sexta-feira, 6 de maio de 2016

História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia - Livro VI – Capítulo 6 - 13

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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VI – Capítulo 6 - 13

VI - De Clemente de Alexandria
1. Tendo sucedido a Panteno, Clemente vinha regendo a catequese de Ale­xandria até aquele mesmo tempo, de maneira que também Orígenes foi um de seus discípulos. Pelo menos Clemente, ao apresentar o material de seus Stromateis, no livro primeiro, expõe um quadro cronológico assi­nalando como limite a morte de Cômodo, com o que fica claro que com­pôs esta obra em tempos de Severo, cuja época se descreve na presente história.

VII- Do escritor Judas
1. Neste mesmo tempo, outro escritor, Judas, comentando por escrito as setenta semanas de Daniel[1], detêm também sua cronologia no décimo ano do Severo. Também cria que a tão decantada aparição do anticristo estava já então se aproximando. A tal ponto a violência daquela perseguição contra nós transtornava as mentes da maioria!

VIII - Da façanha de Orígenes
1.            Neste tempo, estando ocupado no trabalho da catequese em Alexandria, Orígenes leva a cabo uma façanha que, se demonstra um ânimo imatu­ro e juvenil, oferece ao mesmo tempo uma prova plena de fé e de conti­nência.
2.            Efetivamente, tomando muito ao pé da letra com ânimo bastante juvenil a frase: Há eunucos que se castraram a si mesmos pelo reino dos céus[2] e pensando, por um lado, cumprir assim a palavra do Salvador, e por outro, com o fim de evitar entre os infiéis toda suspeita e calúnia vergonho­sa, já que sendo tão jovem, tratava das coisas de Deus não apenas com homens, mas também com mulheres, decidiu-se a concretizar a palavra do Salvador, cuidando para que passasse despercebido para a maioria de seus discípulos.
3.     Mas não lhe era possível, mesmo querendo-o, ocultar semelhante façanha, e assim mais tarde soube-o Demétrio, como presidente daquela igreja. Muito se admirou por aquela façanha, e aceitando o zelo e a sinceridade de sua fé, exortava-o a ter ânimo e o estimulava a empenhar-se agora com mais força na obra da catequese.
4.     Tal era então a atitude de Demétrio. Mas não muito tempo depois, vendo o êxito de Orígenes, sua grandeza, seu brilho e sua fama universal, foi vítima de paixão humana e tratou de descrever aos bispos de todo o mundo aquela façanha como sendo totalmente absurda, quando os bispos mais experientes e mais ilustres da Palestina, a saber, os de Cesaréia e Jerusalém, considerando Orígenes digno de privilégio e da mais alta honra, impuseram-lhe as mãos para ordená-lo presbítero.
5.             Assim pois, no mesmo momento em que Orígenes havia alcançado uma grande glória e havia conquistado em todas as partes e entre todos os homens considerável renome e fama de virtude e sabedoria, Demétrio, não tendo nenhum ouro motivo de acusação, armou um escândalo tre­mendo por aquela ação que Orígenes havia cometido sendo um menino e se atreveu a envolver em suas acusações os que o haviam promovido aos presbiterato.
6.             Isto ocorreu, em realidade, pouco tempo depois. Por este tempo, no entan­to, Orígenes estava entregue em Alexandria ao ensino divino para todos os que acudiam a ele, sem reservas, à noite e inclusive de dia, dedicando sem vacilação todo seu tempo às ciências divinas e aos discípulos que o freqüen­tavam.
7.             Depois de exercer o império durante dezoito anos, Severo é sucedido por seu filho Antonino[3]. Neste tempo, um dos que se portaram virilmente na perseguição e, depois dos combates de sua confissão, foram preservados pela providência divina, foi um tal Alexandre, mencionado a pouco como bispo da igreja de Jerusalém; por ter-se distinguido em sua confissão por Cristo foi considerado digno do mencionado episcopado, ainda que Narciso, seu predecessor, ainda estivesse vivo.

