O livro IX refuta os argumentos arianos
sobre a inferioridade do Filho. É preciso distinguir em Cristo as duas
naturezas e os diversos estágios, antes da encarnação, na sua vida terrena e
depois da ressurreição.
Capítulo
10.
1.
Consumou-se assim o mistério da
assunção do homem: Vós estáveis mortos pelas vossas faltas e pela
incircuncisão de vossa carne e Ele vos vivificou juntamente com Cristo. Ele
perdoou todas as nossas faltas: destruiu, em detrimento das ordens legais, o
quirógrafo da sentença contra nós e o suprimiu pregando-o na cruz, na qual despojou
os principados e as potestades exibindo-os em espetáculo, levando-os em cortejo
triunfal e delas triunfando em si mesmo (Cl 2,13-15).
2.
O homem do mundo profano não entende o sentido
da fé apostólica que não pode ser explicada por nenhuma linguagem diferente da
sua própria.
3.
Deus ressuscitou dentre os mortos a
Cristo, no qual habita a plenitude da divindade, corporalmente, vivificou-nos
juntamente com Ele, perdoando nossos pecados, destruiu o quirógrafo da lei do
pecado que, pelas prescrições anteriores, nos era contrário e suprimiu-o,
pregando-o na cruz.
4.
Despojando a si mesmo da carne, pela
lei da morte, exibiu em espetáculo as potestades vencidas em si mesmo.
5.
Das potestades vencidas nele, dadas em
espetáculo e do quirógrafo destruído, já tratamos acima. Porém, quem alcança
este mistério ou pode dele falar?
6.
A ação de Deus ressuscita Cristo dentre
os mortos, esta mesma ação nos vivifica com Cristo, perdoa os pecados, destrói
o quirógrafo e prega-o na cruz, despoja-se da carne, exibe em espetáculo as
potestades e delas triunfa em si mesmo.
7.
Tens aí a ação de Deus ressuscitando
Cristo dentre os mortos, tens também a Cristo realizando em si mesmo aquilo que
Deus realiza, pois Cristo morreu despojando-se da carne.
8.
Crê firmemente que Cristo Homem foi
ressuscitado dos mortos por Deus e que Cristo Deus, quando tinha de morrer,
operou nossa salvação.
9.
Pois quando Deus realiza estas obras em
Cristo, embora seja Deus que as realiza, é Cristo que, para morrer, se despoja
da carne.
10. Quando
Cristo morreu, tendo atuado como Deus antes da morte, foi a ação de Deus que
ressuscitou o Cristo morto, pois o que ressuscitou Cristo dentre os mortos é o
mesmo Cristo que atuou antes da morte, e é o mesmo que, para morrer,
despojou-se da carne.
Capítulo
11.
11. Entendes
agora o mistério da fé apostólica? Já tens o Cristo por conhecido? Pergunto-te:
quem é o que se despoja da carne, e o que é a carne de que se despojou?
12. Nas
palavras do Apóstolo percebo um duplo significado: o da carne de que se
despojou e de Cristo que se despojou da carne. Ouço que Cristo foi ressuscitado
dos mortos pela ação de Deus. Se é Deus que ressuscita Cristo dentre os mortos
e se Cristo é ressuscitado dos mortos, indago quem se despojou da carne e quem
ressuscitou Cristo dentre os mortos e nos vivifica com Cristo.
13. Se
Cristo morto e a carne de que se despojou não são o mesmo, qual é o nome da
carne de que se despojou e qual é a natureza do que se despojou da carne?
14. Vejo
que são o mesmo: o Deus Cristo ressuscitado dos mortos é o que se despojou da
carne. A carne de que se despojou é Cristo ressuscitado dos mortos, no qual
encontro Aquele que, triunfando, expôs em espetáculo os principados e as potestades
vencendo-as em si mesmo.
15. Reconheces
o que triunfa sobre as potestades em si mesmo? Percebes que não diferem entre
si o que se despojou da carne e a carne de que se despojou? Triunfa em si
mesmo, isto é, naquela carne de que se despojou. Percebes assim que se afirma
que Ele é Deus e Homem, atribuindo-se a morte ao Homem e a ressurreição da
carne a Deus, e que, no entanto, não é um o que morreu, e outro Aquele por quem
o que morreu ressuscita?
