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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VI – Capítulo 6 - 13
VI - De Clemente de Alexandria
1. Tendo sucedido a Panteno, Clemente vinha regendo a catequese de Alexandria até aquele mesmo tempo, de maneira que também Orígenes foi um de seus discípulos. Pelo menos
Clemente, ao apresentar o material de seus Stromateis, no
livro primeiro, expõe um quadro cronológico assinalando como limite a morte de
Cômodo, com o que fica claro que compôs esta obra em tempos de Severo, cuja
época se descreve na presente história.
VII-
Do escritor Judas
1. Neste mesmo tempo, outro escritor, Judas, comentando por escrito as
setenta semanas de Daniel[1],
detêm também sua cronologia no décimo ano do Severo. Também cria que a tão decantada aparição do anticristo estava já
então se aproximando. A tal ponto a violência daquela perseguição contra nós transtornava as mentes da maioria!
VIII - Da façanha de Orígenes
1.
Neste tempo, estando ocupado no
trabalho da catequese em Alexandria, Orígenes leva a cabo uma façanha que, se
demonstra um ânimo imaturo e juvenil, oferece ao mesmo tempo uma prova plena
de fé e de continência.
2.
Efetivamente,
tomando muito ao pé da letra com ânimo bastante juvenil a frase: Há eunucos que se castraram a si mesmos pelo reino dos céus[2]
e pensando, por um lado, cumprir
assim a palavra do Salvador, e por outro, com o fim de evitar entre os infiéis
toda suspeita e calúnia vergonhosa, já que sendo tão jovem, tratava das coisas
de Deus não apenas com homens, mas também
com mulheres, decidiu-se a concretizar a palavra do Salvador, cuidando para que
passasse despercebido para a maioria de seus discípulos.
3. Mas não lhe era possível, mesmo querendo-o, ocultar
semelhante façanha, e assim mais tarde soube-o Demétrio,
como presidente daquela igreja. Muito se
admirou por aquela façanha, e aceitando o zelo e a sinceridade de sua fé, exortava-o a ter ânimo e o estimulava a empenhar-se
agora com mais força na obra da catequese.
4.
Tal era então
a atitude de Demétrio. Mas não muito tempo depois, vendo o êxito de Orígenes,
sua grandeza, seu brilho e sua fama universal, foi vítima de paixão humana e
tratou de descrever aos bispos de todo o mundo aquela façanha como sendo totalmente absurda, quando os
bispos mais experientes e mais ilustres da Palestina, a saber,
os de Cesaréia e Jerusalém, considerando Orígenes
digno de privilégio e da mais alta honra, impuseram-lhe as mãos para ordená-lo presbítero.
5.
Assim pois, no mesmo momento em que
Orígenes havia alcançado uma grande glória e havia conquistado em todas as
partes e entre todos os homens considerável renome e fama de virtude e
sabedoria, Demétrio, não tendo nenhum ouro motivo de acusação, armou um
escândalo tremendo por aquela ação que Orígenes havia cometido sendo um menino
e se atreveu a envolver em suas acusações os que o haviam promovido aos presbiterato.
6.
Isto ocorreu,
em realidade, pouco tempo depois. Por este tempo, no entanto, Orígenes estava entregue em Alexandria ao ensino
divino para todos os que acudiam a ele, sem reservas, à
noite e inclusive de dia, dedicando sem vacilação
todo seu tempo às ciências divinas e aos discípulos que o freqüentavam.
7.
Depois de exercer o império durante
dezoito anos, Severo é sucedido por seu
filho Antonino[3]. Neste
tempo, um dos que se portaram virilmente na perseguição e, depois dos
combates de sua confissão, foram preservados pela
providência divina, foi um tal Alexandre, mencionado a pouco como bispo
da igreja de Jerusalém; por ter-se distinguido em sua confissão por Cristo foi considerado digno do mencionado
episcopado, ainda que Narciso, seu predecessor, ainda estivesse vivo.
IX - Dos
milagres de Narciso
1.
