quinta-feira, 26 de março de 2015

Estudo 20 - Livro III - Capítulos 09 a 19

20
História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia
Livro III - Capítulos 09 a 19
 
Texto Bíblico: Lc 24.18;  Jo 19.25


IX - De Josefo e os escritos que deixou
X - De que maneira cita os livros divinos
XI - De como Simeão dirige a Igreja de Jerusalém depois de Tiago
XII - De como Vespasiano ordena que se busquem os descendentes de Davi
XIII - De como o segundo bispo de Roma é Anacleto
XIV - De como o segundo a dirigir os alexandrinos é Abílio
XV - De como o terceiro bispo de Roma, depois de Anacleto, é Clemente
XVI - Da carta de Clemente
XVII - Da perseguição sob Domiciano
XVIII - Sobre o apóstolo João e o "Apocalipse"
XIX - De como Domiciano ordena a morte aos descendentes de Davi

 IX - De Josefo e os escritos que deixou
1.   Depois de todas estas coisas, seria bom não ignorar o próprio Josefo – que tanto material forneceu para a obra que tens entre as mãos - de que país e de que família procedia. Também será ele mesmo quem nos declarará isto.
      Diz assim:
"Josefo, filho de Matias, sacerdote originário de Jerusalém, que primeiro fez guerra pessoalmente contra os romanos e logo, por necessidade, ficou à mercê dos acontecimentos posteriores[1]."
2.     Foi o mais famoso de todos os judeus de sua época, e não somente entre seus compatriotas, mas também entre os romanos, ao ponto de ser honrado com uma estátua[2] em Roma, e seus livros serem considerados dignos de uma biblioteca.
3.     Josefo expôs toda a Antigüidade judaica em vinte livros completos, e a História da guerra romana de seu tempo em sete. Ele mesmo atesta que não a entregou apenas em língua grega, mas também em sua língua materna[3]. Por tudo o mais é digno de crédito.
4.      Há também dele outros livros dignos de estudo, intitulados Sobre a antigüi­dade dos judeus. Neles refuta o gramático Apion, que tinha então composto um tratado contra os judeus. Também refuta a outros que haviam tentado igualmente caluniar as instituições pátrias do povo judeu.
5.             No primeiro destes livros estabelece o número de escritos do chamado Antigo Testamento, mostrando quais são os não discutidos entre os hebreus, como provenientes de uma antiga tradição. Diz textualmente:

