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História Eclesiástica de Eusébio de
Cesareia
Livro
VI – Capítulos 14-19
XIV - De
quantas escrituras Clemente faz menção
XV - De Heraclas
XVI - De como Orígenes havia se
ocupado com afã das divinas Escrituras
XVII - Do
tradutor Simaco
XVIII - De Ambrósio
XIX - Quantas
coisas se mencionam sobre Orígenes
|
Texto Bíblico: Hebreus
1.2.
XIV - De quantas escrituras Clemente faz menção
1. Nas Hypotyposeis, para resumir,
Clemente dá algumas explicações precisas da Escritura
testamentária inteira, sem omitir os escritos discutidos, quero dizer, a Carta
de Judas e as demais Cartas católicas, assim como a Carta de Barnabé e o chamado Apocalipse
de Pedro.
2.
Diz também que a Carta aos
Hebreus é certamente de Paulo, mas que foi escrita em língua hebraica para os
hebreus, sendo que Lucas a traduziu cuidadosamente e a editou para os gregos;
daí que se encontre o mesmo colorido no estilo desta carta e nos Atos.
3.
E acrescenta que é natural que a expressão "Paulo
apóstolo" não esteja escrita no cabeçalho,
"porque
- diz - como escrevia aos hebreus, que tinham prevenção contra ele e dele suspeitavam, com absoluta prudência
não quis espantá-los já no início pondo seu nome".
4. E um pouco abaixo
acrescenta:
"Pois bem, como dizia o bem-aventurado presbítero, posto que o
Senhor, apóstolo do Todo-Poderoso, foi enviado aos hebreus, Paulo, que o havia sido dos gentios, por modéstia não se intitulou
apóstolo dos hebreus, e ao mesmo tempo por deferência para com o Senhor
e porque, apesar de ser arauto e apóstolo dos gentios, escreve em anexo também
uma carta aos hebreus."
5.
Nos mesmos livros Clemente ainda inseriu,
sobre a ordem dos Evangelhos, uma tradição recebida dos antigos presbíteros, que é
como segue. Dizia que dos Evangelhos escreveram-se primeiro os que contêm as
genealogias[1];
6.
que o Evangelho de Marcos teve
a seguinte origem: estando Pedro em Roma pregando publicamente
a doutrina e explicando o Evangelho pelo Espírito, os que estavam
presentes – e eram muitos - exortaram Marcos, já que este o seguia há muito tempo e recordava-se do que
havia dito, a que o pusesse por escrito. Depois que o fez distribuiu o
Evangelho a todos que o pediam.
7.
Ao saber Pedro disto, não o impediu nem o estimulou. Quanto a
João, o último, sabendo que o corpóreo já estava exposto nos Evangelhos, estimulado
por seus discípulos e inspirado pelo sopro divino do Espírito, compôs um Evangelho
espiritual. Isto refere Clemente.
8.
E novamente o supracitado Alexandre, em certa carta a
Orígenes, faz por sua vez menção a Clemente
e a Panteno como a homens conhecidos seus. Escreve assim:
"Porque
também isto foi - como sabes - vontade de Deus, que a amizade que provinha de nossos pais[2] permanecesse
inviolável; e mais, que fosse mais quente e mais firme;
9. "efetivamente,
reconhecemos como pais aqueles bem-aventurados que nos precederam no caminho e com os quais estaremos
dentro em pouco: Panteno, o
verdadeiramente bem-aventurado e senhor, e o santo Clemente, que foi meu senhor e me ajudou, e algum outro, se o há.
Por meio deles conheci a ti, que em tudo és o melhor e senhor e irmão
meu".
E assim estão as coisas.
10.
Quanto a Adamancio (pois também este
nome tinha Orígenes)[3], ele mesmo escreve em alguma parte que residiu em Roma no tempo em que Zeferino
estava à frente da igreja dos romanos. Diz: "Desejando ver a antiquíssima igreja dos
romanos..." Depois de passar ali muito pouco tempo,
11.
regressou a Alexandria, e ali
continuava com toda sua diligência as tarefas costumeiras de instrução
catequética. Demétrio, bispo do lugar, então ainda o animava e quase suplicava que fosse diligente em dar proveito a seus
irmãos.
