sexta-feira, 11 de março de 2016

Livro V – Capítulos 16 e 17

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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro V – Capítulos 16 e 17


XVI - O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua compa­nhia
XVII - De Milcíades e os tratados que compôs

XVI - O que se menciona sobre Montano e os pseudoprofetas de sua compa­nhia
1.           Contra a heresia chamada catafriga, o poder defensor da verdade levantou em Hierápolis uma arma potente e invencível: Apolinário, a quem esta obra já mencionou mais acima[1], e com ele muitos outros homens doutos daquele tempo, dos quais foi-nos deixado abundante material para historiar.
2.           Ao começar pois, um dos mencionados seu escrito contra aqueles, assinala primeiramente que também lutou contra eles com argumentos orais. Escreve no prólogo desta maneira:
3.     Faz muito e bem longo tempo, querido Avircio Marcelo, que tu me ordenaste escrever algum tratado contra a heresia dos chamados "de Milcíades", mas até agora de certa maneira sentia-me indeciso, não por dificuldade em poder refutar a mentira e dar testemunho da verdade, mas por temor de que, apesar de minhas precauções, parecesse a alguns que de certo modo acres­cento ou junto[2] algo novo à doutrina do Novo Testamento, ao qual não pode juntar nem tirar nada quem tenha decidido viver conforme este mesmo Evangelho.
4.     Encontrando-me recentemente em Ankira da Galácia e compreendendo que a igreja local estava aturdida por esta, não como dizem, nova profecia, mas mais propriamente, como se demonstrará, pseudoprofecia, enquanto nos foi possível e com a ajuda do Senhor, durante vários dias, discutimos intensamente sobre estes mesmos homens e sobre os pontos propostos por eles, tanto que a igreja encheu-se de alegria e ficou robustecida na verdade, enquanto que os contrários eram rechaçados na hora e os inimigos abatidos.
5.            Em conseqüência, os presbíteros do lugar pediram que lhes deixássemos alguma nota do que havia sido dito contra os que se opõe à doutrina da verdade, achando-se também presente nosso co-presbítero[3] Zotico, o de Otreno, mas nós não o fizemos; em troca, prometemos escrevê-lo aqui, com a ajuda de Deus, e enviá-lo com toda a presteza."
6.            Depois de expor no começo isto e em seguida alguma outra coisa, segue adiante e narra a causa da mencionada heresia desta maneira:
"Agora bem, sua conduta e sua recente ruptura herética a respeito da Igreja tiveram como causa o que segue.
7.             "Diz-se que em Misia da Frígia existe uma aldeia chamada Ardaban. Ali foi, dizem, que um recém-convertido à fé chamado Montano, pela primeira vez, em tempos de Grato, procônsul da Ásia, saindo contra o inimigo com a paixão desmedida de sua alma ambiciosa de proeminência, ficou a mercê do espírito e de repente entrou em arrebatamento convulsivo como se pos­sesso e em falso êxtase, e começou a falar e a proferir palavras estranhas, profetizando desde aquele momento contra o costume recebido pela tradição e por sucessão desde a Igreja primitiva.
8.             Dentre os que naquela ocasião escutaram estas expressões bastardas, uns, ofendidos com ele como energúmeno, endemoninhado, embebido no espírito do erro e perturbador das multidões, repreendiam-no e tentavam impedi-lo de falar, lembrando-se da explicação e advertência do Senhor sobre estar em guarda e alerta com a aparição de falsos profetas[4]; os outros em troca, como que excitados por um espírito santo e um carisma profético, e não menos inchados de orgulho e esquecidos da explicação do Senhor, fascinados e extraviados pelo espírito insano, sedutor e desencaminhador do povo, provocavam-no para que não permanecesse mais em silêncio.
9.             Com certa habilidade, ou melhor, com tais métodos fraudulentos, o diabo maquinou a perdição dos desobedientes e, honrado por eles contra todo merecimento, excitou e inflamou ainda suas mentes adormecidas, já distan­tes da fé verdadeira, e assim suscitou outras duas mulheres quaisquer[5] e encheu-as com seu espírito bastardo, de maneira que também elas começa­ram a falar delirando, inoportunamente e de modo estranho, como o men­cionado antes. O espírito proclamava bem-aventurados aos que se alegra­vam e vangloriavam nele e os enchia com a grandeza de suas promessas; às vezes, no entanto, por motivos aceitáveis e verossímeis, condenava-os publicamente a fim de parecer também ele capaz de argumentar; mas contudo, poucos eram os frígios enganados. O orgulhoso espírito ensinava também a blasfemar contra a Igreja católica inteira que se estende sob o céu, porque o espírito pseudoprofético não tinha conseguido louvor nem entrada nela.