X - De que maneira cita os livros divinos
1.            "Não há pois entre nós milhares de livros em desacordo e em mútua contradição, mas há sim, apenas vinte e dois livros que contêm a relação de todo o tempo e que com justiça são considerados divinos.
2.            Destes, cinco são de Moisés, e compreendem as leis e a tradição da criação do homem até a morte de Moisés. Este período abarca quase três mil anos.
3.            Desde a morte de Moisés até a de Artaxerxes, rei dos persas depois de Xerxes, os profetas posteriores a Moisés escreveram os fatos de suas épocas em treze livros. Os outros quatro contêm hinos em honra a Deus e regras de vida para os homens.
4.     Desde Artaxerxes até nossos dias tudo foi escrito, mas nem tudo merece a mesma confiança que o anterior, por não apresentar sucessão exata dos profetas.
5.            Mas os fatos manifestam como nós nos sentimos próximos a nossas escri­turas. Assim é que, transcorrido já tanto tempo, ninguém se atreveu a acres­centar, nem tirar, nem mudar nada nelas, antes, é natural a todos os judeus, já desde seu nascimento, crer que estes escritos são decretos de Deus, e aferrar-se a eles e prazerosamente morrer por eles caso seja necessário."
6.            Estas palavras do autor aqui apresentadas não deixarão de ser úteis. Há também outra obra escrita por ele, não sem nobreza, Sobre a supremacia da razão, que alguns intitularam Macabeus, porque contém as lutas dos hebreus valentemente sustentadas em defesa da piedade para com Deus e referidas nos escritos assim chamados Dos Macabeus[4].
7.        E quase no final do livro XX de suas, Antigüidades, o mesmo autor acrescenta a declaração de que tem o propósito de escrever em quatro livros, seguindo as crenças pátrias dos judeus, acerca de Deus e de sua essência, e sobre as leis; porque, segundo elas, algumas coisas podem ser feitas e outras são proibidas. O mesmo autor, em seus próprios tratados, menciona outras obras por ele produzidas.
8.             Além disso, será bom mencionar também as palavras que estão no final de suas Antigüidades, para confirmação dos testemunhos que dele tomei. Quando acusa Justo de Tiberíades - que tentara fazer, assim como ele mesmo, uma história dos fatos daquele tempo - de não haver escrito a verdade, depois de incluir outras muitas emendas, acrescenta textualmente o que segue:
9.             "Na verdade eu não tenho os mesmos temores que tu tens no que se refere a meus escritos, pois entreguei meus livros aos próprios imperadores estando os fatos ainda quase ante os olhos, porque tinha consciência de ter conservado a tradição da verdade, e não me enganei ao esperar obter seu testemunho.
10.      Também enviei minha narrativa a muitos outros, alguns dos quais tinham estado na guerra, como o rei Agripa e alguns parentes seus.
11. E ocorre que o imperador Tito quis que o público fosse informado dos fatos somente através destes livros, tanto é assim que ele assinou a ordem de publicá-los de próprio punho. E o rei Agripa escreveu sessenta e duas cartas atestando que os livros transmitem a verdade." Destas cartas Josefo inclusive cita duas. Mas baste o que já dissemos sobre ele, e prossigamos.

XI - De como Simeão dirige a Igreja de Jerusalém depois de Tiago
1. Depois do martírio de Tiago e da tomada de Jerusalém, que se seguiu ime­diatamente, é tradição que os apóstolos e discípulos do Senhor que ainda viviam reuniram-se de todas as partes num mesmo lugar, junto com os que eram da família do Senhor segundo a carne (pois muitos deles ainda viviam), e todos celebraram um conselho sobre quem seria considerado digno de suceder a Tiago, e todos, por unanimidade, decidiram que Simeão, o filho de Clopas - mencionado também pelo texto do Evangelho[5] -, era digno do trono daquela igreja, por ser primo do Salvador, ao menos segundo se diz, pois Hegesipo refere que Clopas era irmão de José.

XII - De como Vespasiano ordena que se busquem os descendentes de Davi
1. Depois disso Vespasiano, após a tomada de Jerusalém, deu a ordem de buscar todos os descendentes de Davi, para que entre os judeus não sobras­se ninguém da estirpe real. Por esta causa justificou-se mais uma grande perseguição aos judeus[6].

XIII - De como o segundo bispo de Roma é Anacleto
1. Depois de imperar Vespasiano durante dez anos, sucede-o como imperador seu filho Tito. No segundo ano de seu reinado, Lino, bispo da igreja de Roma, depois de exercer o cargo durante doze anos, transmite-o a Anacleto. Tito, que imperou dois anos e uns poucos meses, foi sucedido por seu irmão Domiciano.

XIV - De como o segundo a dirigir os alexandrinos é Abílio
1. No quarto ano de Domiciano morre Aniano, primeiro bispo da igreja de Alexandria, após haver completado vinte e dois anos, sucede-o Abílio como segundo bispo.

XV - De como o terceiro bispo de Roma, depois de Anacleto, é Clemente
1. No duodécimo ano do mesmo reinado[7], Clemente sucede a Anacleto, que havia sido bispo da igreja de Roma durante doze anos. O apóstolo, em sua carta aos Filipenses, faz saber a estes que Clemente era colaborador seu, dizendo: Com Clemente também e os demais colaboradores meus, cujos nomes estão no livro da vida[8].

