SÃO BASÍLIO MAGNO, ou de CESAREIA
(330-379)
Introdução ao Tratado sobre o Espírito Santo
Origem
e ocasião do livro
1. Até o
Concílio de Niceia, em 325, a reflexão cristã concentra-se quase exclusivamente
em torno de Cristo: quem é ele em relação ao Pai e em relação a nós? Como
conseguiu nossa redenção? É Deus igual ao Pai ou uma divindade de grau
inferior? Tem realmente uma natureza divina e uma natureza humana?
2. Com a
condenação do arianismo, que afirmava que Jesus era Deus, mas não da mesma
natureza nem co-eterno ao Pai, pelo Concílio de Niceia, e com o exílio dos mais
ferrenhos defensores do arianismo, seguiram-se duas ou três décadas de trégua.
3. Até então,
nenhuma atenção fora dada à reflexão sobre a natureza do Espírito Santo.
4. Na
aparente calmaria, pessoas influentes movimentavam as forças políticas fazendo retornar
do exílio alguns chefes do arianismo, que crescia, desenvolvia-se e conquistava
muitos adeptos.
5. Reagindo
contra este crescimento do arianismo, muitos bispos orientais começaram, nas
celebrações litúrgicas, a acentuar algumas características antiarianas, orando
ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo em lugar de orarem ao Pai e ao Filho no
Espírito Santo.
6. Os
cristãos ficavam atentos para ouvir como seus bispos iam pronunciar as palavras
finais das doxologias. Conta-se que, em certa ocasião, o bispo Leôncio,
simpático aos arianos, mas procurando não ofender os católicos, recitou tão baixo
a doxologia, que ninguém pôde ouvi-lo.
7. Para
evitar confusões e polêmicas que poderiam acirrar ainda mais os ânimos, Basílio
se calava sobre a consubstancialidade de natureza divina do Espírito Santo.
Mas, pressionado pelas circunstâncias, não pôde ocultar por muito tempo sua
opinião.
8. Quando
o fez, parece ter criado embaraço para a fé de muitos cristãos. Ele mesmo
relata, no início do livro: “Há pouco, estava orando com o povo. Glorificava a
Deus Pai com ambas as formas da doxologia: ora com o Filho, com o
Espírito Santo; ora pelo Filho, no Espírito Santo. Alguns dos
presentes nos acusaram de empregar palavras estranhas e até contraditórias
entre si” (1.3).
9. As
acusações vinham também de outras partes. Um monge, conforme relata Gregório de
Nazianzo, escreve a este último queixando-se da doutrina ambígua de Basílio
sobre a identidade do Espírito Santo: “Tu, dirigindo-se a Gregório, tens
afirmado em palavras claras que o Espírito é Deus. Em certa ocasião, no meio de
uma grande multidão, falando da divindade do Espírito Santo, tu interrompeste
teu discurso para gritar: Até quando esconderemos a luz sob o alqueire? Mas
ele, Basílio, expõe confusamente a doutrina da fé…” (Epist. 58).
10. As
perguntas começaram a surgir de todos os lados. Muitas questões eram
levantadas. No meio de tantas vacilações e ambiguidades, surge o pedido muito
insistente de seu caro amigo bispo de Icônio Anfilóquio: “Tu (Anfilóquio), porém, pensando antes no bem
deles, ou ao menos, se o mal for inteiramente irremediável, para precaver seus
companheiros, pediste um ensinamento bem claro sobre o alcance destas
partículas (com, no, pelo, por quem, de quem, em quem).
11. O
livro sobre o Espírito Santo nasceu, portanto, por instigação de Anfilóquio,
nos últimos meses de 374. Seu objetivo imediato, confessado, é responder às
demandas de esclarecimentos do bispo de Icônio, Anfilóquio, sobre a doxologia
“com o Espírito”, em razão das graves acusações levantadas por parte dos
adversários arianos contra Basílio.
