quinta-feira, 16 de abril de 2015

Livro III - Capítulos 24 a 27

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História Eclesiástica de Eusébio de Cesaréia
Livro III - Capítulos 24 a 27
 
Texto Bíblico: 2 Co 12:2-4.

XXIV - Da ordem dos evangelhos
XXV - Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o são
XXVI - Sobre o mago Menandro
XXVII - Da heresia dos ebionitas
XXVIII - Do heresiarca Cerinto

 XXIV - Da ordem dos evangelhos
1.            Que este testemunho de Clemente sirva ao mesmo tempo de narrativa e de ensinamento para os que chegarem a lê-lo. Indiquemos porém os escritos incontroversos deste apóstolo.
2.            Em primeiro lugar fique reconhecido como autêntico seu Evangelho, que é lido por inteiro em todas as igrejas sob o céu. Ainda assim, o fato de os antigos terem-no catalogado com boas razões em quarto lugar, depois dos outros três, talvez possa ser explicado da seguinte maneira.
3.     Aqueles homens inspirados e verdadeiramente dignos de Deus - os apósto­los de Cristo, digo -, tendo suas vidas purificadas até o cerne e suas almas adornadas com todas as virtudes, falavam, ainda assim, a língua dos simples. Ainda que o poder divino e operador de milagres dado pelo Salvador tornasse-os audazes, não sabiam nem tentavam sequer ser embaixadores da doutrina do Salvador com a persuasão e com a arte dos discursos, mas, usando apenas a demonstração do Espírito divino que trabalhava com eles e do poder de Cristo que se exercia através deles, anunciaram o conheci­mento do reino dos céus por toda a terra habitada, sem preocupar-se muito em pô-los por escrito.
4.      E operaram assim, como servidores de um ministério maior e que está acima do homem. E assim Paulo, o mais capaz de todos na preparação de discursos e o de mais vigoroso pensamento, não deixou mais do que suas curtíssimas cartas, e isso podendo dizer coisas infinitas e inefáveis por ter alcançado a contemplação até do terceiro céu, já que havia sido arrebatado até o próprio paraíso e fez-se digno de escutar as palavras inefáveis de lá[1].
5.             Tampouco faltava experiência destas coisas aos demais acompanhantes de nosso Salvador, os doze apóstolos por um lado e os setenta discípulos por outro, além de inúmeros outros além destes. E mesmo assim, de todos apenas Mateus e João deixaram-nos memórias das conversações do Senhor, e ainda é tradição que as escreveram forçados a isso.
6.             Com efeito Mateus, que primeiramente tinha pregado aos hebreus, quando estava a ponto de ir para outros, entregou por escrito seu Evangelho, em sua língua materna, fornecendo assim por meio da escritura o que faltava de sua presença entre aqueles de quem se afastava.
7.      Marcos e Lucas já tinham publicado seus respectivos evangelhos, enquanto de João se diz que em todo este tempo continuava usando a pregação não escrita, mas que por fim chegou também a escrever, pelo seguinte motivo. Os três evangelhos anteriormente escritos já haviam sido distribuídos para todos, inclusive para o próprio João, e diz-se que este os aceitou e deu testemunho de sua veracidade, mas também que lhes faltava unicamente a narrativa do que Cristo havia feito nos primeiros tempos e no começo de sua pregação.
8.             A razão é verdadeira. É possível ver realmente que os três evangelistas puseram por escrito apenas os fatos que se seguiram ao encarceramento de João Batista, durante um ano apenas, e que eles mesmos alertam sobre isto no início dos relatos.
9.             Por exemplo, depois do jejum de quarenta dias e da tentação que se seguiu, Mateus declara a data por suas próprias palavras quando diz: E ouvindo que João havia sido entregue, retirou-se da Judéia para a Galiléia[2].
10.     E o mesmo faz Marcos, que diz: Depois de João ser preso, Jesus foi para a Galiléia[3]. E Lucas, antes de dar início aos feitos de Jesus, faz semelhante observação, dizendo que Herodes juntou às maldades que havia cometido esta outra: lançou João ao cárcere[4].
11.     Em conseqüência diz-se que por isto decidiu-se o apóstolo João a transmitir em seu Evangelho o período silenciado pelos primeiros evangelistas e as obras realizadas neste tempo pelo Salvador, ou seja, as anteriores ao encarceramento do Batista, e que isto se mostra quando diz: Assim principiaram os milagres de Jesus[5], e também quando menciona o Batista em meio aos atos de Jesus dizendo que ainda seguia batizando em Enom, perto de Salim. Expressa-o claramente ao dizer: Porque João ainda não havia sido encarcerado[6].
12. João, portanto, transmite em seu Evangelho escrito o que Cristo fez antes de que o Batista fosse encarcerado, enquanto que os outros três relatam os feitos posteriores ao encarceramento do Batista.
13. Quem prestar atenção a tudo isto já não tem por que achar que os evangelhos diferem entre si, já que o de João contém as primeiras obras de Cristo, e os outros a história do final do período. E, conseqüentemente, também é pro­vável que João passasse por alto a genealogia carnal de nosso Salvador porque Mateus e Lucas já a escreveram, e começasse falando de sua divinda­de, como se o Espírito divino o tivesse reservado a ele como o mais capaz.
14.     Seja-nos suficiente, pois, o que dissemos sobre a composição do Evange­lho de João. A causa de ter-se escrito o Evangelho de Marcos já foi expli­cado acima[7].
15. No que se refere a Lucas, também ele, ao começar seu escrito[8], expõe de antemão o motivo pelo qual o compôs. Como muitos outros já tinham se ocupado com demasiada precipitação a fazer uma narrativa dos fatos de que ele mesmo estava bem informado, sentiu-se obrigado a afastar-nos das suposições duvidosas dos outros, e transmitiu-nos por meio de seu Evangelho o relato correto de tudo aquilo cuja verdade ele conheceu bem aprovei­tando a convivência e o trato com Paulo, assim como a conversação com os demais apóstolos.
16.   Isto é o que temos sobre este tema. Em momento apropriado trataremos de explicar, por meio de citações dos antigos, o que outros disseram sobre este assunto.
17.     Dos escritos de João, além do Evangelho, também é admitida sem discussão, por modernos e por antigos, a primeira de suas cartas. As outras duas, por outro lado, são discutidas.
18.     Quanto ao Apocalipse, ainda hoje a opinião de muitos divide-se em um ou outro sentido. Também ele receberá no devido tempo sua sanção, extraída do testemunho dos antigos.

