domingo, 4 de dezembro de 2022

220 - Hilário de Poitiers (315-368) - O Tratado da Santíssima Trindade - Livro Sétimo (Capítulos 24 - 28).

 




Hilário de Poitiers (315-368)

O Tratado da Santíssima Trindade

Livro Sétimo (Capítulos 24 - 28)


 


Divisão do Tratado

O Tratado está dividido em 12 livros.

O livro I começa autobiografia. Refere-se às heresias e apresenta um plano geral do trabalho.

O livro II é um resumo da doutrina da Trindade.

O livro III trata do mistério da distinção e unidade do Pai e do Filho.

No livro IV o autor apresenta a carta de Ário a Alexandre de Alexandria e demonstra a divindade de Filho a partir de citações tiradas do Antigo Testamento.

O livro V também cita o Antigo Testamento para demonstrar a divindade do Filho, que não é um outro Deus ao lado do Pai.

O livro VI refere-se novamente à carta de Ário e argumenta a partir do Novo Testamento.

O livro VII demonstra, também a partir do testemunho da Escritura, que o Pai e o Filho são um só Deus porque têm a mesma natureza.

 

Capítulo 24.

1.     Tu te enfureceste com o mistério desta palavra: Eu e o Pai somos Um. Quando o judeu diz: Sendo um homem, tu te fazes Deus, tu, com igual impiedade, dizes: Sendo criatura, te fazes Deus (pois dizes: Não és Filho pela natividade, não és Deus verdadeiro, és a criatura mais excelente que as outras, mas não és nascido para ser Deus, porque não admito natividade de uma natureza vinda do Deus Incorpóreo. Tu e o Pai não sois Um, e tu nem és Filho, nem és semelhante, nem és Deus).

2.     O Senhor responde aos judeus, porém a resposta é mais adaptada à tua impiedade: Não está escrito na Lei: “Porque eu disse, sois deuses”. Se, portanto, chama deuses àqueles aos quais se dirigiu a palavra de Deus, e não se pode negar a Escritura, Aquele que o Pai santificou e enviou a este mundo, vós dizeis que blasfemou por ter dito: “Sou Filho de Deus”? Se não faço as obras do Pai, não creiais em mim mas se as faço, e não quereis crer em mim, crede nas obras, para que saibais e conheçais que o Pai está em mim, e eu nele (Jo 10,34-38).

3.     O motivo da resposta foi a acusação de blasfêmia. Pois foi-lhe imputado o crime de, sendo homem, fazer-se Deus. Acusavam-no de se fazer de Deus por ter dito: Eu e o Pai somos Um.

4.     Para demonstrar que Ele e o Pai são Um pela própria natureza da natividade, em primeiro lugar refuta a inépcia da ridícula acusação dos que consideravam crime fazer-se Deus, sendo homem. Se a Lei atribui aos santos homens esta apelação e a palavra imperecível de Deus confirmou esta atribuição do nome, como então Aquele a quem o Pai santificou, e a quem enviou a este mundo, seria blasfemo ao  confessar ser Filho de Deus, quando a imperecível palavra de Deus considerou ser deuses aqueles que a Lei assim denominou? Portanto, já não é crime que, sendo Homem, se faça Deus, quando, aos que são homens, a Lei chamou de deuses.

5.     Aquele a quem Deus santificou (toda a resposta aqui é sobre o Homem, porque o Filho de Deus é também Filho do Homem) não parece ter usurpado este direito, ao se chamar a si mesmo de Filho de Deus, já que se avantaja aos outros, que podem, sem ofensa à divindade, ser chamados de deuses, pelo fato de ser santificado como Filho.

6.     São Paulo nos dá o conhecimento desta santificação ao dizer: que antes prometera, pelos Profetas na Sagrada Escritura, a respeito de seu Filho, nascido da estirpe de Davi, segundo a carne, e estabelecido Filho de Deus com poder, segundo o Espírito de santidade (Rm 1,2-4).

7.     Cesse, portanto, a acusação de blasfêmia, por dizer que é Deus, sendo Homem, pois a palavra de Deus deu a muitos este nome, e Aquele que foi santificado e enviado pelo Pai não declarou outra coisa senão ser Filho de Deus.

 

Capítulo 25.

8.     Não há mais lugar, assim penso, para a ambigüidade, pelo fato de ter sido dito, a respeito da natureza recebida por nascimento, Eu e o Pai somos Um.