12. Uma
carta enviada a Anfilóquio, que deve ser datada pelos fins do ano de 375,
indica que o livro já estava terminado: “O livro que escrevemos sobre o
Espírito Santo está acabado, como tu o sabes. Mas os irmãos que estão comigo me
impediram de o enviar escrito em papiros, dizendo ter recebido ordens de tua
nobreza para escrevê-lo em pergaminho. A fim de não parecer ir contra tua ordem,
nós o guardamos e o enviaremos em breve, se encontrarmos algum amigo para
levá-lo” (Epist. 231).
13. Nota-se
como, neste período, a discussão teológica se deslocou do Filho para o Espírito
Santo, cujo desfecho será dado pelo Concílio de Constantinopla, dois anos após a
morte de Basílio, em 381.
14. Este
Concílio proclamou a divindade do Espírito Santo, digno de receber a mesma
honra e a mesma glória que o Pai e o Filho: “Senhor e doador de vida, que
procede do Pai (e do Filho), que com o Pai e o Filho recebe uma mesma adoração
e glória, e que falou pelos profetas” (Dz. 86-150).
A situação da Igreja
15. A
situação psicológica de Basílio e do povo é aflitiva. O estado geral em que se encontra
a Igreja e o episcopado quando escrevia o tratado sobre o Espírito Santo era deprimente:
as armadilhas, as defecções, as perseguições, as divisões das dioceses, o estado
de exploração e miséria em que vivia o povo, as lutas de toda espécie, tornavam
o clima lúgubre. Pessoalmente, sua saúde se enfraquecia, a amargura o consumia.
16. Confidenciou
sua angústia a Atanásio nestes termos: “Toda a Igreja se dissolve, como numerosos
navios em alto-mar vagando a esmo, batem-se uns contra os outros sob a violência
das ondas. É um grande naufrágio cujo responsável é o mar em fúria e também a desordem
dos navios, indo uns contra os outros, despedaçando-se mutuamente. Onde encontrar
um piloto à altura da situação, que seja assaz digno de fé para despertar o Senhor,
a fim de que ele ordene aos ventos e ao mar? (Epist. 82).
17. Para
completar sua amargura, seu velho amigo, o grande asceta e bispo de Sebástia, Eustácio,
torna-se o inspirador dos pneumatômacos, um movimento evangélico radical que
negava a divindade do Espírito Santo.
18. Na Epístola
123,5, Basílio se queixa por ele ter tomado esta atitude: “Quantas vezes
não nos visitastes no mosteiro às margens do Íris, quando eu estava com o irmão
muito amado de Deus, Gregório, que procurava realizar o mesmo ideal de vida que
eu? Quantos dias passamos na vila do outro lado do rio, com minha mãe, ou como
amigos nos entretendo mutuamente, discorrendo de dia e de noite?”.
19. Para
evitar ser perseguido, Eustácio tomou posição contra as decisões de Niceia, a favor
dos arianos. Desse modo, o exílio dos bispos fiéis a Niceia, a perseguição dissimulada
ou a mão armada, as acusações, a miséria generalizada, formam, agora, a trama
de sua vida na qual foi escrito o livro sobre o Espírito Santo.
20. É
compreensível que tenha as marcas do combate, de uma dialética que procura
aproveitar-se da fraqueza da posição adversária, para arruiná-la.
21. De um
lado, os pneumatômacos negavam que se pudesse glorificar o Espírito Santo com
o Pai e com o Filho. O Espírito, diziam, não vem senão em terceiro
lugar na invocação batismal. Ele é, portanto, inferior ao Pai e ao Filho e não
se pode atribuir-lhe a honra que lhe é dada em algumas igrejas. Ora, os seres
da mesma honra são conumerados enquanto se subnumeram aqueles cuja dignidade é
menor. Deve-se, portanto, subnumerar o Espírito ao Filho e ao Pai, e
glorificá-lo após o Pai e o Filho, e não com ou junto do Pai e do
Filho.
