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História Eclesiástica de Eusébio de
Cesaréia
Livro III
- Capítulos 24 a 27
Texto Bíblico: 2 Co 12:2-4.
XXIV - Da ordem dos evangelhos
XXV - Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o
são
XXVI - Sobre o mago Menandro
XXVII - Da heresia dos ebionitas
XXVIII - Do heresiarca Cerinto
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1.
Que este testemunho de Clemente
sirva ao mesmo tempo de narrativa e de ensinamento para os que chegarem a lê-lo.
Indiquemos porém os escritos incontroversos deste apóstolo.
2.
Em primeiro lugar fique reconhecido
como autêntico seu Evangelho, que é lido por inteiro em
todas as igrejas sob o céu. Ainda assim, o fato de os antigos terem-no
catalogado com boas razões em quarto lugar, depois dos outros três, talvez
possa ser explicado da seguinte maneira.
3.
Aqueles homens inspirados e
verdadeiramente dignos de Deus - os apóstolos de Cristo, digo
-, tendo suas vidas purificadas até o cerne e suas almas adornadas com todas as virtudes, falavam, ainda assim, a língua dos
simples. Ainda que o poder divino e operador de milagres dado pelo Salvador tornasse-os audazes, não sabiam nem tentavam
sequer ser embaixadores da doutrina do Salvador com a persuasão e com a
arte dos discursos, mas, usando apenas a demonstração do Espírito divino que
trabalhava com eles e do poder de Cristo
que se exercia através deles, anunciaram o conhecimento do reino dos céus por toda a terra habitada,
sem preocupar-se muito em pô-los por escrito.
4. E operaram assim, como servidores de um ministério maior e que está acima
do homem. E assim Paulo, o mais capaz de todos na preparação de discursos e o de mais vigoroso pensamento, não deixou mais do que suas curtíssimas cartas, e isso podendo dizer coisas infinitas e inefáveis por ter
alcançado a contemplação até do terceiro céu, já que
havia sido arrebatado até o próprio paraíso e fez-se
digno de escutar as palavras inefáveis de lá[1].
5.
Tampouco faltava experiência destas
coisas aos demais acompanhantes de nosso Salvador, os
doze apóstolos por um lado e os setenta discípulos por outro, além de inúmeros outros além destes. E mesmo assim, de todos apenas
Mateus e João deixaram-nos memórias das conversações do
Senhor, e ainda é tradição que as escreveram forçados a isso.
6.
Com efeito Mateus, que primeiramente
tinha pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para outros, entregou
por escrito seu Evangelho, em sua
língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua
presença entre aqueles de quem se afastava.
7. Marcos e Lucas já tinham publicado seus respectivos evangelhos, enquanto de João se diz que
em todo este tempo continuava usando a pregação não escrita, mas que por fim chegou também a escrever, pelo seguinte
motivo. Os três evangelhos anteriormente escritos já haviam sido distribuídos
para todos, inclusive para o próprio João, e diz-se que este os aceitou
e deu testemunho de sua veracidade, mas
também que lhes faltava unicamente a narrativa do que Cristo havia feito
nos primeiros tempos e no começo de sua pregação.
8.
A razão é verdadeira. É possível ver realmente que os três
evangelistas puseram por escrito apenas os
fatos que se seguiram ao encarceramento de João Batista, durante um ano apenas,
e que eles mesmos alertam sobre isto no início dos relatos.
9.
Por exemplo, depois do jejum de
quarenta dias e da tentação que se seguiu, Mateus declara a data por suas próprias
palavras quando diz: E ouvindo que João
havia sido entregue, retirou-se da Judéia para a Galiléia[2].
10. E o mesmo faz Marcos, que diz: Depois de João ser preso, Jesus foi para
a Galiléia[3].
E Lucas, antes de dar início aos feitos de Jesus, faz semelhante observação, dizendo que Herodes juntou às maldades que havia cometido esta outra: lançou
João ao cárcere[4].
11. Em conseqüência diz-se que por isto decidiu-se o apóstolo João a
transmitir em seu Evangelho o período silenciado pelos primeiros evangelistas
e as obras realizadas neste tempo pelo Salvador, ou seja, as anteriores ao
encarceramento do Batista, e que isto se mostra quando diz: Assim principiaram os milagres de Jesus[5],
e também quando menciona o
Batista em meio aos atos de Jesus dizendo que ainda seguia batizando em
Enom, perto de Salim. Expressa-o claramente ao dizer: Porque João ainda não
havia sido encarcerado[6].
12. João, portanto,
transmite em seu Evangelho escrito o que Cristo fez antes de que o Batista fosse encarcerado, enquanto que
os outros três relatam os feitos posteriores ao encarceramento do
Batista.
13. Quem prestar atenção a tudo isto já não tem por que achar que os
evangelhos diferem entre si, já que o de João contém
as primeiras obras de Cristo, e os outros a história do
final do período. E, conseqüentemente, também é provável que João
passasse por alto a genealogia carnal de nosso Salvador porque Mateus e Lucas já a escreveram, e começasse falando de sua
divindade, como se o Espírito divino
o tivesse reservado a ele como o mais capaz.