IX - Dos milagres de Narciso
1.            Muitos, pois, e diversos são os milagres que os cidadãos daquela igreja recordam de Narciso, transmitidos por tradição dos irmãos que se sucederam. Entre eles relatam também o seguinte prodígio realizado por ele.
2.            Dizem que uma vez, durante a grande vigília de Páscoa, faltou o azeite aos diáconos, devido a isso apoderou-se da multidão um grande desânimo. Narciso mandou então aos que preparavam as luzes que pegassem água e a levassem a ele.
3.     Feito isto, orou sobre a água e com toda a sinceridade de sua fé no Senhor ordenou que a derramassem nas lâmpadas. Feito também isto, por um poder maravilhoso e divino e contra toda razão, a natureza da água mudou sua qualidade para a do azeite, e muitos dos irmãos que ali estavam conservaram por longo tempo, desde então até nossos dias, um pouco daquele azeite como prova do milagre de então.
4.      Muitas outras coisas dignas de menção contam-se sobre a vida deste homem, entre elas também a seguinte. Uns pobres homenzinhos, incapazes de supor­tar o vigor daquele e a constância de sua vida, temerosos de serem presos e submetidos a castigo, pois eram conscientes de seus inúmeros delitos, toma­ram a dianteira e tramaram e espalharam uma calúnia terrível contra ele.
5.             Assim, com o fim de assegurar-se da confiança dos ouvintes, confirmaram com juramento suas acusações: um jurava para que o fogo o destruísse; outro para que uma enfermidade funesta consumisse seu corpo, e um terceiro, para que seus olhos cegassem. Mas nem assim, nem mesmo jurando, um só fiel prestou-lhes atenção, pela temperança de Narciso, que sempre brilhou ante todos e por sua conduta virtuosa em tudo.
6.             Ele, no entanto, não conseguindo relevar de forma alguma a maldade destas calúnias, e por outro lado, estando há muito tempo em busca de uma vida filosófica, fugiu da multidão inteira da igreja e passou muitos anos oculto em regiões desertas e recônditas.
7.      Mas o grande olho da justiça tampouco permaneceu quieto ante tais abusos, mas a toda pressa começou a perseguição daqueles ímpios com as mesmas desgraças com que se haviam ligado perjurando contra si mesmos, pois o primeiro, sem nenhum motivo, simplesmente assim, tendo caído uma fagulha na casa em que morava, incendiando-a completamente à noite, morreu abrasado com toda a família; o outro se viu de repente com o corpo, desde a planta dos pés até a cabeça, cheio daquela enfermidade com que ele mesmo se castigou de antemão;
8.             e o terceiro, assim que viu o fim dos primeiros, tremendo ante a inelutável justiça de Deus que tudo vê, fez confissão pública do que os três haviam tramado em comum. Em seu arrependimento, consumia-se de tanto gemer e não cessava de chorar, tanto que chegou a perder os dois olhos. Tais foram os castigos que sofreram estes por suas mentiras.

X - Dos bispos de Jerusalém
1. Tendo-se retirado Narciso e não sabendo ninguém onde poderia achar-se, os bispos que presidiam as igrejas limítrofes resolveram impor as mãos a um novo bispo. Este se chamava Díos. Depois de presidir não muito tempo, sucedeu-o Germanion, e a este, Górdio, sob o qual reapareceu Narciso, de alguma parte, como um ressuscitado. Os irmãos chamaram-no novamente para ocupar a presidência. Todos se admiraram ainda mais, por causa de seu retiro, de sua filosofia, e sobretudo pela vingança que Deus tinha opera­do em seu favor.