XV - De Heraclas
1. Mas quando Orígenes viu que ele sozinho não se bastava para
um estudo mais profundo dos mistérios divinos, para a investigação e
interpretação das Sagradas Escrituras e,
além disso, para a instrução catequética dos que dele se acercavam e que nem lhe deixavam respirar, acorrendo à escola
uns após outros desde a aurora até o anoitecer, dividiu as multidões,
escolheu entre seus discípulos Heraclas[4], varão zeloso
nas coisas de Deus, e também muito erudito e não desprovido de
filosofia, e o constituiu seu sócio na instrução catequética. E encarregou-o da
primeira iniciação dos recém-admitidos, reservando para si a instrução dos já
experientes.
XVI - De como
Orígenes havia se ocupado com afã das divinas Escrituras
1. E tão cuidadosa era a investigação que
Orígenes fazia das palavras divinas, que até aprendeu a língua hebraica,
comprou as Escrituras originais, conservadas
entre os judeus com os próprios caracteres hebreus, e seguiu a pista das
edições de outros tradutores das Sagradas Escrituras, além dos Setenta. Além das traduções trilhadas e
alternantes[5]
de Aquila, de Simaco e de Teodocio,
descobriu outras que, após seguir-lhes o rastro, tirou à luz, não sei de
que esconderijos, onde se ocultavam desde antigamente.
2.
A respeito destas, por sua
obscuridade e por não saber de quem eram, indicou somente o
seguinte: a saber, que uma foi encontrada em Nicópolis, perto de Accio, e a
outra em outro lugar parecido.
3.
Nas Hexaplas dos Salmos, ao
menos, depois das quatro edições conhecidas, não somente pôs uma quinta
tradução, mas também uma sexta e uma sétima; sobre uma
delas está indicado que foi encontrada em Jericó, dentro de um jarro, em tempos
de Antonino, o filho de Severo.
4. Todas estas traduções ele reuniu em um só corpo, dividiu-as em membros de frase e as colocou umas frente às outras, junto com o próprio texto
hebreu, deixando assim a cópia das chamadas Hexaplas[6].
Aparte, preparou a edição de Aquila, Simaco e Teodocio,
junto com a dos Setenta, nas Tetraplas.
XVII - Do tradutor Simaco
1. Pelo que toca a estes mesmos tradutores, deve-se saber que
Simaco foi ebionita. A heresia, assim
chamada dos ebionitas, é a dos que afirmam que Cristo nasceu de José e de Maria, crêem que foi puramente homem e
insistem em que é necessário guardar a lei mais ao modo judeu, segundo o
que já sabemos pelo referido anteriormente.
E ainda hoje se conservam Comentários de Simaco, nos quais parece
querer confirmar a mencionada heresia, explicando-se
longamente à custa do Evangelho de Mateus. Orígenes declara que
estes escritos, junto com outras interpretações de Simaco sobre as Escrituras, recebeu-os de uma tal Juliana, que
por sua vez diz ter herdado os livros do próprio Simaco.
XVIII - De Ambrósio
1.
Por esta época também Ambrósio, que tinha as opiniões da
heresia de Valentim, convencido pela verdade apresentada por Orígenes e como se
uma luz tivesse iluminado sua mente, deu
seu assentimento à doutrina da ortodoxia eclesiástica.
2.
E muitas outras pessoas instruídas,
quando se estendeu a fama de Orígenes por todas as partes,
acudiam também a ele para experimentar a perícia deste homem nas doutrinas sagradas. E milhares de hereges e não poucos filósofos
dos mais ilustres aderiam a ele com afã, e ele os instruía
não somente nas coisas divinas, mas inclusive na filosofia de fora.
3.
De fato, àqueles que via
naturalmente bem dotados iniciava nos conhecimentos
filosóficos, dando-lhes geometria, aritmética e as outras disciplinas preliminares, guiando-os pelas seitas existentes entre os filósofos,
explicando minuciosamente as obras destes e
comentando e examinando cada um; de modo que, inclusive
entre os gregos proclamavam-no como grande filósofo.
4. E a muitos,
inclusive entre os menos preparados, iniciava nas disciplinas cíclicas, declarando que através delas teriam não
pequena capacitação para o exame e
preparação das divinas Escrituras; daí que considerasse
necessário, sobretudo para si mesmo, o exercício nas
disciplinas mundanas e nas filosóficas.
XIX - Quantas coisas se mencionam sobre Orígenes
1.