XXV - Das divinas Escrituras reconhecidas e das que não o são
1.            Chegando aqui, é hora de recapitular os escritos do Novo Testamento já mencionados. Em primeiro lugar temos que colocar a tétrade santa dos Evangelhos, aos quais segue-se o escrito dos Atos dos Apóstolos.
2.            Depois deste há que se colocar a lista das Cartas de Paulo. Depois deve-se dar por certa a chamada Primeira de João, assim como a de Pedro. Depois destas, se está bem, pode-se colocar o Apocalipse de João, sobre o qual exporemos oportunamente o que dele se pensa.
3.            Estes são os ditos admitidos. Dos livros discutidos, por outro lado, mas que são conhecidos da grande maioria, temos a Carta dita de Tiago, a de Judas e a segunda de Pedro, assim como as que se diz serem segunda e terceira de João, sejam do próprio evangelista, seja de outro com o mesmo nome.
4.     Entre os espúrios sejam listados: o escrito dos Atos de Paulo, o chamado Pastor e o Apocalipse de Pedro, e além destes, a que se diz Carta de Barnabé e a obra chamada Ensinamento dos Apóstolos, e ainda, como já disse, talvez, o Apocalipse de João: alguns, como disse, rechaçam-no, enquanto outros o contam entre os livros admitidos.
5.            Alguns ainda catalogam entre estes inclusive o Evangelho dos hebreus, no qual são muito contemplados os hebreus que aceitaram Cristo. Todos estes são livros discutidos.
6.            Mas creio ser necessário que exista um catálogo destes também, distinguindo os escritos que, segundo a tradição da Igreja, são verdadeiros, genuínos e admitidos, daqueles que diferentes destes por não serem testamentários, mas discutidos, ainda assim são conhecidos pela grande maioria dos autores eclesiásticos, de modo que possamos conhecer estes livros e os que com o nome dos apóstolos foram divulgados pelos hereges, alegando que se tratem seja dos Evangelhos de Pedro, de Tomás, de Matias ou mesmo de algum outro, ou ainda dos Atos de André, de João e de outros apóstolos. Jamais um só dentre os escritores ortodoxos julgou digno mencionar estes livros em seus escritos.
7.   Mas ocorre que a própria índole do fraseado difere enormemente do estilo dos apóstolos, o pensamento e a intenção do que neles está contido destoa ainda mais da verdadeira ortodoxia: claramente demonstram ser invenções de hereges. Por isso não devem ser incluídos nem mesmo entre os espúrios, mas devemos rechaçá-los como inteiramente absurdos e ímpios. Continuemos agora nosso relato.