10.     Efetivamente, os fiéis da Ásia haviam-se reunido para isto muitas vezes e em muitos lugares da Ásia, e depois de examinar as recentes doutrinas, declararam-nas profanas e as rechaçaram como heresia; desta maneira aqueles foram expulsos da Igreja e separados da comunhão."
11.     É a isto que se refere no início; logo continua através de todo o livro a refutação do erro montanista, e no segundo livro diz sobre o fim das pessoas citadas o que segue:
12.     "Pois bem, posto que nos chamam mata-profetas[6] porque não aceitamos seus profetas charlatães (dizem efetivamente que estes são os que o Senhor havia prometido enviar a seu povo[7]), que ante Deus nos respondam: dos que começam a falar[8] a partir de Montano e das Mulheres, há algum, amigos, a quem os judeus tenham perseguido ou alguém que os crimino­sos tenham assassinado? Nenhum. Nem sequer algum deles foi preso e crucificado por causa do nome? Também não, desde logo. Nem sequer alguma das mulheres foi açoitada nas sinagogas dos judeus e apedrejada?
13.     Nem em parte alguma, em absoluto. Por outro lado, diz-se que Montano e Maximila findaram com outro gênero de morte. Efetivamente, é corrente que estes, por influência do espírito perturbador da mente, que movia tanto um quanto a outra, enforcaram-se, ainda que não ao mesmo tempo, e que ao tempo da morte de ambos correu forte boato de que haviam terminado e morrido da mesma maneira que Judas o traidor.
14.     Como também é rumor insistente que aquele inefável Teodoto, o primeiro intendente[9], por assim dizer, de sua pretendida profecia, achando-se um dia como que elevado e alçado aos céus, entrou em êxtase e entregou-se por completo ao espírito do engano, e então, lançado com força, acabou desastrosamente. Ao menos dizem que foi assim.
15.     No entanto, querido, não o tendo visto nós mesmos, pensamos que nada sabemos a respeito; porque talvez tenha ocorrido assim, mas talvez não tenham morrido assim nem Montano nem Teodoto nem a citada mulher."
16. Volta a dizer no mesmo livro que os sagrados bispos daquele tempo tentaram refutar o espírito que havia em Maximila, mas que outros o impediram, colaboradores, evidentemente, daquele espírito.
17. Escreve como segue:
"E que aquele espírito que opera por meio de Maximila não diga no mesmo livro de Asterio Urbano: 'Perseguem-me como a um lobo longe das ovelhas; eu não sou lobo, sou palavra e espírito e poder', antes é bom que demonstre claramente o poder que há no espírito, que o prove e que por meio do espírito obrigue a confessar aos que naquela ocasião achavam-se presentes para examinar e para dialogar com o espírito que falava, varões probos e bispos: Zotico, da aldeia de Cumana, e Juliano, de Apamea, cujas bocas foram amordaçadas pelos partidários de Temiso, impedindo assim que refutassem o espírito enganador e desencaminhador de povos."
18. Novamente no mesmo livro, quando dizem algumas outras coisas refutando as falsas profecias de Maximila, indica o tempo em que escreveu isto e menciona os vaticínios dela, nos quais predizia que haveria guerras e revoluções; a falsidade de tudo isto ele revela quando escreve:
19. "E como não se evidenciou também esta mentira? Porque já são transcorridos mais de treze anos até hoje desde que aquela mulher morreu e no mundo não tem havido guerra, nem parcial nem geral, mas que até para os cristãos a paz tem sido mais permanente, por misericórdia divina."
20. Isto tomamos do livro segundo. Mas também do terceiro citaremos algumas frases breves, pelas quais diz contra os que se jactavam de que entre eles houve mais mártires:
"Agora bem, quando os refutamos com todo o dito e vêem-se apurados, tentam refugiar-se nos mártires, dizendo que têm muitos mártires e que isto é uma garantia fidedigna do poder do espírito que eles chamam profético, mas isto, ao que parece, é de tudo o menos verdadeiro.
21. Efetivamente, das outras heresias algumas têm numerosos mártires, e nem por isso vamos aprová-las nem confessar que possuem a verdade. Os primeiros ao menos, os que se chamam Marcionitas por seguir a heresia de Márcion, também eles dizem que têm inúmeros mártires, mas ao próprio Cristo não confessam conforme a verdade."
E depois de breve espaço, acrescenta ao dito:
22. "Por isso, sempre que os fiéis da Igreja chamados a dar testemunho da fé conforme a verdade encontram-se com algum dos chamados mártires procedentes da heresia catafriga, afastam-se deles e morrem sem terem se comunicado com eles, porque não querem dar assentimento ao espírito que se vale de Montano e de suas mulheres. Que isto é verdadeiro e que, até em  nossos tempos, tem ocorrido em Apamea, às margens do Meandro, evidencia-se nos martírios de Caio e Alexandre de Eumenia e de seus companheiros."