Muitos, pois, e diversos são os
milagres que os cidadãos daquela igreja recordam
de Narciso, transmitidos por tradição dos irmãos que se sucederam. Entre
eles relatam também o seguinte prodígio realizado por ele.
2.
Dizem que uma
vez, durante a grande vigília de Páscoa, faltou o azeite aos diáconos, devido a isso apoderou-se da multidão um grande desânimo. Narciso mandou então aos que preparavam as luzes
que pegassem água e a levassem a ele.
3.
Feito isto,
orou sobre a água e com toda a sinceridade de sua fé no Senhor ordenou que a derramassem nas lâmpadas. Feito também
isto, por um poder maravilhoso e divino e contra toda razão, a natureza da água
mudou sua qualidade para a do azeite, e
muitos dos irmãos que ali estavam conservaram por longo tempo, desde
então até nossos dias, um pouco daquele azeite como prova do milagre de então.
4.
Muitas outras
coisas dignas de menção contam-se sobre a vida deste homem, entre elas também a seguinte. Uns pobres homenzinhos,
incapazes de suportar o vigor daquele e a constância de
sua vida, temerosos de serem presos e submetidos
a castigo, pois eram conscientes de seus inúmeros delitos, tomaram a dianteira e tramaram e espalharam uma calúnia terrível contra ele.
5.
Assim, com o
fim de assegurar-se da confiança dos ouvintes, confirmaram com juramento suas acusações: um jurava para que o fogo o destruísse; outro para que uma enfermidade funesta consumisse
seu corpo, e um terceiro, para que
seus olhos cegassem. Mas nem assim, nem mesmo jurando, um só fiel prestou-lhes atenção, pela temperança de
Narciso, que sempre brilhou ante todos e por sua conduta virtuosa em
tudo.
6.
Ele, no
entanto, não conseguindo relevar de forma alguma a maldade destas calúnias, e por outro lado, estando há muito tempo em
busca de uma vida filosófica, fugiu da multidão inteira da igreja e passou
muitos anos oculto em regiões desertas e recônditas.
7. Mas o grande olho da justiça tampouco permaneceu
quieto ante tais abusos, mas a toda pressa começou a perseguição
daqueles ímpios com as mesmas desgraças com que se haviam ligado
perjurando contra si mesmos, pois o primeiro,
sem nenhum motivo, simplesmente assim, tendo caído uma fagulha na casa
em que morava, incendiando-a completamente à noite, morreu abrasado com toda a família; o outro se viu de
repente com o corpo, desde a planta
dos pés até a cabeça, cheio daquela enfermidade com que ele mesmo se
castigou de antemão;
8.
e o terceiro,
assim que viu o fim dos primeiros, tremendo ante a inelutável justiça de Deus
que tudo vê, fez confissão pública do que os três haviam tramado em comum. Em
seu arrependimento, consumia-se de tanto gemer e não cessava de chorar, tanto que chegou a perder os dois olhos. Tais
foram os castigos que sofreram estes por suas mentiras.
X - Dos bispos de Jerusalém
1. Tendo-se retirado Narciso e não sabendo ninguém onde poderia
achar-se, os bispos que presidiam as
igrejas limítrofes resolveram impor as mãos a um novo bispo. Este se chamava Díos. Depois de presidir não muito
tempo, sucedeu-o Germanion, e a
este, Górdio, sob o qual reapareceu Narciso, de alguma parte, como um ressuscitado. Os irmãos chamaram-no novamente para
ocupar a presidência. Todos se admiraram ainda mais, por causa de seu retiro, de sua filosofia, e sobretudo pela
vingança que Deus tinha operado em seu favor.
XI - De Alexandre
1.
Como Narciso já não estivesse em
condições de exercer o ministério por causa
de sua extrema velhice, a providência de Deus chamou o mencionado Alexandre,
que era bispo de outra igreja, para exercer as funções episcopais junto com Narciso, conforme uma revelação
que este teve em sonhos à noite.
2.