XXVI - Sobre o mago Menandro
1.            O mago Simão foi sucedido por Menandro, o qual, pela sua maneira de agir, mostrou ser uma segunda arma do poder diabólico não inferior à primeira. Também ele era samaritano, e em seu progresso até o ápice da feitiçaria não foi inferior a seu mestre, mas até abundou em milagres ainda maiores. Chamava-se a si mesmo, como se realmente o fosse, o salvador enviado de algum lugar do alto, desde éons insondáveis, para salvação dos homens.
2.            E ensinava que ninguém poderia de forma alguma exceder inclusive aos próprios anjos que fizeram o mundo se primeiramente não fosse conduzido através da experiência mágica transmitida por ele e através do batismo por ele dispensado. Os que são considerados dignos deste participarão já nesta vida da imortalidade perdurável e não morrerão jamais. Mas permanecerão aqui para sempre, não envelhecerão e serão imortais. Este ponto é fácil de reconhecer pelos escritos de Irineu.
3.            Também Justino, ao mencionar Simão pela mesma razão, acrescenta uma relação sobre este outro, dizendo:
"Sabemos também que um certo Menandro, também samaritano, oriundo da aldeia chamada Caparatea, depois de ser discípulo de Simão e estando também possuído por demônios, apareceu em Antioquia, e com sua arte mágica seduziu a muitos. E convenceu seus seguidores de que não morreriam. Hoje restam alguns de sua seita que continuam a professá-lo."
4.   Era sem dúvida obra da influência diabólica lançar mão de tais feiticeiros revestidos do nome de cristãos para esforçar-se em caluniar o grande mis­tério de piedade, acusando de magia, e destruir por meio deles os dogmas da Igreja sobre a imortalidade da alma e a ressurreição dos mortos. Mas aqueles que os reconhecem como salvadores chegaram abaixo da verdadeira esperança.