XVII - De Milcíades e os tratados que compôs
1. Na mesma obra[10] menciona-se também Milcíades, um escritor que, parece, também escreveu um tratado contra a dita heresia. Depois de citar algumas passagens destes[11] continua dizendo: "Isto encontrei em uma obra das que atacam o escrito de Milcíades, nosso irmão, escrito que demonstra não ser necessário que um profeta fale em êxtase, e fiz um resumo."
2. Um pouco mais abaixo na mesma obra estabelece uma lista dos que profe­tizaram no Novo Testamento; entre eles enumera um tal Amias e a Codrato; diz assim:
 ".. .mas o falso profeta, no êxtase - ao qual seguem o descaramento e a ousa­dia -, começa em voluntária ignorância e termina em demência involuntária da alma, como se disse anteriormente.
3.             Mas não poderão mostrar um só profeta, nem do Antigo nem do Novo (Testamento) que tenha sido arrebatado pelo espírito desta maneira, nem poderão gloriar-se de Agabo, nem de Judas, nem de Silas, nem das filhas de Felipe, nem de Amias de Filadélfia, nem de Codrato nem de nenhum outro, se há, porque nada tem a ver com eles."
4.      E logo, depois de curto espaço, diz o seguinte:
"Porque, se é como dizem, que depois de Codrato e de Amias de Filadélfia, o carisma profético passou por sucessão às mulheres do séquito de Montano, que demonstrem quem dentre eles sucedeu aos discípulos de Montano e a suas mulheres, já que o Apóstolo sustenta que é necessário que o caris­ma profético subsista em toda a Igreja até a parousia final[12]. Mas não pode­rão mostrar ninguém, apesar de já ser este o décimo quarto da morte de Maximila."
5.   Isto diz ele. No que tange a Milcíades, por ele mesmo mencionado, também deixou-nos outras lembranças de sua aplicação diligente às divinas Escrituras nos tratados que compôs Contra os gregos e Contra os judeus, temas com os quais se debateu separadamente nos dois livros. E mais, fez também uma Apologia dirigida aos príncipes[13] do mundo em favor da filosofia por ele professada[14].

1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui para a sua espiritualidade?

Desenho da capa: Montano e o Montanismo
O montanismo foi um movimento cristão fundado por Montano por volta de 156-157 (ou 172), que se organizou e difundiu em comunidades na Ásia Menor, em Roma e noNorte de África. Por ter se originado na região da Frígia, Eusébio de Cesareia relata em sua História Eclesiástica (V.14-16) que ela era chamada de "Heresia Frígia" na época.



[1] Vide IV:XXI; IV:XXVI: 1; IV:XXVII.
[2] Gl 3:15.
[3] É como os bispos se dirigiam aos presbíteros e às vezes a seus colegas de episcopado.
[4] Mt 7:15.
[5] Quer dizer, outras vítimas (do diabo), não outras duas mulheres.
[6] Mt 23:31.
[7] Jo 14:26.
[8] Isto é: começaram a "profetizar" como Montano.
[9] Como veremos mais tarde, Montano tinha suas finanças bem organizadas, por isso podemos entender literalmente o cargo atribuído a Teodoto.
[10] O anônimo antimontanista, cf. 16:2.
[11] Dos hereges.
[12] Ef 4:11-13; 1 Co 1:4-8; 13:8-10.
[13] Provavelmente refere-se a Marco Aurélio e a seu co-augusto Lúcio Vero.
[14] Todas suas obras se perderam.

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