16. A
carne de que se despojou é Cristo morto, e o que ressuscita Cristo dentre os
mortos é o mesmo Cristo que se despojou da carne.
17. Vê a
natureza de Deus no poder da ressurreição e, na morte, reconhece a economia da
encarnação. E tendo em ambas atuado as respectivas naturezas, lembra-te de que
Jesus Cristo é um só e é Deus e Homem.
Capítulo
12.
18. Lembro-me
de que o Apóstolo atribui frequentemente a Deus Pai ter ressuscitado Jesus
Cristo dentre os mortos. Mas o Apóstolo não vai contra a fé evangélica nem se contradiz,
principalmente porque o próprio Senhor disse: Por isso o Pai me ama, porque eu
entrego minha vida para retomá-la. Ninguém a tira de mim, mas eu a entrego por mim
mesmo. Tenho o poder de entregá-la e o poder de recebê-la de novo. Este mandamento
eu o recebi de meu Pai (Jo 10,17-18).
19. Também,
quando lhe perguntaram que sinal mostraria para que se cresse nele, falou do
templo de seu corpo: Destruí este templo, e eu em três dias o reerguerei (Jo
2,19).
20. Pelo
seu poder de recobrar a vida e de reerguer o templo, ensina ser Ele mesmo o
Deus que opera a ressurreição, porém refere sempre ao mandato paterno sua
autoridade.
21. O
Apóstolo não ensina o contrário ao pregar a Cristo como poder de Deus e
sabedoria de Deus, referindo a magnificência de toda sua obra à glória do Pai,
porque, o que quer que Cristo faça, é o poder e sabedoria de Deus que o faz e
tudo o que é feito pelo poder e sabedoria de Deus é, sem dúvida, ação de Deus,
de quem Cristo é sabedoria e poder.
22. Cristo
foi ressuscitado dos mortos pela ação de Deus, porque realiza as obras de Deus
Pai, por sua natureza não diferente da natureza de Deus. Nossa fé na
ressurreição é a fé em Deus que ressuscitou Cristo dentre os mortos.
Capítulo
13.
23. O
Santo Apóstolo, em sua pregação, manteve a afirmação de que há em Cristo estes dois
aspectos: a fraqueza do homem e o poder da natureza de Deus. Assim disse aos Coríntios:
Foi crucificado na fraqueza, mas vive pelo poder de Deus (2Cor 13,4), mostrando
que a morte é própria da fraqueza humana, e a vida é própria do poder de Deus.
24. Disse
também aos Romanos: Porque, morrendo, Ele morreu para o pecado de uma vez
por todas, mas vivendo, vive para Deus. Assim também vós, considerai-vos mortos
para o pecado, mas vivos para Deus no Cristo Jesus (Rm 6,10-11).
25. Atribuía
a morte ao pecado, isto é, ao nosso corpo; a vida, porém, a Deus, a quem
pertence por natureza viver. Por isso é necessário morrer para nosso corpo para
viver para Deus em Cristo Jesus, que assumiu nosso corpo de pecado e vive
inteiramente para Deus e que, tendo unido a si a nossa natureza, tornou-a
participante da comunhão com a imortalidade divina.
Capítulo
14.
26. Deveria
demonstrar estas coisas com poucas palavras, para lembrar que, no Senhor Jesus
Cristo, deve-se considerar uma pessoa que tem as duas naturezas.
27. O que
existia na forma de Deus assumiu a forma de servo, pela qual foi obediente até
a morte, porque a obediência até a morte não se realiza na forma de Deus, assim
como a forma de Deus não está na forma do servo. Porém, em virtude do mistério
da dispensação evangélica, o que está na forma de servo não é distinto do que
está na forma de Deus, embora não seja a mesma coisa assumir a forma de servo e
permanecer na forma de Deus.
28. O que permanecia
na forma de Deus não podia assumir a forma de servo senão despojando-se de si
mesmo, já que as duas formas se excluem mutuamente.
