítulo 23.

38. Permanece, enquanto se pode entender, a vontade das mentes perversas, embora não produza mais seu efeito.

39. O espírito maldoso, mesmo que falte a ocasião de fazer o mal, não abandona o desejo maligno.

40. Agora que o Senhor já está nos céus, o furor dos hereges não pode, a exemplo dos judeus, pregá-lo na cruz; no entanto, com igual infidelidade, negam ser Ele o que é. Já que não podem negar as palavras sem obedecer ao sentido do que foi dito, põem em prática o ódio proveniente da impiedade.

41. Lançam as pedras das palavras e, se pudessem, tornariam a arrastá-lo do trono para a cruz.

42. Sobre os judeus, enfurecidos por causa da novidade desta sua palavra, assim está escrito: Os judeus outra vez apanharam pedras para lapidá-lo. Jesus então lhes disse: “Eu vos mostrei inúmeras boas obras, vindo do Pai; por qual delas quereis lapidar-me?” Os judeus lhe responderam: “Não te lapidamos por causa de uma boa obra, mas por blasfêmia; porque, sendo apenas homem, tu te fazes Deus” (Jo 10,31-33).

43. E tu, ó herege, reconhece o que fazes e confessas, reconhece que és cúmplice daqueles cujo exemplo de perfídia repetes. Quando foi dito: Eu e o Pai somos Um, os judeus pegaram em pedras e, não suportando seu ímpio ressentimento o mistério da fé salutar, ergueram-se com ímpeto para dar-lhe morte.

44. Tu, ao negá-lo, mesmo não tendo pedras, pensas que fazes menos? Não é diferente a vontade, mas o trono celeste tornou ineficaz a tua vontade.

45. Quão mais irreligioso és tu do que o judeu! Este lança pedras no corpo; tu, no Espírito; este, no que julgava homem; tu, em Deus; este, no que iria morrer; tu, no Juiz dos séculos.

46. O judeu diz: Sendo um homem; tu dizes: Sendo criatura. Ambos, porém, dizeis: tu te fazes Deus; esta é a comum injúria proferida contra Ele por vossa ímpia boca.

47. Negas que seja Deus gerado por Deus, que seja Filho pela verdade da natividade. Negas que eu e o Pai somos Um seja a confissão de que nos dois há uma única e semelhante natureza.

48. Supões um Deus de uma nova substância, exterior e alheia, de modo que ou Ele é um Deus de outro gênero, ou absolutamente não é Deus, porque não subsiste pela natividade, vindo de Deus.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para sua espiritualidade?

domingo, 20 de novembro de 2022

218 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Sétimo (Capítulos 14 - 19).

 


218

Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Sétimo (Capítulos 14 - 19)

Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.

O livro VII demonstra, também a partir do testemunho da Escritura, que o Pai e o Filho são um só Deus porque têm a mesma natureza.

 

Capítulo 14.

1.     Pergunto, em primeiro lugar: que novidade poderia o nascimento do Filho trazer à natureza, de modo a não ser Deus?

2.     A inteligência humana não aceita que algo, ao nascer, seja diverso da natureza de sua origem, a não ser que, concebido de naturezas diversas, venha à luz algo de novo em si mesmo (e se fosse assim, participaria de ambos os gêneros e não seria nem de um nem de outro), como acontece com o gado e os outros animais.

3.     A novidade aí não existe, senão porque as propriedades de diversas naturezas se unem, e o que nasce não é causa da diversidade quando recebe em si as propriedades características de ambos.

4.     Se para as causas materiais e paixões assim é, indago então: quem é tão louco que pense referir a natividade do Unigênito a uma natureza degenerada de Deus, quando o nascimento só se produz a partir do que é próprio da natureza daquele que gera?

5.     Pois, se esta propriedade da natureza não existir naquele que nasce, já não haverá natividade.

6.     Daí se origina todo aquele furor e indignação, para que não haja a natividade do Filho de Deus, mas apenas criação, para que Ele não possua a origem subsistente de sua natureza, mas receba do que não existe uma origem alheia a Deus.

7.     De acordo com o dito: O que nasce da carne é carne e o que nasce do Espírito é espírito (Jo 3,6), porque Deus é Espírito, sem nenhuma dúvida, o que nasce não é diferente daquele do qual nasceu.

8.     A natividade de Deus faz, do que nasceu, perfeito Deus, para que se entenda ter Deus nascido e não começado, porque começar pode não ser o mesmo que nascer.

9.     Tudo o que começou existe, ou do nada, para que seja algo novo, ou de um que passa de uma coisa a outra deixando de ser o que era antes, como o ouro vem da terra, os líquidos dos sólidos, os ferventes dos frios, o vermelho do alvo, os animais da água, os seres vivos dos inanimados.