Outras testemunhas de seu êxito nestes estudos são, dentre os
próprios gregos, aqueles filósofos que
floresceram em seu tempo e em cujas obras encontramos mencionado este
homem muitas vezes, umas porque lhe dedicaram suas próprias obras, e outras
porque submetem-lhe o fruto de seus próprios trabalhos, como a um mestre, para
que os julgasse.
2. Mas, que
necessidade há de dizer isto quando o próprio Porfírio, nosso contemporâneo, estabelecido na Sicília, compôs
umas obras contra nós[7], tentando
com elas caluniar as Sagradas Escrituras e menciona os que as interpretaram? Não podendo de forma alguma
levantar a menor acusação por conta
de nossas doutrinas e à falta de razões, volta-se contra os próprios intérpretes para injuriá-los e caluniá-los, e mais
especialmente a Orígenes.
3.
Sobre este diz que o conheceu na
primeira juventude e trata de caluniá-lo. No entanto, o que realmente faz é
recomendá-lo sem saber, seja dizendo a verdade ali onde não lhe era possível
dizer outra coisa, seja mentindo no que
pensava que passaria despercebido, e então, algumas vezes o acusa de cristão,
e outras descreve sua entrega às ciências filosóficas.
4.
Ouve pois o que diz textualmente:
"Alguns, em seu afã de encontrar, não o abandono, mas
uma explicação da perversidade das Escrituras judaicas,
entregaram-se a umas interpretações que são incompatíveis
e estão em desacordo com o escrito, pelo que oferecem, mais do que uma
apologia em favor do estranho, a aceitação e louvor do mesmo. Efetivamente, as coisas que em Moisés estão ditas com claridade,
eles alardeiam que são enigmas e lhes dão um ar divino, como
de oráculos cheios de ocultos mistérios, e depois de
enfeitiçar com o fumo de seu orgulho a faculdade crítica da alma, levam a cabo
suas interpretações."
5. Depois de mais algumas coisas, diz:
"Mas
este gênero de absurdo eles receberam daquele varão com quem eu também tratei
sendo ainda muito jovem, que teve enorme reputação e que ainda a tem pelos escritos que deixou, de Orígenes, digo, cuja
glória se espalhou amplamente entre os mestres daquelas doutrinas.
6. Efetivamente, tendo sido ouvinte de Ammonio, que em nosso tempo foi o que mais progrediu em filosofia, chegou a adquirir de seu mestre um grande
aproveitamento para o domínio das ciências, mas no que tange
à reta orientação da vida empreendeu um caminho contrário ao de Ammonio.
7.
De fato, Ammonio era cristão e seus
pais o educaram nas doutrinas cristãs, mas quando entrou em contato com o pensar
e a filosofia, imediatamente converteu-se a um gênero de vida conforme as leis.
Orígenes, por outro lado, grego e educado
nas doutrinas gregas, veio a dar na temeridade própria dos bárbaros. Entregando-se a ela corrompeu-se e
corrompeu seu domínio das ciências.
Quanto a sua vida, vivia como cristão e contra as leis. Quanto a suas opiniões sobre as coisas e sobre a
divindade, pensava como grego e introduzia o grego nas fábulas estrangeiras.
8.
Porque ele vivia em trato contínuo com Platão e freqüentava
as obras de Numenio, de Cronio, de
Apolofanes, de Longino, de Moderato, de Nicomaco e dos outros autores
mais conspícuos dos pitagóricos. Também usava os livros do estóico Queremon e
de Comuto. Por eles conheceu a interpretação
alegórica dos mistérios dos gregos e a acomodou às Escrituras judias."
9.
Isto diz Porfírio no livro terceiro
dos que escreveu Contra os cristãos. Diz a verdade no que tange à educação e à múltipla sabedoria de Orígenes, mas mente claramente (por que não haveria de fazê-lo o adversário dos
cristãos?) ao afirmar que este se converteu das
doutrinas gregas, enquanto que Ammonio caiu num gênero de
vida gentio a partir de uma vida conforme a religião.
10.
Efetivamente, Orígenes conservou vivos os ensinamentos
cristãos que vinham de seus pais, como é
demonstrado pelas passagens precedentes desta história, e Ammonio manteve com firmeza puros e inatacáveis, inclusive
até o fim de sua vida, os princípios da filosofia inspirada, como é atestado de certa forma até hoje
pelos trabalhos deste homem, famoso entre a maioria pelos escritos que
deixou, como por exemplo o intitulado Da harmonia entre Moisés e Jesus, e
todos os outros que se encontram em poder dos amantes do saber.
11.