29. O que
se despojou e tomou a forma de servo não é diferente nem é outro, pois o que
não existe não pode assumir coisa alguma, visto que assumir algo é próprio de
quem existe.
30. O
esvaziamento da forma não representa aniquilamento da natureza. O que se
despoja de si mesmo não deixa de existir, e o que recebe algo permanece.
31. Sendo
o mesmo o que se despoja de uma forma e assume a outra, há um mistério nesse
despojamento e assunção, mas não há destruição do ser, como se o que se despoja
deixasse de existir e o que assume não existisse.
32. Cristo,
que existia na forma de Deus, se despoja da forma de Deus para que a forma de
servo seja assumida, não para que Ele deixe de ser Cristo, pois é Cristo que
assume a forma de servo.
33. Quando
se despojou de si mesmo, a mudança no modo de ser ao assumir a natureza humana
não destruiu sua natureza divina, que permanece, para que, permanecendo Cristo
Espírito, o mesmo Cristo, no corpo, fosse Homem.
Capítulo
15.
34. Já
expusemos a economia dos mistérios, de que os hereges se servem para enganar os
simples, atribuindo à fraqueza da divindade tudo o que foi feito e dito pela
natureza humana assumida e referindo à forma de Deus o que é próprio à forma de
servo.
35. Agora é
preciso responder a todas as suas proposições. Podemos julgar de maneira segura
qual seja o gênero de cada uma das suas afirmações, visto que a verdadeira fé
consiste em confessar o Verbo e a carne, isto é, Deus e Homem, Jesus Cristo.
36. Os
hereges julgam poder negar que Nosso Senhor Jesus Cristo seja Deus por
natureza, porque disse: Por que me chamas bom? Ninguém é bom a não ser o
único Deus (Mc 10,18).
37. O
sentido de toda resposta deve, necessariamente, provir da causa da pergunta.
Assim, responderemos de acordo com o que se quer saber.
38. Primeiro,
indago do falso intérprete deste dito, se pensa que o Senhor, ao ser chamado de
bom, teria preferido ser chamado de mau. Pois é isto que parece significar a
pergunta: Por que me chamas bom? Não penso haver alguém tão perverso que
queira atribuir uma confissão de maldade a quem disse: Vinde a mim todos os
que estais fatigados e sobrecarregados, e eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu
jugo, e aprendei de mim que sou manso e humilde de coração, e encontrareis repouso
para vossas almas. Pois o meu jugo é suave, e o meu peso é leve (Mt 11,28-30).
39. Ele,
que declarara ser manso e humilde, acaso se irritaria por ter sido dito bom?
Esta diversidade nas declarações mostra ser contraditório que alguém que
afirmou sua bondade não aceite ser chamado de bom. Portanto, não se entende que
se tenha irritado por ter sido chamado de bom. Deve-se indagar se Aquele que
não podemos crer que tenha recusado o nome de bom não estaria refutando alguma
outra afirmação a seu respeito.
Capítulo
16.
40. Vejamos,
então, o que disse, além de chamá-lo de bom, o que interrogava. Disse: Bom
Mestre, que farei de bom? (Mc 10,17). Chamou-o com dois nomes: bom e
mestre. Já que não o censura por ter dito bom, será preciso,
então, que o censure por ter sido chamado bom mestre.
41. Ao
recusar o apelativo de bom mestre, questiona antes a fé do interrogante
do que o nome de mestre ou de bom. Pois o jovem que se orgulhava da observância
da Lei não conhecia a Cristo como o fim da Lei e julgava ser justificado pelas
obras. Não entendia que Ele tinha vindo para salvar as ovelhas perdidas da casa
de Israel (cf. Mt 15,24), o que era impossível para a Lei, porque é pela fé na
justificação que os crentes são salvos (Rm 8,3).
42. Interrogou,
como a um mestre dos preceitos comuns e dos escritos da Lei, ao Deus Unigênito
e Senhor da Lei.
43. Rejeitando
essa profissão de fé irreligiosa, porque era interrogado como mestre da Lei,
respondeu: Por que me chamas bom? E para indicar como se deve entendê-lo
e confessá-lo como bom, acrescentou: Ninguém é bom, a não ser o único Deus (Mc
10,18), não rejeitando assim o nome de bom, se, como a Deus, lhe fosse
atribuído.