XVI - Da carta de Clemente
1. Deste existe uma Carta universalmente admitida, longa e admirável, que escreveu em nome da igreja de Roma à dos Coríntios, tendo como motivo uma sedição ocorrida em Corinto. Sabemos que esta carta foi lida publica­mente na assembléia na maior parte das igrejas, não apenas antigamente, mas também em nossos dias. E Hegesipo é testemunha suficiente de que no tempo indicado houve a sedição de Corinto.

XVII - Da perseguição sob Domiciano
1. Domiciano deu provas de uma grande crueldade para com muitos, dando morte sem julgamento razoável a não pequeno número de patrícios e de homens ilustres, e castigando com o desterro fora das fronteiras e confisco de bens a outras inúmeras personalidades sem causa alguma. Terminou por constituir a si mesmo sucessor de Nero na animosidade e guerra contra Deus. Efetivamente ele foi o segundo a promover a perseguição contra nós, apesar de que seu pai Vespasiano nada de mal planejou contra nós.

XVIII - Sobre o apóstolo João e o "Apocalipse"
1.            É tradição[9] que, neste tempo, o apóstolo e evangelista João, que ainda vivia, foi condenado a habitar a ilha de Patmos por ter dado testemunho do Verbo de Deus.
2.            Pelo menos Irineu, quando escreve acerca do número do nome aplicado ao anticristo no chamado Apocalipse de João[10], diz no livro V Contra as heresias, textualmente sobre João o que segue:
3.            Mas se fosse necessário atualmente proclamar abertamente seu nome[11], seria feito por meio daquele que também viu o Apocalipse, já que não faz muito tempo que foi visto, mas quase em nossa geração, ao final do império de Domiciano."
4.     Mas deve-se saber que de tal maneira brilhou por aqueles dias o ensinamento de nossa fé, que até os escritores alheios a nossa doutrina não vacilaram em transmitir em suas narrativas a perseguição e os martírios que então ocorreram. Indicaram inclusive com total exatidão a data ao referir que no décimo quinto ano de Domiciano, Flávia Domitila, filha de uma irmã de Flávio Clemente, um dos cônsules daquele ano em Roma, junto com muitos outros, foi castigada com o desterro à ilha de Pontia, por causa de seu testemunho sobre Cristo.

XIX - De como Domiciano ordena a morte aos descendentes de Davi
1. O próprio Domiciano deu ordem de executar os membros da família de Davi, e uma antiga tradição diz que alguns hereges acusaram os descen­dentes de Judas - que era irmão do Salvador segundo a carne —, com o pretexto de que eram da família de Davi e parentes do próprio Cristo[12]. Isto é o que declara Hegesipo quando diz textualmente:



O que mais te chamou a atenção neste texto?
O que o texto contribui para a sua espiritualidade?




[1] Nasceu no primeiro ano de Calígula (37-38 d.C), entrou em contato com os romanos em 64. Em 66 comanda parte das forças revolucionárias da Galiléia e cai prisioneiro dos romanos em 67. Desde sua libertação em 69 toma parte dos acontecimentos ao lado dos romanos e vive em Roma o resto de seus dias.
[2] Esta é a única referência que existe sobre esta estátua.
[3] Conserva-se apenas a versão grega, perdeu-se a aramaica.
[4] Esta obra não foi escrita por Josefo, mas por um autor contemporâneo ou pouco posterior.
[5] Lc 24:18; Jo 19:25. Escrito Cléopas em português.
[6] Não há outro registro sobre esta ordem e a perseguição conseqüente; é difícil avaliar o valor histórico desta citação.
[7] O duodécimo ano do reinado de Domiciano corresponde a 93 d.C.
[8] Fp 4:3, a identificação com este Clemente não tem o menor fundamento.
[9] Tradição escrita, consta das Memórias de Hegesipo.
[10] Ap 13:17-18.
[11] O do anticristo.
[12] Não se sabe quem eram estes hereges.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Estudo 19 - Livro III - Capítulos 06 a 08

19
História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia
Livro III - Capítulos 06 a 08
 

Texto Bíblico: Mt 24:19-21.