22. Por
outro lado, Macedônio, bispo de Constantinopla, para defender a unidade de Deus,
afirmava que o Espírito Santo está subordinado ao Pai e ao Filho, negando, consequentemente,
a divindade do Espírito Santo.
23. Segundo
o historiador eclesiástico Sozomeno, para Macedônio, o Espírito Santo não tinha
a mesma dignidade divina do Filho, sendo apenas um ministro, um intérprete, uma
espécie de anjo a serviço de Deus (HE IV, 27).
O primeiro tratado sobre o
Espírito Santo
24. A
primeira menção de um debate sobre o Espírito Santo encontra-se na terceira
carta de Atanásio ao bispo Serapião de Thmuis, por volta do ano 360. Até então,
as ideias a respeito do Espírito Santo caracterizavam-se por incertezas.
25. O
próprio Concílio de Niceia afirmava a plena divindade e consubstancialidade do
Filho, mas proclamava somente a fé “no Espírito Santo”. Nenhuma palavra a
respeito da natureza, da substância do Espírito Santo.
26. É
neste escrito a Serapião que Atanásio desenvolve os argumentos negando que o Espírito
seja tão somente uma criatura do Logos, como diziam os macedonianos.
27. Atanásio
dizia que era preciso reconhecer também para o Espírito Santo a consubstancialidade
com o Pai e com o Filho. O ponto de vista de Atanásio era o mais explícito, até
esse momento, sobre o reconhecimento da divindade do Espírito Santo.
28. De
fato, existiam dificuldades para a afirmação da consubstancialidade do Espírito
com o Pai e com o Filho. Pareciam faltar testemunhos escriturísticos precisos
nesse sentido e queria-se evitar que isso implicasse a noção de dupla divindade
gerada (o Filho e o Espírito) ou de duplicidade de Pais (o Filho e o Pai). Além
disso, os textos conciliares não definiam os termos empregados nas fórmulas do
credo.
29. As
palavras-chave substância, natureza, pessoa, permaneciam suscetíveis de várias
interpretações. Eusébio de Cesareia, antigo conselheiro eclesiástico de
Lucinius, por exemplo, entendia o termo substância (omooúsios) no
sentido genérico: aquilo que há de comum entre dois indivíduos. Já os partidários
de Ósio, conselheiro teológico de Constantino, compreendiam o termo “da mesma
substância” (omooúsios) como da mesma realidade individual.
30. No
Concílio de Niceia, por falta de unanimidade, o termo “consubstancial” (omooúsios)
foi mantido e imposto pelo próprio imperador Constantino.
A definição de Basílio
31. Numa
carta dirigida a seu irmão Gregório, bispo de Nissa, Basílio definira assim a substância
(ousía = substancia ou essência) e a hypóstasis (união da natureza
humana e divina em Cristo. Literalmente em grego significa substância): a ousía
é o que é comum aos indivíduos da mesma espécie, o que todos possuem
igualmente e que faz com que lhes seja designado a todos com o mesmo vocábulo,
sem distinguir a nenhum de modo particular. Porém, esta ousía não pode
existir realmente senão na condição de ser completada pelos caracteres
individualizantes que a determinam (Epist. 38, 1-3).
32. Na
carta a Anfilóquio, Basílio desenvolve mais explicitamente o que ele entende
pelos termos ousía e hypóstasis. O texto, um pouco longo,
torna-se necessário nesta introdução: “Entre ousía e hypóstasis, há
a mesma diferença que existe naquilo que é comum em relação ao que é
individual, por exemplo, o animal em relação a tal homem. Por esta razão, a
propósito da deidade, confessa-se, de uma parte, uma ousía única: assim
não se presta conta diferentemente da essência; e, de outra parte, uma hypóstasis
particularizada: com a finalidade de tornar sem mistura para nós e
inteiramente límpida a noção de Pai e de Filho e de Espírito Santo. Porque, se
não se consideram as características distintivas de cada um deles, tais como a
paternidade e filiação e santificação, mas, a partir da noção comum da
essência, se confessava Deus, se tornaria incapaz de dar conta corretamente da
fé.
