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História Eclesiástica
de Eusébio de Cesaréia
Livro II - Capítulos
22 a 26
XXII - De como Paulo, enviado preso da Judéia a
Roma, fez sua defesa e foi
absolvido de toda
acusação.
XXIII - De como Tiago, chamado irmão do Senhor,
sofreu o martírio
XXIV - De como Aniano foi nomeado primeiro bispo da
Igreja de Alexandria depois de Marcos
XXV - Da perseguição nos tempos de Nero, na qual
Paulo e Pedro foram adornados com o martírio pela religião em Roma
XXVI - Dos inumeráveis
males que envolveram os judeus e da última guerra que eles moveram contra os
romanos
XXII - De como Paulo, enviado preso da Judéia a
Roma, fez sua defesa e foi
absolvido de toda acusação
1. Como sucessor deste, Nero
enviou a Festo. Foi em seu tempo que Paulo sustentou seus direitos e foi
enviado preso a Roma145. Com ele estava Aristarco, a quem em algum lugar de
suas cartas chama com toda naturalidade de companheiro de cativeiro146. E
Lucas, o que pôs por escrito os Atos dos Apóstolos, termina sua
narrativa com estes acontecimentos, indicando que Paulo passou em Roma dois
anos inteiros em liberdade provisória e que pregou a palavra de Deus sem nenhum
obstáculo147.
2. É pois tradição148 que o
Apóstolo, depois de haver pronunciado sua defesa, partiu novamente para exercer
o ministério da pregação e que, tendo voltado pela segunda vez à mesma cidade,
terminou sua vida com o martírio, nos tempos do mesmo imperador. Estando preso,
compôs a segunda carta a Timóteo, e se refere de uma só vez a sua primeira
defesa e a seu fim iminente.
3. Mas ouçamos melhor seu
próprio testemunho: Em minha primeira defesa -diz - ninguém me
ajudou, antes, todos me abandonaram (que isto não lhes seja posto em conta).
Mas o Senhor me ajudou e me infundiu forças para que por mim a pregação fosse
plenamente cumprida e todas as nações a ouvissem, e fui libertado da boca do leão149.
4. Por estas palavras deixa
claramente expresso que na primeira ocasião, para que se cumprisse sua
pregação, fora livrado da boca do leão, referindo-se com esta expressão, ao que
parece, a Nero, por causa de sua crueldade. Por outro lado, em continuação não
acrescenta nada como: me livrará da boca do leão, porque em seu espírito
já via que sua morte seria iminente.
5. Por isso, às palavras: e
fui libertado da boca do leão, acrescenta: O Senhor me livrará de toda
obra má e me preservará para seu reino celestial150, indicando assim seu
martírio iminente. Isto ele expressa ainda mais claramente um pouco antes, na
mesma carta, quando diz: porque estou já sendo oferecido em libação e o
tempo de minha partida está próximo151.
6. Pois
bem, na segunda carta das que enviou a Timóteo afirma que, no momento em que a
escrevia, somente Lucas o acompanha152, enquanto que, quando fez sua primeira
defesa, nem sequer este153. De onde se deduz que Lucas provavelmente concluiu
os Atos dos Apóstolos neste tempo, havendo narrado o que sucedeu
enquanto esteve com Paulo.
6. Dissemos
isto para mostrar que o martírio de Paulo não ocorreu durante sua primeira
estada em Roma, descrita por Lucas154.
7. É provável que Nero, ao
menos no começo155, estivesse mais propício e que aceitasse mais facilmente a
defesa de Paulo em favor de sua doutrina, mas depois que avançou em sua audácia
criminosa, atacou os apóstolos tanto quanto aos demais.
XXIII - De como Tiago, chamado irmão do Senhor,
sofreu o martírio
1. Ao
apelar Paulo ao César e ser enviado por Festo à cidade de Roma156, os judeus,
frustrada a esperança que os induziu a conspirar contra ele157, voltaram-se
contra Tiago, o irmão do Senhor, a quem os apóstolos tinham confiado o trono
episcopal de Jerusalém. O que segue é o que ousaram fazer também contra ele.
2. Trouxeram-no,
e diante de todo o povo pediram-lhe que renegasse a fé de Cristo. Mas quando
ele, contra a vontade de todos, com voz livre e falando mais abertamente do que
esperavam, diante de toda a multidão pôs-se a confessar que nosso Salvador e
Senhor Jesus era filho de Deus, já não foram capazes de suportar mais o
testemunho deste homem, justamente porque era considerado o mais justo de todos
pelo grau de sabedoria e piedade a que havia chegado em sua vida, e mataram-no,
aproveitando oportunamente a falta de governo, pois tendo Festo morrido na
Judéia neste tempo, a administração do país ficou sem chefe e sem controle158.