VI - Sobre a fome que oprimiu os judeus
VII  - Sobre as profecias de Cristo
VIII - Dos sinais que precederam a guerra

 VI - Sobre a fome que oprimiu os judeus
1.    Assim pois, se tomas outra vez em tuas mãos o livro V das Histórias de Josefo, leia a tragédia que lhes aconteceu então:
"Para os ricos - diz - ficar era o mesmo que perder-se, pois, sob pretexto de que deserdavam, assassinavam qualquer um pelos seus bens. Com a fome crescia o desespero dos rebeldes, e dia a dia uma e outro se acendiam terrivelmente.
2.     O trigo estava invisível, mas eles invadiam as casas e as revistavam. Então, se o encontravam, maltratavam-nos por ter negado; se não o encontravam, torturavam-nos por tê-lo escondido tão cuidadosamente. A prova de ter ou não ter eram os corpos dos desgraçados: os que ainda se agüentavam em pé pareciam ter alimentos em abundância; os que já estavam consumidos eram deixados em paz: parecia fora de propósito matar alguém que logo morreria de inanição.
3.            Muitos davam secretamente seus bens em troca de uma medida de trigo se eram ricos; de cevada os mais pobres. Trancavam-se no mais oculto de suas casas e, impelidos pela necessidade, uns comiam o trigo cru; outros o coziam à medida que a necessidade e o medo ditavam.
4.     Não se punha a mesa, antes, tiravam do fogo a comida ainda crua e a devoravam. O alimento era miserável e o espetáculo deplorável: os mais fortes tomando tudo e os fracos lamentando-se.
5.     A fome excede todos os sofrimentos, mas nada ela destrói mais do que o senso de dignidade, pois o que em outro tempo seria tido como digno de respeito é depreciado em tempo de fome. Assim, as mulheres tiravam os alimentos da própria boca dos maridos, os filhos da de seus pais e, o que é demasiado lamentável, as mães das bocas de seus filhos, e enquanto os seres mais queridos se consumiam entre suas mãos, nada os refreava de tirar-lhes as últimas gotas que os permitiam viver.
6.             Mas, mesmo sendo esta sua comida, não permanecia oculta. Por toda parte caíam-lhes em cima os rebeldes em busca dessa presa. Quando viam uma casa fechada, era sinal de que os ocupantes tinham conseguido comida, e imediatamente arrombavam as portas e se precipitavam para dentro, e só lhes faltava apertar as gargantas e arrancar-lhes o bocado.
7.      Golpeavam os anciãos que não soltavam seus alimentos e arrancavam o cabelo das mulheres que escondiam o que tinham nas mãos. Não havia compaixão nem pelos velhos nem pelas crianças, mas levantavam as crianças que seguravam seu bocado e as deixavam cair contra o solo. Com aqueles que, adiantando-se a seu ataque, engoliam antes o que ten­tariam tirar-lhes, eram ainda mais cruéis, como se tivessem sofrido uma injustiça.
8.      Usavam espantosos métodos de tortura para descobrir comida: obstruíam a uretra dos desgraçados com grãos de legumes e trespassavam-lhes o reto com varas pontiagudas. Padeciam-se tormentos que espantam apenas por ouvi-los, até confessar a posse de um único pedaço de pão e descobrir um só punhado de farinha escondida.
9.      Mas os torturadores não passavam fome alguma - sua crueldade seria menor se atendesse a uma necessidade -, mas exercitavam seu louco orgulho e iam ajuntando provisões para os dias vindouros.
10.      Seguiam os que à noite se arrastavam até os postos romanos para reco­lher legumes silvestres e ervas. Quando estes pensavam que já haviam esca­pado dos inimigos, aqueles tiravam-lhes o que levavam, e muitas vezes, se os infelizes suplicavam invocando pelo terrível nome de Deus que lhes deixassem uma parte do que com tanto perigo tinham trazido, não lhes deixavam nem isto, e ainda podiam dar-se por satisfeitos se, além de serem despojados, não eram assassinados."