XI - De Alexandre
1.            Como Narciso já não estivesse em condições de exercer o ministério por causa de sua extrema velhice, a providência de Deus chamou o mencionado Alexandre, que era bispo de outra igreja, para exercer as funções episco­pais junto com Narciso, conforme uma revelação que este teve em sonhos à noite.
2.            Ocorreu pois que Alexandre, como obedecendo a um oráculo, empreendeu uma viagem desde a Capadócia, onde pela primeira vez foi investido do episcopado, a Jerusalém, por motivos de oração e de estudo dos lugares. O povo dali o recebeu com os melhores sentimentos e já não lhe permitiram regressar a seu país, conforme outra revelação que também eles haviam tido durante a noite e segundo uma voz que se fez ouvir claríssima aos mais zelosos dentre eles, pois lhes indicava que saíssem para fora das portas da cidade e recebessem o bispo que Deus lhes havia predestinado. Depois de assim fazer, com o parecer comum dos bispos que regiam as igrejas circundantes, obrigaram Alexandre a permanecer ali forçosamente.
3.      O próprio Alexandre, em carta privada aos antinoítas[4], que ainda se con­serva entre nós, menciona o episcopado de Narciso, compartilhado com ele, quando escreve textualmente ao final da carta:
"Saúda-vos Narciso, o que regeu antes de mim a sede episcopal daqui, e agora, aos cento e dezesseis anos completos, ocupa seu lugar junto a mim nas orações e exorta-vos, assim como eu, a ter um mesmo sentimento."
4.   Assim ocorreram estas coisas. Na igreja de Antioquia, ao morrer Serapion, o episcopado passou em sucessão a Asclepíades, que também fora destacado por sua confissão no tempo da perseguição.
5.    Alexandre menciona também a instituição deste quando escreve assim aos antioquenhos:
"Alexandre, servo e prisioneiro de Jesus Cristo, à bem-aventurada igreja de Antioquia: saúde no Senhor. O Senhor me fez suportáveis e leves as corren­tes quando no tempo de meu encarceramento soube que, por providência divina, se havia confiado o episcopado de vossa santa igreja de Antioquia a Asclepíades, o mais indicado por seu merecimento."
6.    Alexandre faz saber que esta carta foi enviada por meio de Clemente; ao final escreve como segue:
"Esta carta, queridos irmãos meus, envio-a pelo bem-aventurado presbítero Clemente, varão virtuoso e probo, a quem vós já conheceis e a quem também aprovareis. Em sua estada aqui, conforme a providência e super­visão do Dono, consolidou e fortaleceu a Igreja do Senhor."

XII - De Serapion e das obras que dele se conservam
1.            Quanto ao fruto do afã literário de Serapion, é natural que se hajam conservado também outras obras entre outras pessoas, mas a nós não chegaram mais do que estas: A Domno, um que no tempo da perseguição havia caído da fé de Cristo para dar na superstição judia; e A Poncio e Carico, varões eclesiásticos ambos, e outras cartas a outras pessoas;
2.            e outro tratado que compôs Acerca do chamado Evangelho de Pedro[5]; escreveu-o refutando as falsidades que neste se dizem, por causa de alguns da igreja de Rosos que, com o pretexto da dita Escritura, haviam-se desviado para ensinamentos heterodoxos. Será bom oferecer deste livro algumas sentenças nas quais apresenta sua opinião sobre aquele livro; escreve assim:
3.            "Porque também nós, irmãos, aceitamos Pedro e os demais apóstolos como a Cristo[6], mas como homens de experiência que somos, rechaçamos os falsos escritos que levam seus nomes, pois sabemos que não nos transmitiram semelhantes escritos.
4.            Porque eu mesmo, achando-me entre vós, supunha que todos vos ativésseis à fé reta, e sem ter lido o Evangelho que eles me apresentavam com o nome de Pedro, disse: 'se é apenas isto que parece preocupar-vos, que se leia'. Mas agora que me inteirei, pelo que me disseram, de que seu pensamento se ocultava em certa heresia, terei pressa para estar novamente entre vós; de maneira que, irmãos, esperai-me em breve.
5.     Quanto a nós, irmãos, compreendemos a que heresia pertencia Marciano, o qual se contradizia e não sabia o que falava (isto aprendereis pelo que vos escrevi).
6.            Efetivamente, graças a outros que praticaram este mesmo Evangelho, ou seja, graças aos sucessores dos que o iniciaram, aos quais chamaremos docetas (porque a maior parte de seu pensamento pertence a este ensino), por terem-no emprestado eles, pudemos lê-lo cuidadosamente, e achamos a maior parte conforme a reta doutrina do Salvador, mas também algumas coisas que se distinguem e que vos submetemos." Isto sobre Serapion.