10. O Filho de Deus não começou a ser Deus vindo do nada, mas nasceu e não foi algo diferente, antes de ser Deus.

11. Aquele que nasceu como Deus não começou a ser Deus, nem passou a ser Deus. O que nasceu tem a natureza do que o gerou, e o Filho de Deus não subsiste senão do ser de Deus.

 

Capítulo 15.

12. Se alguém ainda tem dúvida, aprenda dos Judeus a força da natureza, ou melhor, conheça pelo Evangelho a verdade da natividade pelo que está escrito: Por isso os judeus, com mais empenho, procuravam matá-lo, pois, além de violar o sábado, dizia ser Deus seu Pai, fazendo-se igual a Deus (Jo 5,18).

13. Agora, ao contrário do que costuma acontecer, a palavra dos judeus não é citada literalmente. Trata-se, antes, de uma explicação do evangelista, demonstrando o motivo pelo qual os judeus queriam matar o Senhor.

14. Pela impiedade dos blasfemos, frustra-se a tentativa de desculpa baseada no mau entendimento. Pela autoridade do Apóstolo, com a indicação da natividade, demonstra-se a propriedade da natureza: dizia ser Deus seu Pai, fazendo-se igual a Deus.

15. Não será acaso uma natividade conforme a natureza, quando pelo nome de Pai se demonstra a igualdade da natureza?

16. Pois não há dúvida de que, na igualdade, nada é diferente. Quem duvidará de que a natividade provenha de uma natureza não diferente?

17. Somente daí pode proceder a igualdade verdadeira, porque somente a natividade pode dar a igualdade de natureza.

18. Sabe-se, porém, que não há igualdade onde há unicidade. Ela não se encontra também onde há diferença.

19. Assim, a igualdade da semelhança não acarreta a solidão nem a diversidade, porque toda igualdade verdadeira não pode ser nem diferente, nem isolada.

 

Capítulo 16.

20. Embora as considerações de nossa inteligência coincidam com a opinião do senso comum humano, isto é, que a natividade representa a igualdade e onde há igualdade, não pode haver algo de estranho nem de solitário, devemos confirmar, por estes mesmos ditos do Senhor, a fidelidade de nossa palavra, para que a temeridade em contradizer, em nome da liberdade que se tem de entender os nomes de modo diferente, não ouse ir de encontro aos testemunhos e declarações divinas sobre si mesma.

21. Pois responde o Senhor: O Filho, por si mesmo, nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer; tudo o que o Pai faz, o Filho o faz igualmente. Porque o Pai ama o Filho e lhe revela tudo o que faz e lhe manifestará obras maiores do que estas para que vos admireis. Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer. Porque o Pai a ninguém julga, mas confiou ao Filho todo o julgamento, a fim de que todos honrem o Filho, como honram o Pai. Quem não honra o Filho, não honra o Pai que o enviou (Jo 5,19-23).

22. O plano proposto exigia que tratássemos todos os aspectos de cada questão, para que aprendêssemos que nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, é Deus, pelo nome, nascimento, natureza, poder, testemunho, percorrendo nossa demonstração cada etapa deste plano.

23. Mas a natureza do nascimento não comporta esta demonstração, porque, sozinha, abrange o nome, a natureza, o poder e o testemunho. Sem estes, não haverá nascimento, pois, ao nascer, deve conter tudo isto.

24. Portanto, tendo de tratar do nascimento, vemo-nos diante da necessidade acima lembrada, de alterar a ordem do tratado.

 

Capítulo 17.

25. Respondendo o Senhor aos judeus que queriam matá-lo, porque, dizendo ser Deus seu Pai, fazia-se igual a Deus, expôs todo o mistério de nossa fé, enquanto contradizia aviolência deles.

26. Antes, ao ser acusado de ter violado o Sábado, quando curou o paralítico, tornando-se, por isso, réu de morte, tinha dito: Meu Pai trabalha até agora e eu também trabalho (Jo 5,17), para que se entendesse que agia com base na autoridade daquele que lhe servia de exemplo.

27. Mostrou também que o que Ele fazia devia ser tido como obra do Pai, pois era o Pai quem agia.

28. Contra a inveja dos que o acusavam de se fazer igual ao Pai, chamando-o de Pai, disse: O Filho por si mesmo nada pode fazer, mas só aquilo que vê o Pai fazer (Jo 5,19).

29. Para que esta equiparação a Deus, pelo nome e natureza, não destruísse a fé no nascimento, disse que o Filho nada pode fazer por si mesmo, mas só aquilo que vê o Pai fazer.

30. E para que se mantivesse a ordem salutar de nossa confissão do Pai e do Filho, mostrou a natureza que lhe corresponde pelo nascimento, pelo qual não recebe o poder de agir por um acréscimo de forças concedidas para cada ação, mas sim em virtude do conhecimento.