9.     Pois, quando os judeus o censuraram porque, com suas palavras, sendo homem, se fazia Deus, sua resposta confirmou que a palavra Eu e o Pai somos Um mostra que Ele é o Filho de Deus, primeiro pelo nome, em seguida pela natureza, finalmente pela natividade. Pois eu e o Pai são nomes de realidades.

10. Um é declaração da natureza, porque não difere aquilo que um e outro são; somos não permite pensar que sejam uma só pessoa. E porque somos um não significa unicidade de pessoa, é a natividade que os faz serem um. Tudo isso provém de que Aquele que foi santificado pelo Pai se tenha declarado Filho de Deus.

11. A declaração de que é Filho de Deus confirma as palavras Eu e o Pai somos Um; porque não é possível que a natividade possa trazer uma natureza diferente daquele da qual subsiste.

 

Capítulo 26.

12. A palavra do Deus Unigênito consuma todo o mistério da nossa fé, pois, respondendo à acusação de que, sendo homem, se fazia Deus, para que a palavra Eu e o Pai somos Um fosse absoluta e perfeitamente compreendida, acrescentou logo: Vós dizeis que blasfemei, quando disse: Sou Filho de Deus. Se não faço as obras do Pai, não creiais em mim; mas se as faço, e não quereis crer em mim, crede nas obras; para que saibais e conheçais que o Pai está em mim, e eu nele (Jo 10,36-38).

13. Já não há esperança de salvação para a desenfreada audácia e para a consciência cuja completa impiedade é professada sem escrúpulo.

14. Se alguém já perdeu a religião e não se envergonha de sua estultice, contradizer a isto significa mais insensatez do que ignorância.

15. O Senhor dissera Eu e o Pai somos Um. Este é o mistério da natividade: que o Pai e o Filho existam na unidade da natureza. E se a presunção de possuir a natureza era considerada crime, revela a razão da presunção. Pois diz: Se não faço as obras do Pai, não creiais em mim (Jo 10,37).

16. Se não faz as obras do Pai, não se deve crer nele quando declara ser Filho de Deus. Portanto, o que nasceu não tem uma natureza nova e alheia porque se deve crer no Filho por realizar as obras do Pai.

17. Como pode existir aqui adoção ou concessão de um nome, para que se possa negar ser Filho de Deus por natureza, quando se deve crer que Ele é Filho de Deus, pelas obras provindas da natureza paterna?

18. A criatura não se iguala nem é semelhante a Deus. Não se pode comparar a Ele o poder de uma natureza diversa. Somente se pode crer, sem impiedade, que Aquele que nasce como Filho seja igual a Ele, pois tudo o que está fora dele só pode ser equiparado a Ele com injúria para a honra de seu poder divino.

19. Se fosse possível encontrar algo que não procede dele, semelhante a Ele e com o mesmo poder, perder-seia o privilégio de Deus, ao compartilhá-lo com um igual. Já não seria o Deus Uno, se não fosse diferente de um outro deus.

20. Ao contrário, não há desonra na igualdade das características próprias, porque o que é semelhante a Ele é dele. O que, pela semelhança, se lhe compara, procede dele e o que pode realizar suas obras não existe fora dele.

21. Significa um acréscimo de dignidade ter gerado, sem alienar a sua natureza, a quem tem este poder.

22. O Filho realiza as obras do Pai e por isso pede que se creia ser Filho de Deus.

23. Não é arrogante presunção pedir para ser aprovado somente por aquilo que realiza. Atesta que não faz as suas obras, mas as do Pai, para que não aconteça que, pela magnificência dos atos, se retire dele a condição de Filho.

24. E porque, sob o mistério do corpo assumido e do Homem nascido de Maria, não se poderia entender ser Ele o Filho de Deus, pede-nos que tenhamos fé por causa de suas obras, quando diz: Mas se as faço, e não quereis crer em mim, crede pelas obras (Jo 10,38).

25. Não quer que se creia que é Filho de Deus, a não ser pelas obras do Pai que Ele realiza. Porque, se realiza as obras e, pela humildade do corpo, parece indigno da profissão de fé, pede que creiamos nas obras.

26. Por que o mistério do nascimento como homem impedirá que se reconheça o nascimento divino, se o que nasceu de Deus realiza toda a sua obra sob o ministério do Homem assumido?