Capítulo
17.
44. Finalmente,
mostrando que recusava ser chamado bom mestre pela fé daquele que o interrogava
como a um homem, censurou a petulância do jovem que se gloriava por cumprir a
Lei e respondeu: Uma coisa ainda te falta: vai, vende tudo o que tens, e dá aos
pobres e terás um tesouro nos céus; e depois vem e segue-me (Mc 10,21).
45. Não rejeita
para si o nome de bom Aquele que promete os tesouros celestes, nem nega ser Mestre
Aquele que se apresenta como o guia da perfeita beatitude. Censura, porém, a fé
que se fundamenta na opinião terrena sobre Ele e ensina que somente em Deus há bondade.
46. Indica
ser Ele mesmo o Deus bom e dá provas de sua bondade abrindo os tesouros
celestes e propondo-se a guiá-lo para alcançá-los.
47. Eis
por que não aceitou o que lhe era atribuído como a um simples homem. Contudo,
não se mostrou alheio àquilo que se atribuía a Deus, já que, confessando o
único Deus bom, mostrava que o que dizia e fazia, pertencia ao poder, à bondade
e à natureza do Deus único.
Capítulo
18.
48. Não
recusou o nome de bom, nem a honra de mestre, mas censurou a fé
de quem só apreciava nele o que é corpóreo e carnal. Isso ficou demonstrado
quando, falando aos Apóstolos que o chamavam de mestre, disse: Vós me chamais
de mestre e de Senhor, e dizeis bem, eu o sou na verdade (Jo 13,13), e
também: Não vos chameis de mestres, porque vosso mestre é o Cristo (Mt
23,10).
49. Quando,
com fé, é chamado de mestre, aceita de bom grado que lhe atribuam este nome;
contudo, não consente em ser chamado de bom mestre quando não é
considerado nem Senhor nem Cristo. Pregando um único Deus bom, na verdade, não
se separa de Deus Aquele que também se declarou Senhor e Cristo, revelando-se
guia para os tesouros celestes.
Capítulo
19.
50. Manteve
sempre o Senhor o que é a norma da fé eclesiástica, pregando o Único Deus Pai,
sem se separar do mistério do Deus único. Declarou que, pela natureza da natividade,
não é um outro Deus, nem é o mesmo que o Pai, porque a natureza do único
Deus que nele existe não admite que seja um Deus de gênero diferente e a
natividade divina faz com que seja perfeito Filho.
51. Não
pode ser separado de Deus, nem é o mesmo que Ele. Por isso, guarda a moderação
em todas as suas palavras, de modo a indicar discretamente que a honra que se
atribui a Deus Pai pertence também a Ele. Se Ele disse: Crede em Deus, crede
também em mim (Jo 14,1), pergunto em que é diferente pela natureza daquele
de quem não é diferente pela honra?
52. Pois,
ao dizer: Crede também em mim, depois de ter dito crede em Deus, as
palavras em mim indicam ser também sua a natureza.
53. Separa,
portanto, a natureza, já que separas a fé. Se a vida consiste em crer em Deus
sem crer em Cristo, separa Cristo de Deus pelo nome e pela natureza. Mas, se cremos
que, pela fé em Cristo, os que creem em Deus são conduzidos à vida perfeita, que
o diligente leitor aprecie a força da palavra: Crede em Deus, crede também
em mim. Dizendo: Crede em Deus, crede também em mim, assimilou à fé
em Deus a fé que se deve ter nele e uniu a sua natureza à natureza de Deus.
54. Tendo
mencionado a Deus, em quem é necessário crer, ensinou que é preciso crer também
nele. Mostrou com isso ser Deus, já que os que creem em Deus devem crer nele.
Excluiu toda ocasião de crer impiamente na unicidade de pessoa porque afirmou
ser preciso crer em Deus e também nele mesmo, sem deixar lugar para a fé em um
Deus solitário.
O que você destaca no texto?
Como serve para sua
espiritualidade?
O que você destacva na fala do
seu irmnão/ã?