31. Não lhe vem o exemplo de alguma obra material, de modo que primeiro o Pai fizesse o que depois o Filho iria fazer, mas, subsistindo a natureza de Deus na natureza de Deus, isto é, tendo, como Filho, nascido do Pai, pela consciência de ter em si o poder e a natureza paterna, afirmou que o Filho nada pode fazer por si mesmo, mas somente o que vê o Pai fazer.

32. Sendo o Deus Unigênito, atua com a força da divina operação paterna e propõe-se a fazer tudo aquilo que sabe poder fazer a natureza de Deus Pai, de quem é inseparável.

33. Esta natureza, Ele a possui pelo nascimento. Pois não se vê a Deus de modo corporal, mas pertence ao poder da natureza divina ver todas as coisas.

 

Capítulo 18.

34. Por fim, acrescenta: tudo o que o Pai faz, o mesmo também o Filho faz de modo semelhante (Jo 5,19). De modo semelhante indica o nascimento; tudo e o mesmo são ditos para mostrar a verdade da natureza.

35. Em tudo e o mesmo não pode haver diversidade nem diferença quantitativa. Assim, tem a mesma natureza aquele que pode fazer, por sua própria natureza, o que é próprio da natureza do outro.

36. Quando as mesmas coisas são feitas pelo Filho de modo semelhante, está afastada a solidão do que age, porque tudo o que o Pai faz, o Filho também fará o mesmo, de modo semelhante.

37. É esta a compreensão do verdadeiro nascimento e do mistério de nossa fé, que, na unidade da natureza divina, confessa a verdade de uma só e igual divindade no Pai e no Filho, de modo que, fazendo as mesmas coisas, o Filho as faz de modo semelhante e fazendo-as de modo semelhante, faz as mesmas coisas que o Pai.

38. Uma única afirmação mostra que as coisas feitas de modo semelhante atestam o nascimento; fazer as mesmas coisas atesta a natureza divina.

 

Capítulo 19.

39. A resposta do Senhor confirma o conteúdo da fé eclesiástica, não distinguindo a natureza e significando a natividade, porque assim continua: o Pai ama o Filho e lhe revela tudo o que faz e lhe manifestará obras maiores do que estas, para que vos admireis. Como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer (Jo 5,20-21).

40. Acaso a manifestação das obras apresenta-nos aqui algo diferente do nascimento, para que creiamos no Filho subsistente, que procede do Deus Pai subsistente?

41. A não ser que se deva crer que o Deus Unigênito precise, devido a sua ignorância, da demonstração da doutrina! Não se pode admitir tal temeridade deste ímpio modo de julgar. Pois não precisa ser ensinado quem já sabe o que deve ser ensinado.

42. Após ter dito: O Pai ama o Filho e lhe revela tudo o que faz; para mostrar que esta revelação do Pai é nossa doutrina de fé, para que confessemos o Pai e o Filho e para que não se possa pensar que haja alguma ignorância no Filho, a quem o Pai revela todas as coisas que faz, logo acrescenta: E lhe manifestará obras maiores, para que vos admireis. Pois assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer.

43. O Filho não desconhece a revelação das obras futuras, que devem ser dadas a conhecer a Ele para que dê vida aos mortos, a exemplo da natureza do Pai. O que o Pai vai mostrar ao Filho causará admiração.

44. Em seguida ensina quais serão estas coisas: assim como o Pai ressuscita os mortos e os faz viver, também o Filho dá a vida a quem quer.

45. O poder de ambos é o mesmo, por causa da unidade da natureza indiferenciada. As obras não se manifestam para instruir o Filho ignorante, mas para a nossa fé, porque não levam ao Filho o conhecimento de coisas ignoradas, mas trazem a nós o conhecimento de sua natividade e a confirmam, ao mostrar que a Ele foi revelado tudo o que pode fazer.

46. A palavra divina faz uso de moderação, para que não aconteça que, por causa de uma ambigüidade, se pense que indica diversidade de natureza.

47. Diz que as obras do Pai foram mostradas ao Filho, mas não que o poder da natureza divina lhe tenha sido dado para poder fazê-las. Ensina-se, assim, que a manifestação das obras pertence à essência do que nasce, pertence Àquele que, pelo amor do Pai, possui o conhecimento das obras que o Pai deseja que sejam realizadas por Ele.

48. Além disso, para que, pela confissão das obras do Pai, não se acreditasse haver no Filho uma natureza distinta e ignorante, diz que não desconhece o que lhe deve ser mostrado.

49. Tanto não tem necessidade de um modelo para agir, que vai dar à vida a quem quer, e o querer pertence à natureza livre, que possui a vontade do seu livre-arbítrio para obter a felicidade do seu perfeito poder.

 

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Como ele serve para sua espiritualidade?