11.  A isto, depois de outras coisas, acrescenta:
"Com o êxodo cortou-se para os judeus também toda esperança de salvação, e a fome, abatendo-se sobre cada casa e cada família, ia devorando o povo. Os terrenos enchiam-se de mulheres e de crianças de peito mortos, e as vielas de cadáveres de anciãos.
12.  Rapazes e jovens, inchados, vagavam pelas praças como espectros e caíam mortos onde a dor os colhesse. Os doentes não tinham forças para enterrar seus parentes, e os que teriam podido negavam-se, por serem tantos os mortos e pela incerteza de seu próprio destino. De fato, muitos caíam mortos junto aos que tinham acabado de enterrar, e muitos iam a sua tumba antes que a
necessidade o impusesse.
13.     Não havia lamentos nem choro por estas calamidades: a fome afogava os sentimentos, e os que lentamente morriam contemplavam com olhos secos os que morriam antes deles. Um silêncio profundo e uma noite carregada de morte envolviam a cidade. E pior do que tudo isto eram os ladrões.
14.     Penetravam nas casas como ladrões de tumbas, despojavam os cadáveres e, depois de arrancar os panos que cobriam os corpos, iam embora entre risa­das. Testavam o fio de suas espadas nos cadáveres e, provando o ferro, atravessavam alguns, que já caídos, ainda viviam. Mas se alguém lhes pedia que utilizassem nele sua força e sua espada, desdenhavam-no e abandona­vam-no à fome. E todo o que expirava olhava fixamente para o templo, porque deixava vivos atrás de si os rebeldes.
15.     Estes, no começo, por não suportar o fedor, mandavam enterrar os mortos às custas do tesouro público, mas logo, quando não davam mais conta, atiravam-nos sobre as muralhas aos barrancos. Quando Tito fez a ronda por aqueles barrancos e viu que estavam repletos de cadáveres e o espesso líquido escuro que manava por debaixo dos cadáveres em putrefação, pôs-se a gemer e levantando as mãos tomava a Deus por testemunha de que aquilo não era obra sua."
16.     Depois de acrescentar mais algumas coisas, continua dizendo:
"Eu não poderia deixar de expressar o que o sentimento me ordena: creio que, se os romanos tivessem demorado em sua ação contra os culpados, o abismo teria engolido a cidade, ou as águas a teriam submergido, ou teria sido alcançada pelos raios de Sodoma, pois a geração que continha era muito mais ímpia do que as que sofreram estes castigos. E pela demência criminosa destas pessoas, o povo inteiro pereceu com elas."
17. E no livro VII escreve o seguinte:
"Foi infinito o número dos que pereceram na cidade por fome, e os padecimentos eram indizíveis. Em cada casa havia guerra como se aparecesse em um canto uma sombra de comida, e os que mais se queriam entre si pega­vam-se aos tapas para tirar o miserável sustento da vida. Nem sequer nos moribundos confiava a necessidade.
18. Os ladrões revistavam inclusive os que estavam expirando, para que alguém não escondesse alimentos sob a roupa e fingisse estar morto. Outros, com a boca aberta por efeito da desnutrição, andavam cambaleando e desanca­dos como cães raivosos e empurravam as portas como fazem os bêbados e, em sua impotência, entravam nas mesmas casas duas ou três vezes em uma só hora.