XXVII - Da heresia dos ebionitas
1. De outros porém, o demônio malvado, impotente para arrancá-los de sua disposição para como Cristo de Deus, tomou posse ao encontrar outros pontos por onde agarrá-los. Estes primeiros foram chamados ebionitas[9], como convinha, pois tinham sobre Cristo pensamentos pobres e de baixa estima.
2.            Pois pensavam dele que era apenas um homem simples e comum, justifica­do à medida em que progredia em seu caráter, e nascido da união de um homem e de Maria. Acreditavam absolutamente necessária para eles a obser­vância da lei, alegando que não se salvariam apenas pela fé e por viver conforme ela.
3.            Mas, além destes, havia outros da mesma denominação que escapavam de sua estranha insensatez. Não negavam que o Senhor houvesse nascido de uma virgem e do Espírito Santo. Mas, assim como aqueles, tampouco confessavam que, por ser Deus, Verbo e Sabedoria, preexistia já. Desta maneira retornavam à impiedade dos primeiros, principalmente quando, assim como eles, esforçavam-se por honrar demasiadamente a observân­cia da lei.
4.     Acreditavam também que era necessário a todo custo rechaçar as Cartas do Apóstolo, a quem chamavam apóstata da lei, enquanto usavam exclusiva­mente o chamado Evangelho dos hebreus, sem importar-se em nada com os outros.
5.            Da mesma forma que aqueles, observavam o sábado e tudo o mais da disciplina judaica. No entanto, aos domingos celebravam ritos semelhantes aos nossos em memória da ressurreição do Salvador.
6.            Daí, de tais práticas, veio-lhes a denominação que levam: o nome de ebionitas manifesta a pobreza de sua inteligência, pois com este nome se chama entre os hebreus aos pobres.

XXVIII - Do heresiarca Cerinto
1.             Sabemos que pelas datas mencionadas Cerinto fez-se cabeça de outra heresia. Caio, a quem já citamos antes[10], escreve sobre ele o que segue, na disputa que lhe é atribuída:
2.      "No entanto, também Cerinto, por meio de revelações que diz serem escritas por um grande apóstolo, apresenta milagres com a mentira de que lhe teriam sido mostradas por ministério dos anjos, e diz que depois da ressurreição o reino de Cristo será terrestre e que novamente a carne, que habitará em Jerusalém, será escrava de paixões e prazeres. Como inimigo das Escrituras de Deus e querendo fazer errar, diz que haverá um número de mil anos de festa nupcial."
3.      E também Dionísio, que em nosso tempo obteve o episcopado da igreja de Alexandria, ao dizer no livro II de suas Promessas algumas coisas sobre o Apocalipse de João como recebidas de uma antiga tradição, menciona o mesmo Cerinto com estas palavras:
4.      "E Cerinto, o mesmo que instituiu a heresia que toma seu nome, a cerintiana, que quis creditar sua própria invenção com um nome digno de fé. Este é efetivamente o tema da doutrina que ensina: que o reino de Cristo será terreno.
5.             E como ele era um amante de seu corpo e inteiramente carnal, sonhava que consistiria do mesmo que ele desejava: fartura do ventre e do que está abaixo do ventre, ou seja: de comidas, de bebidas, de uniões carnais e de tudo aquilo com que lhe parecia que se procurariam estas coisas de uma forma mais bem sonante: festas, sacrifícios e imolação de vítimas sagradas."
6.             Isto diz Dionísio. E Irineu, depois de expor, no livro I de sua obra Contra as heresias, alguns dos erros mais abomináveis do mesmo Cerinto, transmitiu-nos por escrito, no livro III, um relato que não se deve esquecer, procedente, segundo diz, da tradição de Policarpo. Afirma que o apóstolo João entrou certa vez nos banhos públicos para lavar-se, mas ao ficar sabendo que dentro encontrava-se Cerinto, afastou-se rapidamente do lugar e correu para a porta, por não suportar encontrar-se sob o mesmo teto que ele, e exortava os que o acompanhavam a fazerem o mesmo, dizendo: "Fujamos, não aconteça que os próprios banhos venham abaixo por estar dentro Cerinto, o inimigo da verdade."

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O ícone da capa: Clemente de Alexandria ou Tito Flávio Clemente (Atenas (?), c. 150 - Palestina, 215) foi um escritor, teólogo, apologista cristão grego nascido em Atenas. O mais erudito Pai da Igreja. Trabalhou 20 anos em Alexandria.



[1] 2 Co 12:2-4.
[2] Mt 4:12.
[3] Mc 1:14.
[4] Lc 3:19-20.
[5] Jo 2:11.
[6] Jo 3:23-24.
[7] Vide II:XV.
[8] Lc 1:1-4.
[9] Do hebraico ebionim, significando pobres.
[10] Vide II:XXV:6.

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