3. O
modo como ocorreu a morte de Tiago já foi esclarecido pelas palavras citadas de
Clemente159, que conta como o lançaram do pináculo do templo e espancaram-no
até matá-lo. Mas quem conta com maior exatidão o que a ele se refere é
Hegesipo, que pertence à primeira geração sucessora dos apóstolos160 e que no
livro V de suas Memórias diz assim:
4. "Sucessor161
na direção da Igreja é, junto com os apóstolos, Tiago, o irmão do Senhor. Todos
dão-lhe o sobrenome de "Justo", desde os tempos do Senhor até os
nossos, pois eram muitos os que se chamavam Tiago.
5. Mas
somente este foi santo desde o ventre de sua mãe. Não bebeu vinho nem bebida
fermentada, não comeu carne; sobre sua cabeça não passou tesoura nem navalha e
tampouco ungiu-se com azeite nem usou do banho.
6. Somente
a ele era permitido entrar no santuário, pois não vestia lã, mas linho. E
somente ele penetrava no templo, e ali se encontrava ajoelhado e pedindo perdão
por seu povo, tanto que seus joelhos ficaram calejados como os de um camelo,
por estar sempre de joelhos adorando a Deus e pedindo perdão para o povo.
7. Por sua eminente retidão
era chamado "o Justo" e "Oblías", que em grego quer dizer
proteção do povo e justiça, como declaram os profetas acerca dele.
8. Assim
pois, alguns das sete seitas que há no povo e que eu descrevi anteriormente
(nas Memórias) tentavam informar-se com ele quem era porta de Jesus, e
ele respondia que este era o Salvador.
9. Alguns
creram que Jesus era o Cristo. Mas as seitas mencionadas anteriormente não
creram nem na ressurreição nem em que venha a dar a cada um segundo suas obras162.
Mas os que creram, creram por Tiago.
10. Sendo pois, muitos os
que creram, inclusive entre as autoridades163, os judeus, escribas e fariseus
se alvoroçaram dizendo: todo o povo corre perigo ao esperar o Cristo em Jesus.
Reuniram-se pois ante Tiago e disseram: Nós te pedimos: retém ao povo, que está
em erro a respeito de Jesus, como se ele fosse o Cristo. Pedimo-te que
convenças a respeito de Jesus todos os que vierem para o dia da Páscoa, porque
a ti todos obedecem. Efetivamente, nós e todo o povo damos testemunho de ti, de
que és justo e não te deixas levar pelas pessoas.
11. Tu pois, convence a toda
a multidão para que não se engane a respeito do Cristo. Todo o povo e nós
mesmos te obedecemos. Ergue-te pois sobre o pináculo do templo para que do alto
sejas visível e todo o povo ouça tuas palavras, pois por causa da Páscoa reúnem-se
todas as tribos, inclusive com os gentios.
12. E
assim os mencionados escribas e fariseus puseram Tiago em pé sobre o pináculo
do templo e disseram-lhe aos gritos: "O tu, o justo!, a quem todos devemos
obedecer, posto que o povo anda extraviado atrás de Jesus o crucificado,
diga-nos quem é a porta de Jesus."
13. E ele
respondeu com grande voz: "Por que me perguntam sobre o Filho do homem?
Ele também está sentado no céu à direita do grande poder e há de vir sobre as
nuvens do céu164."
14. E
sendo muitos os que se convenceram completamente e ante o testemunho de Tiago,
irromperam em louvores dizendo: "Hosana ao filho de Davi!". Então os
mesmos escribas e fariseus novamente disseram uns aos outros: "Fizemos mal
em proporcionar tal testemunho a Jesus, mas subamos e lancemo-lo para baixo,
para que tenham medo e não creiam nele."
15. E
puseram-se a gritar dizendo: "Oh! Oh! Também o Justo extraviou-se!" E
assim cumpriram a Escritura que se encontra em Isaías: Tiremos de nosso meio
o justo, que nos é incômodo. Então comerão o fruto de suas obras.
16. Subiram
pois e lançaram abaixo o Justo. E diziam uns aos outros: "Apedrejemos a
Tiago o Justo!" E começaram a apedrejá-lo, porque ao cair não chegou a
morrer. Mas ele, virando-se, ajoelhou-se e disse: "Eu te peço Senhor, Deus
Pai: Perdoa-os, porque não sabem o que fazem.
17. E quando estavam assim
apedrejando-o, um sacerdote, um dos filhos de Recab, filho dos Recabim, dos
quais o profeta Jeremias havia dado testemunho165, gritava dizendo: Parai, que
estais fazendo? O Justo roga por vós!