19. A necessidade fazia com que levassem tudo à boca, e quando recolhiam alimentos até indignos dos animais irracionais mais repugnantes, levavam-no para comer escondido, a assim acabaram por não abster-se nem dos cintos e dos calçados, tiravam as peles de seus escudos e as mastigavam. Para alguns até fiapos de ervas velhas eram alimento, outros recolhiam fibras de plantas e vendiam uma porção mínima por quatro dracmas áticos.
20.     E o que haveria para dizer sobre a impudência das pessoas presas do desâ­nimo? Porque vou mostrar uma obra sua que não está narrada nem entre os gregos nem entre os bárbaros, espantosa de dizer, incrível de escutar. Eu pelo menos, para não dar a impressão de que estou inventando para a posteri­dade, de bom grado omitiria esta calamidade se não tivesse uma infinidade de testemunhos contemporâneos meus. Além disso prestaria pouco serviço a minha pátria se renunciasse a relatar os males que de fato padeceram.
21. Uma mulher das que habitavam na outra margem do Jordão, chamada Maria, filha de Eleazar, da aldeia de Batezor - nome que significa "casa de hissôpo" - notável por suas riquezas e sua linhagem, fugiu para Jerusalém com o resto da multidão e com esta compartilhava o assédio.
22. Os tiranos tiraram-lhe todos os bens que havia reunido e levado consigo à cidade desde Peréia. O resto de seu enxoval e o pouco alimento que encon­traram foi sendo roubado por pessoas armadas que entravam a cada dia. Foi grande a indignação daquela pobre mulher, que muitas vezes injuriava e maldizia os ladrões para excitá-los contra si mesma.
23. Mas como ninguém a matava, movidos pela ira ou pela compaixão, e cansada de buscar alimentos para outros, que já eram impossíveis de encontrar em parte alguma, com as entranhas e a medula trespassadas pela fome, tomou como conselheiras a cólera e a necessidade e se lançou contra a natureza, agarrou o filho que tinha - criança ainda de peito - e disse:
24.  Criatura desgraçada! Em meio à guerra, à fome e à revolta, para quem vou guardar-te? Entre os romanos, se por acaso cairmos vivos em suas mãos, a escravidão; mas a fome se antecipa à própria escravidão e os rebeldes são ainda piores do que ambas as coisas. Eia! Seja alimento para mim, maldição para os rebeldes e fábula para o mundo: a única coisa que faltava às calamidades dos judeus!
25.  E enquanto dizia estas coisas, deu morte a seu filho. Depois assou-o e comeu a metade; o resto guardou escondido. Em seguida apareceram os rebeldes, e farejando a ímpia exalação, ameaçaram a mulher de degolá-la imedia­tamente se não lhes mostrasse o que tinha preparado. Ela então lhes disse que para eles guardara uma boa porção e revelou o que restava de seu filho.
26.  O horror e o pasmo surpreendeu-os na hora e ficaram cravados no lugar diante daquele espetáculo. Mas ela disse: é meu próprio filho e eu o fiz. Comei, pois também eu comi. Não sejais mais brandos do que uma mulher nem mais compassivos do que uma mãe. Mas se por escrúpulos piedosos recusais meu sacrifício, eu já comi por vós, fique o resto também para mim.
27.  Depois disto, aqueles foram-se tremendo: foi a única vez em que se acovar­daram e que, de malgrado, cederam à mãe tal comida. Em seguida a cidade inteira encheu-se de horror, e todo o mundo estremeceu ao ser-lhe apre­sentado frente aos olhos aquele crime como sendo seu próprio. 28. E entre os esfomeados havia pressa para morrer e uma certa inveja pelos que haviam se adiantado morrendo antes de ouvir e contemplar semelhantes horrores."
Esta foi a recompensa dos judeus por sua iniqüidade e impiedade para com o Cristo de Deus.