XIII - Das obras de Clemente
1. De Clemente, por outro lado, conservaram-se entre nós os Stromateis, os oito livros inteiros, aos quais se dignou intitular: De Tito Flávio Clemente, Stromateis das Memórias gnósticas segundo a verdadeira filosofia.
2.            De igual número que estes são seus livros intitulados Hypotyposeis[7], nos quais menciona expressamente Panteno como seu mestre e expõe suas interpretações das Escrituras e suas tradições.
3.            Há também de Clemente um Discurso aos gregos, O Protréptico, e três livros da obra intitulada O Pedagogo; outro tratado seu, o assim chamado Quem é o rico que se salva?, e o tratado Sobre a Páscoa; e tratados Sobre o jejum e Sobre a maledicência, assim como a Exortação à paciência ou Aos recém-batizados, e o intitulado Cânon eclesiástico ou Contra os judaizantes, que ele dedicou ao mencionado bispo Alexandre.
4.            Agora bem, nos Stromateis fabricou-se uma tapeçaria de citações não somente da divina Escritura, mas também das obras dos gregos, sempre que lhe parecia que também eles haviam dito algo aproveitável. E menciona as opiniões do povo, enquanto explica as dos gregos e as dos bárbaros;
5.            e além disso emenda as falsas opiniões dos heresiarcas, desdobra uma grande informação e nos proporciona a base de uma sábia e variada instrução. Com tudo isto mistura também as opiniões dos filósofos, de onde provavel­mente se originou que inclusive o título dos Stromateis se ajustasse ao tema.
6.            Nos mesmos livros faz também uso de testemunhos tomados das Escrituras discutidas: das chamadas Sabedoria de Salomão e Sabedoria de Jesus (filho) de Sirac; da Carta aos Hebreus, das Cartas de Barnabé, de Clemente e de Judas;
7.             e menciona o discurso de Taciano Contra os gregos e também a Cassiano por haver composto uma Cronografia, e também os escritores judeus Fílon, Aristóbulo, Josefo, Demétrio e Eupolemo, por todos eles haverem demons­trado em seus escritos que Moisés e o povo judeu eram mais antigos do que as origens dos gregos.
8.             De muitos outros ensinamentos úteis estão cheias as mencionadas obras deste homem. Na primeira delas declara sobre si mesmo que está muito próximo da sucessão dos apóstolos, e nela promete escrever também um comentário do Gênesis.
9.      E em seu tratado Sobre a Páscoa confessa que foi compelido por seus companheiros a colocar por escrito, em proveito dos que viessem depois, as tradições que ele teve a sorte de ouvir da boca dos antigos presbíteros, e menciona Meliton, Irineu e alguns outros, dos quais inclusive cita passagens.




[1] Dn 9:24.
[2] Mt 19:12.
[3] Septimio Severo é sucedido por seus dois filhos: Geta e Caracalla, pouco depois Caracalla manda assassinar Geta e fica só no império. Caracalla era um apelido, seu nome era Marco Aurélio Antonino.
[4] Habitantes de Antinoe ou Antinópolis, às margens orientais do Nilo.
[5] Até 1886-87, quando se descobriu um grande fragmento deste Evangelho em Akhmin, no Egito, só se conhecia a respeito o que Eusébio relata do escrito de Serapion.
[6] Mt 10:40.
[7] Ou seja, rascunhos, esquemas. Esta obra se perdeu, exceto por fragmentos conserva­dos por Eusébio.

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