33. É
preciso, pois, juntando o caráter próprio de cada um ao que é comum,
confessar-se assim a fé: comum a deidade, própria a paternidade. Então,
reunindo-os, que se diga: eu creio em Deus Pai. De novo, na confissão do Filho,
que se faça o mesmo, ao comum juntando o próprio, e que se diga: em Deus Filho.
E semelhantemente para o Espírito Santo, dando ao enunciado uma forma que
respeita a ordem da expressão, que se diga: eu creio também no divino Espírito
Santo. Assim, se salvará totalmente a unidade na confissão da única deidade e
se confessará o caráter próprio das prósopa (pessoa) na distinção das
propriedades reconhecidas para cada um.
34. Quanto
àqueles que dizem que ousía (substância ou essência) e hypóstasis são
a mesma coisa, se encontram na obrigação de confessar somente as prósopa
(pessoa), e na sua recusa de dizer: três hypóstaseis, passam por
não evitar o erro de Sabélio” (Epist. 236).
35. As
discussões suscitadas pelos arianos e anomeus levaram Basílio a aprofundar a compreensão
das três hypóstasis. Esse é o termo importante para ele. A hypóstasis
une a ousía e o prósopon. Para ele, o prósopon seria o
aspecto externo sob o qual aparece a hypóstasis característica de um
ser, o “rosto” que ele tem.
36. Dá-se-lhe
um falso sentido quando, já naquela época, faziam os latinos traduzindo-o por
“persona”. No livro sobre o Espírito Santo, Basílio afirma que o Pai, o Filho e
o Espírito Santo são três hypóstasis, cuja estrutura formal é a ousía
e cujo rosto, cujo aspecto distintivo, é o prósopon (rosto ou feição).
37. Assim Basílio
distingue entre “essência” (ousía) e existência individual (hypóstasis)
e conclui que as três hypóstasis são iguais na essência e distintas como
individualidade.
38. Assim,
em Deus, o comum é a ousía (essência), e particular, individualizante, é
a hypóstasis (existência individual).
39. Mas
não pense o leitor ter em mãos um livro árido e entregar-se à leitura de uma disputa
em torno de vocábulos, de preposições. O próprio autor tem consciência do possível
engano do leitor, quando, no capítulo 2, põe-se a esclarecer sua tarefa e a justificá-la:
“Bem longe de me envergonhar por causa da brevidade destas partículas, se conseguisse
apreender apenas uma pequenina parte de seu valor, alegrar-me-ia como merecedor
de grande aplauso, e diria ao irmão que conosco investiga não ser pequeno o lucro
que daí retiraríamos”.
40. Na
verdade, não é sobre partículas, nem sobre tal ou tal vocábulo que Basílio se entrega
a escrever seu tratado. Se ele se dedica à análise dos termos com, em quem,
para quem, por quem, é porque por trás deles se esconde uma teologia, uma
realidade cujo sentido e verdade são inteiramente de outra ordem.
41. Inspirado
nas cartas de Santo Atanásio e Serapião de Thmuis, o tratado de Basílio sobre o
Espírito Santo constitui a fonte por excelência da teologia trinitária. Sua
obra tornou-se documento memorável, de primeiro valor, ao qual se deve voltar
toda a vez que se quiser remontar às fontes da teologia do Espírito.
42. Exerceu
considerável influência para que os Padres conciliares chegassem à definição do
símbolo de Constantinopla e decisivo, sem dúvida, para o desenvolvimento
doutrinal posterior. Inspirou, por sua vez, muitos escritos na época patrística
e nos séculos posteriores, sobre a caracterização do Espírito Santo no seio da
Trindade.
43. Com a
proclamação da divindade do Espírito Santo e de sua igualdade consubstancial com
o Pai e com o Filho, dos quais procede, completou-se o terreno da ortodoxia
nicena, católica.
O que você destaca no texto?
Como serve para sua espiritualidade?
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