Ocorreu pois
que Alexandre, como obedecendo a um oráculo, empreendeu uma viagem desde a Capadócia, onde pela primeira vez foi investido do episcopado, a Jerusalém, por motivos de oração e
de estudo dos lugares. O povo dali o
recebeu com os melhores sentimentos e já não lhe permitiram regressar a
seu país, conforme outra revelação que também eles haviam tido durante a noite e segundo uma voz que se fez
ouvir claríssima aos mais zelosos
dentre eles, pois lhes indicava que saíssem para fora das portas da cidade e
recebessem o bispo que Deus lhes havia predestinado. Depois de assim fazer, com o parecer comum dos bispos que
regiam as igrejas circundantes, obrigaram Alexandre a permanecer ali
forçosamente.
3. O próprio
Alexandre, em carta privada aos antinoítas[4],
que ainda se conserva entre nós, menciona o episcopado de Narciso,
compartilhado com ele, quando escreve textualmente ao final da carta:
"Saúda-vos Narciso, o que regeu antes de mim a sede episcopal daqui,
e agora, aos cento e dezesseis anos
completos, ocupa seu lugar junto a mim nas orações e exorta-vos, assim como eu,
a ter um mesmo sentimento."
4. Assim
ocorreram estas coisas. Na igreja de Antioquia, ao morrer Serapion, o episcopado passou em sucessão a Asclepíades,
que também fora destacado por sua confissão no tempo da perseguição.
5. Alexandre
menciona também a instituição deste quando escreve assim aos antioquenhos:
"Alexandre, servo e prisioneiro de
Jesus Cristo, à bem-aventurada igreja de Antioquia:
saúde no Senhor. O Senhor me fez suportáveis e leves as correntes quando no tempo de meu encarceramento soube que,
por providência divina, se havia confiado o episcopado
de vossa santa igreja de Antioquia a Asclepíades, o mais
indicado por seu merecimento."
6. Alexandre
faz saber que esta carta foi enviada por meio de Clemente; ao final
escreve como segue:
"Esta carta, queridos irmãos meus, envio-a pelo
bem-aventurado presbítero Clemente, varão
virtuoso e probo, a quem vós já conheceis e a quem também aprovareis. Em sua
estada aqui, conforme a providência e supervisão do Dono, consolidou e
fortaleceu a Igreja do Senhor."
XII
- De Serapion e das obras que dele se
conservam
1.
Quanto ao fruto do afã literário de
Serapion, é natural que se hajam conservado também outras obras entre outras
pessoas, mas a nós não chegaram mais do que
estas: A Domno, um que no tempo da perseguição havia caído da fé
de Cristo para dar na superstição judia; e A Poncio e Carico, varões
eclesiásticos ambos, e outras cartas a outras pessoas;
2.
e outro
tratado que compôs Acerca do chamado Evangelho de Pedro[5]; escreveu-o refutando as falsidades que neste se dizem,
por causa de alguns da igreja de Rosos que, com o pretexto
da dita Escritura, haviam-se desviado para ensinamentos
heterodoxos. Será bom oferecer deste livro algumas sentenças nas quais apresenta sua opinião sobre aquele livro; escreve
assim:
3.
"Porque
também nós, irmãos, aceitamos Pedro e os demais apóstolos como a Cristo[6],
mas como homens de experiência que somos, rechaçamos os falsos escritos que levam seus nomes, pois sabemos que
não nos transmitiram semelhantes escritos.
4.
Porque eu
mesmo, achando-me entre vós, supunha que todos vos ativésseis à fé reta, e sem ter lido o Evangelho que eles
me apresentavam com o nome de Pedro, disse: 'se é apenas isto
que parece preocupar-vos, que se leia'. Mas
agora que me inteirei, pelo que me disseram, de que seu pensamento se ocultava em certa heresia, terei pressa para
estar novamente entre vós; de maneira que, irmãos, esperai-me em breve.
5. Quanto a nós, irmãos, compreendemos a que heresia
pertencia Marciano, o qual se contradizia e não sabia o que
falava (isto aprendereis pelo que vos escrevi).
