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SÃO
BASÍLIO MAGNO, ou de CESAREIA
(330-379)
Tratado sobre o Espírito Santo (Capítulos 69 - 73)
Solicitação
do Tratado:
Bispo Anfilóquio de Icônio.
Basílio escreve: “Há pouco, estava
orando com o povo. Glorificava a Deus Pai com ambas as formas de doxologia: ora
com o Filho, com o Espírito Santo; ora pelo Filho, no Espírito
Santo. Alguns dos presentes nos acusaram de empregar palavras estranhas e até
contraditórias entre si. Tu, porém..., ...pediste um ensinamento bem claro
sobre o alcance destas sílabas”.
28. Os nossos
contraditores recusam atribuir ao Espírito o que a Escritura declara a respeito
dos homens, a saber, que eles reinam com Cristo.
Capítulo
69.
1.
Examinemos,
todavia, se descobrimos como defender o uso adotado por nossos Pais.
Efetivamente, os primeiros a adotar essa maneira de falar estão mais que nós
expostos a censuras. Paulo, de fato, escreve aos colossenses: “Vós estáveis
mortos pelas vossas faltas e pela incircuncisão da vossa carne e ele vos
vivificou juntamente com Cristo” (Cl 2,13).
2.
Por
conseguinte, Deus concedeu a todo o povo e à Igreja viver com Cristo, e
não o teria dado ao Espírito Santo? Se é impiedade até mesmo pensar assim, como
não seria um ato santo uni-los (Cristo e o Espírito) na profissão de fé, visto
que são unidos por natureza? Finalmente, como não seria o cúmulo do absurdo
professar que os santos estão com Cristo (considerando-se que Paulo,
fora do corpo, habita junto do Senhor, e tendo partido desta vida (2Tm 4,6), já
se encontra com Cristo (2Cor 5,8; Fl 1,23) e não conceder ao Espírito,
na medida do possível, estar com Cristo, ao menos tanto quanto aos
homens?
3.
Paulo
também se dá o título de “ministro de Deus na pregação (oiconomía) do
evangelho” (1Ts 3,2); e se dizemos que o Espírito Santo é cooperador, pois por
ele o evangelho frutifica em toda criatura que existe sob o céu, eles deporiam
contra nós, por uma acusação escrita de impiedade? Parece que a vida dos que
esperam no Senhor “está escondida com Cristo em Deus; quando Cristo, que
é a nossa vida, se manifestar”, então também eles serão com Cristo
manifestados em glória (Cl 3,3-4).
4.
E
o Espírito da vida que nos libertou da lei do pecado (Rm 8,2) de forma alguma
estaria com Cristo, nem numa vida escondida e oculta com ele, nem
na manifestação da glória que esperamos resplandeça nos santos?
5.
Herdeiros
de Deus e co-herdeiros de Cristo (Rm 8,17) somos nós; e o Espírito seria
deserdado, excluído da comunhão com Deus e com seu Cristo? “O próprio Espírito
se une ao nosso espírito para testemunhar que somos filhos de Deus” (Rm 8,16);
e nós não havemos de testemunhar, nem mesmo por aquilo que aprendemos do
Senhor, que ele está em comunhão com Deus (Mt 28,19)?
6.
Mas
o cúmulo da loucura consiste nisto: acreditamos em Cristo no Espírito,
portanto esperamos ressuscitar com Cristo e sentar com ele nos
céus, quando ele transformará nosso corpo humilhado de psíquico em espiritual
(Fl 3,20; 1Cor 15,44); ao Espírito, porém, não atribuímos assentar-se com Cristo,
nem a glória, nem nenhuma outra coisa que recebemos por seu intermédio?
7.
Mas,
nenhum destes benefícios de que nos julgamos merecedores, prometidos por aquele
que não mente, cederíamos ao Espírito Santo, como sendo além de sua dignidade?
8.
E
quanto a ti, serias digno de estar sempre com o Senhor, e esperas ser
arrebatado nas nuvens ao encontro do Senhor, e assim estar para sempre com ele
(1Ts 4,17); mas ao Espírito, contradizes que esteja agora com Cristo. Se
alguém o “co-enumera” e coordena com o Pai e o Filho, tu o exilas como sendo um
ímpio insuportável.
Capítulo
70.
9.
Envergonho-me
de acrescentar o que falta, a saber, tu esperas ser glorificado com Cristo
(“Pois sofremos com ele para também com ele ser glorificados” —
(Rm 8,17), mas não glorificas com Cristo o Espírito de santidade, como
se não fosse digno das mesmas honras que tu.
10.
Esperas
reinar com Cristo, mas ultrajas o Espírito da graça (Hb 10,29),
relegando-o à condição de escravo e de servo.
11.
Digo
isto, não para mostrar quanta glorificação se deve ao Espírito, mas para
censurar a irreverência dos que lha recusam, e, além disso, fogem, como de uma
impiedade, de atribuir ao Espírito a comunhão na glória com o Filho e o Pai.
12.