27. Se, portanto, não se crê, pelas obras, que o Homem seja Filho de Deus, que se acredite nas obras como sendo do Filho de Deus, porque não se pode negar que sejam obras de Deus.

28. O Filho de Deus, por seu nascimento, tem em si tudo o que é de Deus. A obra do Filho é obra do Pai, porque o que nasce não pode existir fora da natureza da qual subsiste e tem em si a natureza da qual subsiste.

 

Capítulo 27.

29. Fazendo as obras do Pai e pedindo que, se não cressem nele, cressem ao menos pelas obras, teve de demostrar que obras eram estas em que se devia crer. É o que se segue: Mas se as faço, e não quereis crer em mim, crede nas obras, para que saibais e conheçais que o Pai está em mim, e eu nele (Jo 10,38).

30. Isto é o mesmo que dizer: sou o Filho de Deus; e: Eu e o Pai somos Um. É esta a natureza da natividade, é este o mistério da fé salutar: não dividir a unidade, nem excluir da natureza divina o que nasceu e confessar a realidade do Deus vivo, que procede do Deus vivo.

31. O que é a vida não subsiste vindo de partes compostas e inanimadas, o que é a força não é formado de elementos fracos, o que é luz não se coaduna com o que é obscuro, o que é Espírito não é formado de coisas díspares.

32. Tudo nele é uno, de modo que o que é Espírito, também seja luz, força, vida, e o que é vida seja luz, força e Espírito.

33. O que diz: Eu sou e não mudo (Ml 3,6) não se divide em partes nem muda de gênero. O que acima se disse não existe nele como diversas partes, mas constitui um todo uno e perfeito pois o Deus vivo é tudo.

34. Ele é o Deus vivo e o eterno poder da natureza viva. O que nasce dele com o mistério de sua ciência não pode ter nascido a não ser como vivente. Ao dizer: Assim como o Pai que vive me enviou, e eu vivo pelo Pai (Jo 6,59), ensinou estar nele a vida, pelo Pai que vive.

35. Ao dizer: Assim como o Pai tem a vida em si mesmo, também deu ao Filho ter a vida em si mesmo (Jo 5,26), atestou que tudo o que em si é vivo vem do que vive.

36. E porque nasceu vivo daquele que vive, tem o dom da natividade, sem uma nova natureza. Não é novo o que é gerado vivo daquele que é vivo, porque não se obtém a vida a partir do nada para que se dê o nascimento.

37. A vida que recebe da vida o nascimento deve estar, forçosamente, no que vive e deve ter em si, como vivo, o que vive pela unidade de natureza e pelo mistério do nascimento perfeito e indizível.

 

Capítulo 28.

38. Lembramo-nos de ter advertido, no início da explanação, que as comparações humanas não correspondem satisfatoriamente às realidades divinas; iluminam, con tudo, em parte, nossa inteligência para compreender os exemplos, a partir de formas corporais.

39. Pergunta aos que conhecem o modo de ser da natividade humana se não permanece nos pais a origem dos que nascem. Os elementos inanimados e disformes, pelos quais se inicia o processo do nascimento, passam para outro ser humano, permanecendo, no entanto, em virtude da natureza, dentro de ambos.

40. Por ter dado origem a uma natureza igual, o que gera continua no que nasce. O que nasce continua no que gera, pela natividade recebida, cujo poder, apesar de derivado, não é retirado. Citamos isto para compreensão da natividade humana, não como exemplo perfeito da natividade do Deus Unigênito, porque a fraqueza da natureza humana se forma com elementos desiguais e se compõe de coisas inanimadas.

41. O que é gerado nela, nem vive imediatamente nela, nem participa inteiramente da vida, já que são muitas as coisas que, tendo crescido, desaparecem sem que a sua natureza o perceba. Em Deus, porém, tudo o que existe vive. Pois Deus é a vida e da vida não pode sair nada que não seja vivo. O nascimento não se dá por emanação, mas pelo poder divino. Em Deus tudo vive, e o que dele nasce  é inteiramente poder. Há nascimento, mas não há mudança; Deus comunica a natureza ao que dele procede, mas não perde a natureza. Continua no Filho ao qual deu o ser, devido à semelhança da natureza não diferenciada, e o Filho, ao nascer, não perde a natureza pela qual vive a partir daquele que vive.

 

O que você destaca no texto?

Como ele serve para sua espiritualidade?

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