6.
Efetivamente, graças a outros que
praticaram este mesmo Evangelho, ou seja, graças aos sucessores dos que o
iniciaram, aos quais chamaremos docetas
(porque a maior parte de seu pensamento pertence a este ensino), por terem-no emprestado eles, pudemos lê-lo
cuidadosamente, e achamos a maior parte conforme a reta doutrina do
Salvador, mas também algumas coisas que se distinguem e que vos
submetemos." Isto sobre Serapion.
XIII - Das
obras de Clemente
1. De Clemente, por outro lado, conservaram-se entre nós os Stromateis,
os oito livros inteiros, aos quais se
dignou intitular: De Tito Flávio Clemente, Stromateis das
Memórias gnósticas segundo a verdadeira filosofia.
2.
De igual
número que estes são seus livros intitulados Hypotyposeis[7], nos
quais menciona expressamente Panteno como seu mestre e expõe
suas interpretações das Escrituras e suas tradições.
3.
Há também de
Clemente um Discurso aos gregos, O Protréptico, e três livros da obra
intitulada O Pedagogo; outro tratado seu, o assim chamado Quem é o
rico que se salva?, e o tratado Sobre a Páscoa; e tratados Sobre o jejum e Sobre a maledicência, assim como a Exortação à
paciência ou Aos recém-batizados, e
o intitulado Cânon eclesiástico ou Contra os judaizantes,
que ele dedicou ao mencionado bispo Alexandre.
4.
Agora bem, nos Stromateis fabricou-se
uma tapeçaria de citações não somente da divina Escritura, mas também das obras
dos gregos, sempre que lhe parecia que
também eles haviam dito algo aproveitável. E menciona as opiniões do
povo, enquanto explica as dos gregos e as dos bárbaros;
5.
e além disso
emenda as falsas opiniões dos heresiarcas, desdobra uma grande informação e nos proporciona a base de uma sábia e variada instrução. Com tudo isto mistura também as opiniões dos
filósofos, de onde provavelmente se
originou que inclusive o título dos Stromateis se ajustasse ao tema.
6.
Nos mesmos
livros faz também uso de testemunhos tomados das Escrituras discutidas: das chamadas Sabedoria de Salomão e Sabedoria
de Jesus (filho) de Sirac; da Carta aos Hebreus, das Cartas de Barnabé, de
Clemente e de Judas;
7.
e menciona o
discurso de Taciano Contra os gregos e também a Cassiano por haver composto uma Cronografia, e também os
escritores judeus Fílon, Aristóbulo, Josefo, Demétrio e Eupolemo, por todos
eles haverem demonstrado em seus escritos que Moisés e o povo judeu eram mais
antigos do que as origens dos gregos.
8.
De muitos outros ensinamentos úteis
estão cheias as mencionadas obras deste homem. Na primeira delas declara sobre
si mesmo que está muito próximo da sucessão dos apóstolos, e nela promete
escrever também um comentário do Gênesis.
9. E em seu tratado Sobre a Páscoa confessa que
foi compelido por seus companheiros a colocar por escrito, em proveito dos que
viessem depois, as tradições que ele teve a
sorte de ouvir da boca dos antigos presbíteros, e menciona Meliton, Irineu e alguns outros, dos
quais inclusive cita passagens.
[1] Dn 9:24.
[2] Mt 19:12.
[3] Septimio Severo é sucedido por
seus dois filhos: Geta e Caracalla, pouco depois Caracalla manda assassinar
Geta e fica só no império. Caracalla era um apelido, seu nome era Marco Aurélio
Antonino.
[4] Habitantes de Antinoe ou
Antinópolis, às margens orientais do Nilo.
[5] Até 1886-87, quando se descobriu
um grande fragmento deste Evangelho em Akhmin, no Egito, só se conhecia a
respeito o que Eusébio relata do escrito de Serapion.
[6] Mt 10:40.
[7] Ou seja, rascunhos, esquemas.
Esta obra se perdeu, exceto por fragmentos conservados por Eusébio.
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