14. Seja-nos suficiente, pois, o que dissemos sobre a composição do Evangelho
de João. A causa de ter-se escrito o Evangelho de Marcos já foi explicado acima[7].
15. No que se refere a Lucas, também ele, ao começar seu escrito[8], expõe de antemão o motivo
pelo qual o compôs. Como muitos outros já tinham se ocupado com demasiada
precipitação a fazer uma narrativa dos fatos de que ele mesmo estava bem informado, sentiu-se obrigado a afastar-nos das
suposições duvidosas dos outros, e
transmitiu-nos por meio de seu Evangelho o relato correto de tudo aquilo
cuja verdade ele conheceu bem aproveitando
a convivência e o trato com Paulo, assim como a conversação com os demais
apóstolos.
16. Isto é o que temos
sobre este tema. Em momento apropriado trataremos de explicar, por meio de citações dos antigos, o que outros disseram
sobre este assunto.
17. Dos escritos de João, além do Evangelho, também é admitida sem
discussão, por modernos e por antigos, a primeira de
suas cartas. As outras duas, por outro lado, são discutidas.
18. Quanto ao Apocalipse, ainda hoje a opinião de muitos divide-se em
um ou outro sentido. Também ele receberá no devido tempo sua
sanção, extraída do testemunho dos antigos.
XXV - Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o são
1.
Chegando aqui, é hora de recapitular os escritos do Novo
Testamento já mencionados. Em primeiro lugar temos que colocar a tétrade
santa dos Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos
Apóstolos.
2.
Depois deste há que se colocar a
lista das Cartas de Paulo. Depois deve-se dar por certa a chamada Primeira
de João, assim como a de Pedro. Depois destas, se está
bem, pode-se colocar o Apocalipse de João, sobre o qual exporemos
oportunamente o que dele se pensa.
3.
Estes são os ditos admitidos. Dos
livros discutidos, por outro lado, mas que são conhecidos da grande maioria,
temos a Carta dita de Tiago, a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem segunda e
terceira de João, sejam do próprio evangelista, seja de outro com o
mesmo nome.
4. Entre os espúrios
sejam listados: o escrito dos Atos de Paulo, o chamado Pastor e o Apocalipse de Pedro, e além destes, a que se diz Carta de
Barnabé e a obra chamada Ensinamento
dos Apóstolos, e ainda, como já disse, talvez, o Apocalipse de João: alguns, como disse, rechaçam-no, enquanto outros o
contam entre os livros admitidos.
5.
Alguns ainda catalogam entre estes
inclusive o Evangelho dos hebreus, no qual são muito contemplados os
hebreus que aceitaram Cristo. Todos estes são livros discutidos.
6.
Mas creio ser necessário que exista
um catálogo destes também, distinguindo os escritos que, segundo a tradição da
Igreja, são verdadeiros, genuínos e admitidos, daqueles que diferentes destes
por não serem testamentários, mas
discutidos, ainda assim são conhecidos pela grande maioria dos autores eclesiásticos, de modo que possamos conhecer
estes livros e os que com o nome dos
apóstolos foram divulgados pelos hereges, alegando que se tratem seja dos Evangelhos de Pedro, de Tomás, de
Matias ou mesmo de algum outro, ou ainda dos Atos de André, de
João e de outros apóstolos. Jamais um só dentre os escritores ortodoxos julgou
digno mencionar estes livros em seus escritos.
7. Mas
ocorre que a própria índole do fraseado difere enormemente do estilo dos
apóstolos, o pensamento e a intenção do que neles está contido destoa ainda mais da verdadeira ortodoxia: claramente
demonstram ser invenções de hereges.
Por isso não devem ser incluídos nem mesmo entre os espúrios, mas
devemos rechaçá-los como inteiramente absurdos e ímpios. Continuemos agora
nosso relato.
XXVI - Sobre o mago Menandro
1.
O mago Simão foi sucedido por Menandro, o qual, pela sua
maneira de agir, mostrou ser uma segunda arma do poder diabólico não inferior à
primeira. Também ele era samaritano, e em
seu progresso até o ápice da feitiçaria não foi inferior a seu mestre,
mas até abundou em milagres ainda maiores. Chamava-se a si mesmo, como se
realmente o fosse, o salvador enviado de
algum lugar do alto, desde éons insondáveis, para salvação dos homens.
2.
E ensinava que ninguém poderia de forma alguma exceder
inclusive aos próprios anjos que fizeram o
mundo se primeiramente não fosse conduzido através da experiência mágica
transmitida por ele e através do batismo por ele dispensado. Os que são considerados dignos deste participarão já
nesta vida da imortalidade perdurável
e não morrerão jamais. Mas permanecerão aqui para sempre, não envelhecerão e serão imortais. Este ponto é fácil
de reconhecer pelos escritos de Irineu.
3.