O que vimos dizendo fica pois como
prova da calúnia deste mentiroso, e ao mesmo tempo do múltiplo saber de
Orígenes nas ciências dos gregos, sabemos do que ele mesmo escreve numa carta
defendendo-se contra alguns que o acusavam de seu zelo por aquelas ciências:
12.
"Mas como eu me entregasse à
doutrina, e a fama de nossa capacidade ia-se espalhando, e
se aproximavam de mim ora hereges, ora os que provinham das ciências
gregas, sobretudo os filósofos, determinei-me a examinar as opiniões dos
hereges e o que proclamam os filósofos acerca da verdade.
13. Isto fizemos
imitando Panteno, aquele varão que antes de nós ajudou a tantos e que possuía não pequena preparação
naquelas ciências, e também a Heraclas,
que agora ocupa um posto no presbitério de Alexandria e a quem encontrei junto
ao mestre das disciplinas filosóficas, com o qual ele já tinha permanecido
cinco anos, antes que eu começasse a ouvir suas lições.
14. Por causa do mestre despojou-se da roupa corrente que antes usava e adotou
o
uniforme dos filósofos[8],
que ainda conserva até hoje, e não cessa de estudar nos livros dos gregos tudo
o que pode."
Isto é o que diz
Orígenes em defesa de seu exercício na literatura grega.
15. Neste tempo,
vivendo ele em Alexandria, apresentou-se-lhe um soldado que entregou umas cartas a Demétrio, o bispo da comunidade, e ao governador
do Egito de então, de parte do governador da Arábia, com o fim de que a toda
pressa enviassem Orígenes para que se entrevistasse com ele. E Orígenes chegou
à Arábia. Mas não muito depois, cumprido o objetivo de sua ida, regressou outra
vez a Alexandria.
16. Entretanto deu-se
novamente na cidade uma não pequena guerra[9],
e Orígenes, saindo ocultamente de Alexandria, foi à Palestina e residiu em Cesaréia. Aqui os bispos lhe pediram que desse
conferências e interpretasse as divinas
Escrituras publicamente na igreja, apesar de que ainda não havia recebido
a ordenação de presbítero.
17. Que isto foi assim declaram as palavras de Alexandre, o bispo de
Jerusalém, e Teoctisto, o de Cesaréia, os quais, escrevendo sobre Demétrio,
defendem-se como segue:
"Acrescenta em sua carta que isto jamais se ouviu, nem agora se faz,
que preguem
leigos estando presentes os bispos. Eu não sei como diz o que evidentemente não
é verdade,
18. porque onde quer
que se encontrem homens com capacidade para trazer proveito aos irmãos, os santos bispos os convidam a pregar ao povo. Como
convidaram nossos bem-aventurados
irmãos: Néon e Evelpis em Laranda, Celso e Paulino em Iconio e Ático e
Teodoro em Sinade. E provável que também em outros lugares ocorra o mesmo, sem
que nós o saibamos." Assim é que o
mencionado varão, ainda que jovem, era honrado não somente pelos
compatriotas, mas também pelos bispos do estrangeiro.
19. Pois bem, quando Demétrio o chamou novamente por carta e exigiu por meio de diáconos
de sua igreja que regressasse a Alexandria, depois de chegar, continuou
cumprindo as tarefas costumeiras.
1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui
para a sua espiritualidade?
[1] Isto é,
Mt e Lc anteriores a Mc.
[2] Mais do
que amizade pessoal, trata-se de ter os mesmos mestres (os "pais"), e
manter o mesmo ensinamento.
[3] Para
Eusébio Adamancio era um segundo nome de Orígenes, para outros autores seria um
apelido.
[4] Segundo
Jerônimo, Heraclas já era presbítero. Orígenes deixa-o encarregado da escola
catequética para dedicar-se a um ensino superior, dando origem à
verdadeira Escola de Alexandria.
[5] Isto é,
que se seguiam umas às outras, talvez Eusébio queira dizer que são versões
parciais e que somente utilizando as três seria possível ter todo o AT em
grego.
[6] Há
evidências de que Irineu, já antes de Orígenes, tenha utilizado as Hexaplas.
[7] A obra de
Porfírio em 15 livros Contra os cristãos foi perdida, assim como as respostas
que suscitou.
[8]
Heraclas, presbítero, conserva o manto de filósofo.
[9]
Possivelmente o levante de Alexandria e a sangrenta repressão de Caracalla, em
215.