18. E um deles, tecelão,
agarrou o bastão com que batia os panos e deu com este na cabeça do Justo, e
assim foi que sofreu o martírio. Enterraram-no naquele lugar, junto ao templo,
e ainda se conserva sua coluna naquele lugar ao lado do templo. Tiago era já um
testemunho veraz para judeus e para gregos de que Jesus é o Cristo. E em
seguida Vespasiano os sitiou166."
19. Isto é o que Hegesipo
relata minuciosamente, concordando ao menos com Clemente. Tiago era um homem
tão admirável e tanto havia-se espalhado entre todos a fama de sua retidão, que
até os judeus sensatos pensavam que esta era a causa do assédio de Jerusalém,
iniciado imediatamente depois de seu martírio, e que por nenhum outro motivo
estavam eles sofrendo-o senão pelo crime sacrílego cometido contra ele.
20. Na verdade, pelo menos
Josefo não vacilou em atestar também isto por escrito com estas palavras:
"Isto sucedeu aos judeus como
vingança por Tiago o Justo, irmão de Jesus, o chamado Cristo, porque exatamente os judeus o mataram, ainda
que fosse um homem justíssimo167."
21. O mesmo autor descreve
também a morte de Tiago no livro XX de suas Antigüidades com estas
palavras:
"Sabendo César da morte de
Festo, enviou a Albino como governador da Judéia. Mas Ananos o Jovem, sobre
quem já dissemos que havia recebido o sumo sacerdócio, tinha um caráter
especialmente resoluto e atrevido e formava parte da seita dos Saduceus, que
nos juízos eram justamente os mais cruéis entre os judeus, como já
demonstramos.
22. Ananos
sendo pois assim, considerando oportuna a ocasião por haver morrido Festo e
achar-se Albinus ainda a caminho, convocou a assembléia de juízes, e fazendo
conduzir perante ela o irmão de Jesus, chamado Cristo - chamava-se Tiago - e
alguns mais para acusá-los de violar a lei, entregou-os para que fossem apedrejados.
23. Mas todos os cidadãos
considerados os mais sensatos e mais fiéis observadores da lei levaram a mal
esta sentença e enviaram uma delegação secreta ao rei168 para pedir-lhe que
escrevesse a Ananos para que não levasse a cabo tal coisa, porque já desde o
começo não agia com retidão. Alguns deles inclusive saíram ao encontro de
Albinus, que viajava desde Alexandria, para informá-lo de que sem seu parecer
não era permitido a Ananos convocar a assembléia.
24. Persuadido Albinus com o
que lhe disseram, escreveu irritado a Ananos, ameaçando-o de pedir-lhe contas.
E o rei Agripa destituiu-o por este motivo do sumo sacerdócio, que exercia há
três meses, e instituiu a Jesus, o filho de Dameo."
Esta é a história de Tiago, do qual
se diz que é a primeira carta das chamadas católicas.
25. Mas deve-se saber que
não é considerada autêntica. Dos antigos não são muitos os que a mencionam,
assim como a chamada de Judas, que é também uma das sete chamadas católicas.
Ainda assim, sabemos que também estas, junto com as restantes, são utilizadas
publicamente na maioria das igrejas.
XXIV - De como Aniano foi nomeado primeiro bispo da
Igreja de Alexandria depois de Marcos
1. Transcorrendo o oitavo
ano do império de Nero, o primeiro que recebeu em sucessão o governo da igreja
de Alexandria depois de Marcos foi Aniano.
XXV - Da perseguição nos tempos de Nero, na qual
Paulo e Pedro foram adornados com o martírio pela religião em Roma
1. Firmado
Nero no poder, deu-se a práticas ímpias e tomou as armas contra a própria
religião do Deus do universo. Descrever de que maldades foi capaz este homem
não é tarefa para a presente obra.
2. Já
que, sendo muitos os que transmitiram em relatos precisos suas maldades, quem
queira poderá aprender destes sobre a grosseira demência deste homem estranho
que, levado por ela e sem a menor reflexão, produziu a morte de inúmeras
pessoas e a tal ponto levou seu afã homicida que não se deteve nem mesmo ante
os mais chegados e queridos, mas que até a sua mãe, seus irmãos, sua esposa e com
eles muitos familiares, fez perecer com variadas formas de morte, como se
fossem adversários e inimigos.
3. Mas
deve-se saber que a tudo o que foi dito sobre ele faltava acrescentar que foi o
primeiro imperador que se mostrou inimigo da piedade para com Deus.
4. Disto faz menção também o
latino Tertuliano quando diz: "Leiam vossas memórias. Nelas encontrareis
que Nero foi o primeiro a perseguir esta doutrina, principalmente quando,
depois de submeter todo o Oriente, em Roma era cruel para com todos. Nós nos
ufanamos de ter um assim como autor de nosso castigo, porque quem o conhecer
compreenderá que Nero não podia condenar nada que não fosse um grande
bem."