Também Justino, ao mencionar Simão
pela mesma razão, acrescenta uma relação sobre este outro, dizendo:
"Sabemos também que um certo Menandro, também samaritano, oriundo da aldeia chamada
Caparatea, depois de ser discípulo de Simão e estando também possuído por
demônios, apareceu em Antioquia, e com sua arte mágica seduziu a muitos. E convenceu seus seguidores de que não
morreriam. Hoje restam alguns de sua seita que continuam a
professá-lo."
4. Era sem dúvida obra da influência diabólica
lançar mão de tais feiticeiros revestidos
do nome de cristãos para esforçar-se em caluniar o grande mistério de piedade,
acusando de magia, e destruir por meio deles os dogmas da Igreja sobre a
imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da verdadeira esperança.
XXVII - Da heresia dos ebionitas
1. De outros porém, o demônio malvado,
impotente para arrancá-los de sua disposição para como Cristo de Deus, tomou
posse ao encontrar outros pontos por onde
agarrá-los. Estes primeiros foram chamados ebionitas[9], como
convinha, pois tinham sobre Cristo pensamentos pobres e de baixa estima.
2.
Pois pensavam dele que era apenas
um homem simples e comum, justificado à medida em que
progredia em seu caráter, e nascido da união de um homem e de Maria. Acreditavam absolutamente necessária para eles a observância da lei,
alegando que não se salvariam apenas pela fé e por viver conforme ela.
3.
Mas, além destes, havia outros da mesma denominação que
escapavam de sua estranha insensatez. Não
negavam que o Senhor houvesse nascido de uma virgem e do Espírito Santo.
Mas, assim como aqueles, tampouco confessavam que, por ser Deus, Verbo e
Sabedoria, preexistia já. Desta maneira retornavam à impiedade dos primeiros,
principalmente quando, assim como eles, esforçavam-se por honrar demasiadamente
a observância da lei.
4. Acreditavam também que era necessário a todo custo rechaçar as Cartas do
Apóstolo, a quem chamavam apóstata da lei, enquanto usavam
exclusivamente o chamado Evangelho dos hebreus, sem
importar-se em nada com os outros.
5.
Da mesma forma que aqueles, observavam o sábado e tudo o mais
da disciplina judaica. No entanto, aos
domingos celebravam ritos semelhantes aos nossos em memória da
ressurreição do Salvador.
6.
Daí, de tais práticas, veio-lhes a
denominação que levam: o nome de ebionitas manifesta a pobreza
de sua inteligência, pois com este nome se chama entre os hebreus aos
pobres.
XXVIII - Do heresiarca Cerinto
1.
Sabemos que pelas datas mencionadas
Cerinto fez-se cabeça de outra heresia. Caio, a quem já
citamos antes[10],
escreve sobre ele o que segue, na disputa que lhe é atribuída:
2. "No entanto, também Cerinto, por meio de revelações que diz serem
escritas por um grande apóstolo, apresenta milagres com a mentira de que lhe
teriam sido mostradas por ministério dos anjos, e diz que
depois da ressurreição o reino de Cristo será terrestre e que novamente a carne, que
habitará em Jerusalém, será escrava de
paixões e prazeres. Como inimigo das Escrituras de Deus e querendo fazer errar, diz que haverá um número de mil anos de
festa nupcial."
3.
E também Dionísio, que em nosso
tempo obteve o episcopado da igreja de Alexandria, ao dizer
no livro II de suas Promessas algumas coisas sobre o Apocalipse de João como
recebidas de uma antiga tradição, menciona o mesmo Cerinto com estas palavras:
4. "E Cerinto, o mesmo que instituiu a heresia que toma seu nome, a
cerintiana, que quis creditar sua própria invenção com um nome digno de fé. Este é
efetivamente o tema da doutrina que ensina: que o reino de Cristo será terreno.
5.
E como ele era um amante de seu
corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria do mesmo
que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou
seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam
estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e
imolação de vítimas sagradas."
6.
Isto diz Dionísio. E Irineu, depois
de expor, no livro I de sua obra Contra as heresias, alguns dos erros
mais abomináveis do mesmo Cerinto, transmitiu-nos por
escrito, no livro III, um relato que não se deve esquecer, procedente, segundo diz, da
tradição de Policarpo. Afirma que o apóstolo João entrou certa vez nos banhos públicos para lavar-se, mas
ao ficar sabendo que dentro encontrava-se Cerinto, afastou-se rapidamente do
lugar e correu para a porta, por não
suportar encontrar-se sob o mesmo teto que ele, e exortava os que o
acompanhavam a fazerem o mesmo, dizendo: "Fujamos, não aconteça que os próprios banhos venham abaixo por estar
dentro Cerinto, o inimigo da verdade."
O que mais te chamou a
atenção neste texto?
O que o texto contribui
para a sua espiritualidade?
O
ícone da capa: Clemente de Alexandria ou Tito
Flávio Clemente (Atenas (?), c. 150 - Palestina, 215) foi um escritor, teólogo, apologista cristão grego nascido
em Atenas. O
mais erudito Pai da Igreja. Trabalhou 20 anos em Alexandria.
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