Quem
poderia, sem lamentar, deixar passar tais asserções? De fato, não é evidente, e
até uma criança o entende, que a situação atual é uma preparação daquela crise
de fé que nos ameaça? Torna-se ambíguo o que é incontestável. Cremos no
Espírito, mas lutamos contra ele nas nossas profissões de fé; somos batizados,
e ainda lutamos. Invocamo-lo como autor da vida, e o menosprezamos como sendo
companheiro de escravidão. Recebemo-lo com o Pai e o Filho, e
desprezamo-lo como se fosse parte da criação. Nossos adversários não sabem o
que pedir na oração (Rm 8,26).
13.
Se
induzidos a falar sobre o Espírito respeitosamente, julgam que o igualam em
mérito, e reprovam os termos que lhes parecem ultrapassar a justa medida,
enquanto, ao contrário, deviam lastimar-lhe a deficiência. De fato, faltam-nos
as palavras para realmente dar graças pelos benefícios de que somos cumulados.
14.
O
Espírito ultrapassa todo entendimento (Fl 4,7) e desafia a linguagem, que não
exprime nem a menor porção de sua dignidade, segundo a palavra do livro intitulado
Sabedoria (de Sirac): “Que vossos louvores exaltem o Senhor, segundo o
vosso poder, porque ele vos excede. Para o exaltar, desdobrai vossas forças,
não vos canseis, porque nunca chegareis ao fim” (Eclo 43,30).
15.
Certamente,
tereis terríveis contas a prestar de tais palavras, tendo ouvido do Deus que
não mente (Tt 1,2) ser irremissível a blasfêmia contra o Espírito Santo (Mt
12,32; Mc 3,28-29; Lc 12,10).
29. Catálogo
de homens ilustres na Igreja que usaram em seus escritos o termo com.
Capítulo
71.
16.
Afirmam
nossos adversários que a doxologia “com o Espírito” não é atestada, nem se
encontra nas Escrituras. Mas, se não se aceita coisa alguma que não esteja
escrita, também não se aceite esta fórmula.
17.
Todavia,
se à maior parte dos ritos místicos damos direito de autenticidade, mesmo se
não constam das Escrituras, assumamos também esta doxologia entre muitas outras
coisas. Julgo, de fato, ser costume apostólico manter mesmo as tradições orais.
18.
Declara
o Apóstolo: “Eu vos louvo por vos recordardes de mim em todas as ocasiões e por
conservardes as tradições tais como vo-las transmiti” (1Cor 11,2). E: “Guardai
as tradições que vos ensinamos oralmente ou por escrito” (2Ts 2,15), uma das
quais é a presente doxologia. Aqueles que nos primórdios a adotaram,
transmitiram-na aos pósteros. O uso, com o correr do tempo, se propagou e o
hábito se arraigou nas Igrejas.
19.
Então,
se levamos a esta espécie de tribunal uma multidão de testemunhas, pela
carência de provas escritas, não obteríamos de vós a absolvição? Assim julgo
eu. “A causa será estabelecida pelo depoimento pessoal de duas ou três
testemunhas” (Dt 19,15).
20.
E
se vos demonstramos claramente haver a nosso favor a longa duração, não vos
pareceria sensato asseverarmos que não deveríeis procurar aí motivo de litígio?
21.
As
doutrinas mais antigas sempre impressionam, por sua venerável antiguidade.
22.
Por
conseguinte, vou enumerar os defensores desta expressão. Simultaneamente
pode-se computar o tempo, deduzido do que se omitir. Não fomos nós que a
inventamos. Como o teríamos feito? Somos de ontem, de fato, para falar como Jó
(Jó 8,9), diante de tão longa duração deste uso.
23.
Quanto
a mim, se for mister dar meu parecer, conservo esta expressão qual herança
paterna, recebida de alguém que viveu longamente no serviço de Deus, que me
batizou e me induziu a abraçar o ministério eclesiástico.
24.
E
ao procurar, de meu lado, se algum dos antigos e santos varões usou estas
palavras atualmente controvertidas, encontro grande número, anciãos fidedignos
que, pela precisão de seus conhecimentos, não se assemelham a nossos
contemporâneos.
25.
Para
unir as palavras da doxologia, uns usaram a preposição, outros a conjunção.
Ninguém julgou que eles assim estabeleciam uma diferença, ao menos no atinente
à reta concepção da piedade.
Capítulo
72.
26.
São
eles: o ilustre Ireneu (130-202), Clemente Romano (+102), Dionísio de Roma (+268)
e Dionísio de Alexandria (o grande, 190-265) que (coisa paradoxal!), na segunda
carta a seu homônimo, “Refutação e apologia”, assim conclui o discurso
(transcrevo literalmente suas palavras):
27.
“Nós
também, de acordo com todos eles, tendo recebido de nossos presbíteros o modelo
e a regra, unânimes damos graças, e assim terminamos a carta que vos
escrevemos. A Deus Pai e ao Filho, nosso Senhor Jesus Cristo, com o Espírito
Santo glória e poder nos séculos dos séculos. Amém”.
28.