VII  - Sobre as profecias de Cristo
1.            É justo acrescentar a pregação infalível de nosso Salvador pela qual mostrava estas mesmas coisas quando profetizava assim: das que estiverem grávidas e das que amamentarem naqueles dias! Orai para que a vossa fuga não se dê no inverno, nem no sábado; porque nesse tempo haverá grande tribulação, como desde o princípio do mundo até agora não tem havido, nem haverá jamais[1].
2.            Somando o número total de mortos, o escritor diz que pela fome e pela espada pereceram um milhão e cem mil pessoas; que os rebeldes e bandidos que ainda sobraram foram se denunciando uns aos outros depois da tomada da cidade e foram executados; que os jovens mais esbeltos e que sobressaíam por sua beleza física foram reservados para a cerimônia do "triunfo", e do resto da população, os que passavam de dezessete anos, uns eram enviados acorrentados aos trabalhos forçados no Egito, e outros, mais numerosos, foram distribuídos pelas províncias para fazê-los perecer nos teatros pela espada ou pelas feras; e os que ainda não tinham chegado aos dezessete anos eram conduzidos cativos para serem vendidos. Somente destes o número dava um total de uns noventa mil[2].
3.            Estes acontecimentos ocorreram deste modo no segundo ano do império de Vespasiano[3], segundo as predições de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, que, por seu divino poder, havia visto de antemão estas mesmas coisas como se já estivessem presentes e havia chorado e soluçado, segundo a Escritura dos sagrados evangelistas, que inclusive acrescentam suas próprias palavras: umas, as que disse dirigindo-se à mesma Jerusalém:
4.    Se tu conheceras ao menos neste dia o que diz respeito a tua paz! Mas agora está oculto aos teus olhos. Porque virão dias sobre ti, e teus inimigos te rodearão de paliçadas, te cercarão e por todos os lados te apertarão. E te assolarão a ti e a teus filhos[4].
5.             E outras como referindo-se ao povo: Porque haverá grande necessidade sobre a terra e ira contra este povo. E cairão ao fio da espada e serão levados cativos a todas as nações. E Jerusalém será pisoteada pelos gentios, até que sejam cumpridos os tempos destes povos[5]. E outra vez: E quando virdes Jerusalém cercada por exércitos, sabei então que terá chegado sua desolação[6].
6.      Se alguém comparar as palavras de nosso Salvador com os demais relatos do escritor acerca da guerra inteira, como não ficar admirado e confessar como verdadeiramente divinas e sobrenaturalmente prodigiosas a presciência e a predição de nosso Salvador?
7.      Portanto, sobre o acontecido à nação inteira depois da paixão do Salvador e dos gritos com os quais a plebe judia pediu para livrar da morte o ladrão e assassino e suplicou que tirassem de seu meio o autor da vida, não haverá necessidade de acrescentar nada à narrativa.
8.      Contudo, seria justo acrescentar o que poderia ser significativo sobre o amor da divina providência aos homens, pois retardou a destruição dos culpados durante quarenta anos completos depois de seu crime contra Cristo. Durante estes anos, numerosos apóstolos e discípulos, e o próprio Tiago, primeiro bispo dali e chamado irmão do Senhor, que ainda viviam e moravam na mesma cidade de Jerusalém, mantinham-se fiéis ao lugar como fortíssima muralha.
9.      A providência divina até aquele momento mostrava sua grande paciência, para o caso de que se arrependessem de seu feito e alcançassem assim o perdão e a salvação; e como se tal longanimidade fosse pouco, deixava ver sinais divinos extraordinários do que lhes sucederia se não se arrependessem. Também estes sinais foram considerados notáveis pelo autor citado. Nada melhor do que oferecê-los aos que lêem esta obra.