5. Assim
pois, este, proclamado primeiro inimigo de Deus entre todos os que o foram,
levou sua exaltação ao ponto de fazer degolar os apóstolos. De fato, diz-se que
sob seu império Paulo foi decapitado na própria Roma, e que Pedro foi
crucificado. E disto da fé o título de Pedro e Paulo que predominou para os
cemitérios daquele lugar até o presente.
6. Também o confirma um
varão eclesiástico chamado Caio, que viveu quando Zeferino era bispo de Roma.
Disputando por escrito com Proclo, líder da seita catafriga, diz sobre os
lugares onde estão depositados os sagrados despojos dos mencionados apóstolos o
seguinte:
7. "Eu, por outro lado,
posso mostrar-te os troféus dos apóstolos, porque se queres ir ao Vaticano ou
ao caminho de Ostia, encontrarás os troféus dos que fundaram esta igreja169."
169 Refere-se aos sepulcros ou
túmulos de Pedro e Paulo.
8. Que ambos sofreram
martírio na mesma ocasião é afirmado por Dionísio, bispo de Corinto, em sua
correspondência escrita com os romanos, nos seguintes termos:
"Nisto também vós, por meio de
semelhante admoestação, fundistes as searas de Pedro e de Paulo, a dos romanos
e a dos Coríntios, porque depois de ambos plantarem em nossa Corinto, ambos nos
instruíram, e depois de ensinarem também na Itália no mesmo lugar, os dois
sofreram martírio na mesma ocasião." Sirva também isto para maior
confirmação dos fatos narrados.
XXVI - Dos inumeráveis males que
envolveram os judeus e da última guerra que eles moveram contra os romanos
1. Ao
descrever Josefo com todo pormenor as desgraças que se abateram sobre toda a
nação judia, além de muitas outras coisas, explica textualmente que muitíssimos
judeus dos mais importantes, depois de serem ultrajados com a pena de açoites,
foram crucificados por Floro na própria Jerusalém, e que este era procurador da
Judéia quando novamente começou a acender-se a guerra, no décimo segundo ano do
império de Nero.
2. Depois diz que, após a
revolta dos judeus, toda a Síria foi tomada por uma confusão espantosa; por
toda parte os próprios habitantes das cidades maltratavam sem piedade os dessa
raça, como se fossem inimigos, de forma que se podia ver as cidades repletas de
cadáveres insepultos: corpos de anciãos jogados junto aos de crianças, e
cadáveres de mulheres sem nada que cobrisse suas nudezes. Toda a província
transbordava de calamidades indescritíveis. Mas a violência do que os ameaçava
era maior do que os crimes de cada dia. Isto é o que literalmente diz Josefo.
Esta era a situação dos judeus.
O que mais te chamou a atenção neste
texto?
O que o texto contribui para a sua
espiritualidade?
Notas:
144 At 21:38.
145 At 25:8-12;
27:1-2.
146 Cl 4:10.
147 At 28:30-31.
148 Tradição
escrita, pela expressão utilizada.
149 2 Tm 4:16-17.
150 2 Tm 4:18.
151 2 Tm 4:6.
152 2Tm4:11.
153 2 Tm 4:16.
154 Em princípios do
século IV, quando Eusébio escrevia esta obra, alguns negavam que Paulo tivesse
feito duas viagens a Roma.
155 Entre os anos 54
e 59, tempos de calma e bem-estar, Nero ouvia mais os conselhos moderados de
Burro e Sêneca do que os de sua mãe Agripina.
156 At 25:11-12;
27:1.
157 At 23:13-15;
25:3.
158 Verão ou outono
de 62, entre a morte de Festo e a chegada de seu sucessor Luceius Albinus.
159 Vide I:V
160 Hegesipo nasceu
no ano 110, pode ter conhecido alguns membros da comunidade primitiva, ainda
que muito velhos, mas não pode ser de forma alguma "da primeira
geração" pós-apostólica.
161 Não fica claro
de quem Tiago seria sucessor.
162 Rm 2:6; Sl
62:13 (62:12); Pv 24:12; Mt 16:27; Ap 22:12.
163 Jo 12:42.
164 Mt 26:64; Mc
14:62; At 7:56.
165 Jr 35:2-19.
166 Vespasiano
começou a guerra contra os judeus em 67, mas Jerusalém foi sitiada por seu
filho Tito em 70.
167 Desconhece-se
este trecho nos manuscritos de Flavio Josefo, como Eusébio, contrário a seu
costume, não cita obra nem livro, pode tê-la recolhido de outro autor, como
Orígenes.
168 Agripa II
(50-100).
169 Refere-se aos
sepulcros ou túmulos de Pedro e Paulo.
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