Ninguém
poderá dizer que este texto é apócrifo. Dionísio não teria insistido assim,
dizendo que recebeu “modelo e regra”, se precisamente tivesse dito: “no Espírito”,
pois esta última expressão é de uso frequente, enquanto a outra é que precisava
de defesa.
29.
Justamente
no meio da carta, assim escreve aos sabelianos: “Se por haver três hipóstases,
eles afirmam que elas são separadas, tornar-se-iam três, quer queiram, quer
não, ou então suprimam inteiramente a divina Trindade”.
30.
E
ainda: “Por esta razão, o que há de mais divino, após a unidade, é a Trindade”.
31.
Clemente
também disse o mesmo, embora de forma mais antiquada: “Viva Deus, e o Senhor
Jesus Cristo e o Espírito Santo”.
32.
Como
a respeito do Espírito se exprime Irineu, que viveu tão próximo dos apóstolos,
na exposição “Contra as heresias”? Escutemo-lo: “Aos desenfreados, que se
deixam arrastar por suas paixões, não anelam de forma alguma pelo Espírito
divino, com justeza o Apóstolo os denomina carnais” (1Cor 3,3).
33.
E
em outra passagem ele diz ainda: “No intuito de evitar que, privados do
Espírito divino, percamos o reino dos céus, clama a nós o Apóstolo que a carne
não pode ser herdeira do reino dos céus” (1Cor 15,50).
34.
Aos
que consideram ser fidedigno Eusébio, o palestinense (é o Eusébio de Cesareia (260-339), em vista de sua grande
experiência, podemos demonstrar que ele usa das mesmas expressões em
“Dificuldades sobre a poligamia dos antigos”. Efetivamente, diz no começo de
sua obra: “Invocamos o Deus santo, iluminador dos profetas, por nosso Senhor
Jesus Cristo, com o Espírito Santo”.
Capítulo
73.
35.
De
igual modo, Orígenes (185-254). Em muitos de seus comentários sobre os salmos,
notamos que usa a doxologia: “com o Espírito Santo”.
36.
Ele,
contudo, não tinha sobre o Espírito um conceito inteiramente sadio[1].
37.
Entretanto,
em muitas passagens, ele também, impelido pela força do costume, utiliza termos
piedosos acerca do Espírito. Se não me engano, no sexto de seus comentários
sobre o evangelho segundo São João, declara abertamente que se deve adorar o
Espírito, escrevendo literalmente: “O lavacro (banho) simboliza a purificação
da alma, lavada de qualquer mácula de pecado; ele contém em si nada menos que o
princípio e a fonte dos carismas, pela força das invocações, para todo aquele
que se entrega à divindade da adorável Trindade”.
38.
E
no comentário da epístola aos Romanos: “As potências sagradas podem entender o
Unigênito e a divindade do Espírito Santo”.
39.
Assim,
a meu ver, a força da Tradição muitas vezes induziu os homens a contradizer
suas próprias doutrinas.
40.
Mas,
nem o historiógrafo Africano (refere-se a
Tertuliano . 160 – c. 220 d.C.) ignora esta forma
de doxologia. É conhecido que ele também assim fala no quinto livro da “Epítome
das várias épocas”: “Nós que conhecemos a medida destas palavras e não
ignoramos a graça da fé, damos graças ao Pai que nos deu, a nós os seus, o
Salvador de todos, nosso Senhor Jesus Cristo; a ele a glória, a majestade, com
o Espírito Santo, pelos séculos”.
41.
Podemos
certamente desconfiar de alguns outros testemunhos, ou se foram falsificados
dificilmente se descobrirá o erro, porque a diferença está numa sílaba somente.
42.
Mas,
os que mencionamos, devido à extensão da frase, escapam a todas as ciladas e
são atestados, sem contradição, pelos próprios documentos.
43.
Apresentarei
ainda o que em outras circunstâncias seria inteiramente sem importância. Esta
prova, por ser tão antiga, me é necessária, porque sou acusado de introduzir
uma inovação.
44.
Nossos
Pais julgaram conveniente não acolher em silêncio a luz da tarde, mas dar
graças logo que ela aparece.
45.
Não
podemos dizer quem foi o autor destas palavras de ação de graças do lucernário.
O povo, no entanto, pronuncia a antiga fórmula, e ninguém jamais pensou ser
ímpio proferir: “Louvamos o Pai, e o Filho, e o Espírito Santo de Deus”.
46.
Todos
aqueles que conhecem o hino[2] de Atenógenes[3], que ele deixou a seus
discípulos como segundo discurso de despedida, quando já se apressava em
direção à fogueira, sabem qual a opinião dos mártires sobre o Espírito. E isto
é suficiente.
O
que você destaca neste texto?
Como
serve para a sua espiritualidade?
[1]
Basílio critica Orígenes porque este não afirmava claramente a
divindade plena e a consubstancialidade do Espírito Santo com o
Pai e o Filho. Mas o respeita como mestre e exegeta, contudo, considera que
suas ideias sobre o Espírito precisavam de correção.
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