VIII - Dos sinais que precederam a guerra
1. Toma pois, e lê o que apresenta no livro VI de suas Histórias com estas palavras:
"Naquele tempo os impostores e os que levantavam tais calúnias contra Deus pervertiam o povo miserável, de forma que nem percebiam nem davam crédito a tais prodígios bem claros que anunciavam de antemão a iminente desolação; antes, como se aturdidos por um raio e como se não tivessem olhos nem alma, faziam ouvidos surdos às mensagens de Deus.
2.             Estas foram: um astro que se deteve sobre a cidade, semelhante a uma espada de dois gumes, e um cometa que durou todo um ano. Outra vez foi quando, antes da insurreição e dos distúrbios que levaram à guerra, estando o povo reunido para celebrar a festa dos ázimos, no oitavo dia do mês de Jantico, à nona hora da noite, brilhou sobre o altar e o templo uma luz tão grande que poder-se-ia pensar que era dia, e isto durou uma meia hora. Aos ignorantes poderia parecer um bom sinal, mas os escribas interpretaram-no corretamente antes que os fatos ocorressem.
3.      E na mesma festa, uma vaca que o sumo sacerdote conduzia ao sacrifício pariu um cordeiro no meio do templo.
4.      E a porta oriental do interior, que era de bronze e muito pesada, e que havia sido fechada ao anoitecer com dificuldade por vinte homens que a trancaram solidamente com ferrolhos presos com ferro, além de ter gonzos profundos, abriu-se sozinha à sexta hora da noite.
5.             E passada a festa, não muito depois, no vigésimo primeiro dia de Artemisio, apareceu um fantasma demoníaco de tamanho incrível. E o que se passará a dizer poderia parecer mentira se não tivesse sido contado pelos mesmos que o viram e se os sofrimentos que se seguiram não fossem dignos destes sinais. De fato, antes do pôr-do-sol, apareceram pelo ar em redor de toda a região carros e falanges armadas que se lançavam através das nuvens e rodeavam as cidades.
6.      E na festa chamada Pentecostes, à noite, entrando os sacerdotes no templo, como de costume, para exercer suas funções, dizem que primeiramente perceberam movimento e ruído de golpes, e logo um grito em uníssono: Saiamos daqui!
7.             E o que é mais terrível: um homem chamado Jesus, filho de Ananías, homem simples, camponês, quatro anos antes da guerra, quando a cidade desfru­tava da maior paz e do máximo esplendor, veio à festa, pois era costume que todos erigissem tendas em honra a Deus[7], e de repente começou a gritar pelo templo: Voz do oriente! Voz do ocidente! Voz dos quatro ven­tos! Voz sobre Jerusalém e sobre o templo! Voz dos recém-casados e casadas! Voz sobre todo o povo! Dia e noite gritava isto por todas as vielas.
8.      Mas alguns cidadãos notáveis, irritados pelo mau agouro, prenderam o homem e maltrataram-no, enchendo-o de feridas. Mas ele, que não falava em proveito próprio nem por conta própria, continuava gritando aos presen­tes o mesmo que antes.
9.      Pensando então os chefes que a agitação daquele homem era algo demoníaco, conduziram-no ante o procurador romano[8]. Ali, dilacerado com açoites até os ossos, não suplicou nem derramou uma lágrima, mas, tornando sua voz tão chorosa quanto possível, a cada ferida respondia: Ai, ai de Jerusalém!"
10.  Comenta o mesmo Josefo outro fato mais extraordinário. Diz que nas escrituras sagradas encontrou-se um oráculo com este conteúdo: que naquele tempo alguém saído de seu país regeria o mundo. O próprio Josefo concluiu que o oráculo tinha sido cumprido em Vespasiano[9].
11.  Mas este não governou a todo o mundo, mas somente à parte submetida aos romanos. Seria pois mais justo referi-lo a Cristo, a quem o Pai havia dito: Pede-me e te darei nações como herança e os confins da terra como tua possessão[10]. Pois bem, por este mesmo tempo chegara a toda a terra a voz dos santos apóstolos e aos confins do mundo suas palavras[11].

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[1] Mt 24:19-21.
[2] Os números dados por Josefo e citados por Eusébio devem ser exagerados levando em conta a população da Palestina na época. Para Tacitus os assediados em Jerusalém eram uns 600.000. Josefo cita como total de prisioneiros para toda duração da guerra o número de 97.000, de todas as idades.
[3] Exatamente em setembro do ano 70.
[4] Lc 19:42-44.
[5] Lc 21:23-24.
[6] Lc 21:20.
[7] Era portanto a festa dos Tabernáculos (Setembro-Outubro).
[8] Luceius Albinus, procurador entre 62 e 64.
[9] Não se sabe em que passagem da escritura poderia encontrar-se este oráculo.
[10] Sl 2:8.
[11] Rm 10:18.