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História Eclesiástica de Eusébio de
Cesareia
Livro VI
– Capítulos 1-5
I - Da perseguição de Severo
II - Da educação de Orígenes desde
menino
III - De como
Orígenes, sendo ainda um rapaz, ensinava a doutrina de Cristo
IV - Quantos dos
instruídos por Orígenes foram elevados à categoria de mártires
V - De Potamiena
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Texto Bíblico: Mt
5:33-34.
I - Da perseguição de Severo
1. E como também Severo suscitou uma perseguição contra as
igrejas, em todas as partes consumaram-se
esplêndidos martírios dos atletas da religião, mas multiplicaram-se
especialmente em Alexandria. Os atletas de Deus foram enviados para lá, como ao
maior estádio, desde o Egito e de toda a Tebaida, e por sua firme paciência em
diversos tormentos e gêneros de morte,
cingiram-se com as coroas preparadas por Deus. Entre eles achava-se também Leônidas, chamado "o pai de
Orígenes"[1],
que foi decapitado, e deixou seu filho ainda muito jovem. Não seria demais
descrever brevemente com que
predileção pela palavra divina viveu o rapaz desde então, já que é muito
abundante o que se conta sobre ele entre o povo.
II - Da educação de Orígenes desde menino
1.
Muitas coisas poderia dizer, na
verdade, quem tentasse colocar por escrito a seu gosto a vida
deste homem, mas dispor ordenadamente o que a ele diz respeito exigiria inclusive uma obra especial[2]. Mesmo assim,
nós resumiremos por enquanto com a brevidade
possível a maior parte e exporemos sobre ele somente algumas coisas, tomando
dos dados de algumas cartas e do relato dos discípulos que sobreviveram até nossos
dias.
2.
Sobre Orígenes, mesmo os fatos de
quando usava fraldas, por assim dizer, parecem-me dignos de menção. Seguia Severo
pelo décimo ano de seu reinado, e Leto
governava Alexandria e o resto do Egito. O episcopado das igrejas dali acabara
de passar a Demétrio, sucedendo a Juliano[3].
3.
Ao acender-se pois, com a maior violência a fogueira da
perseguição e sendo inumeráveis os que se cingiam com a coroa do martírio, tal
foi a paixão do martírio que se apoderou da
alma de Orígenes, ainda um menino, que ardia para lançar-se de encontro
aos perigos e pular e jogar-se à luta.
4. Muito pouco faltou, na verdade, para que a morte se aproximasse, não fosse
pela
divina e celestial providência que, em proveito da grande maioria e por meio de
sua mãe, se interpôs como obstáculo ao seu zelo.
5.
Ela primeiramente rogou-lhe com
palavras, exortando-o a ter consideração por suas disposições
maternais para com ele, mas quando o viu terrivelmente excitado, todo ele preso pelo desejo do martírio ao saber que seu pai
tinha sido preso e encarcerado, escondeu todas suas roupas e assim obrigou-o a permanecer em
casa.
6.
Mas ele, não podendo fazer outra
coisa e sendo-lhe impossível dar sossego a um zelo que excedia
sua idade, enviou a seu pai uma carta muito estimulante sobre o martírio, na qual o animava dizendo textualmente: "Cuida-te,
não aconteça
que por nossa causa mudes de parecer." Fique isto consignado por escrito
como primeiro indício da agudeza de pensamento do menino Orígenes e de sua
nobilíssima disposição para a religião.
7.
E efetivamente, tendo-se exercitado
já desde pequeno nas divinas Escrituras, tinha já lançados
não pequenos fundamentos para as doutrinas da fé. Também nestas tinha se ocupado sem medida, pois seu pai, antes do ciclo de
estudos comum a todos, fez com que sua preocupação por elas
não fosse secundária.
8.
Em conseqüência, antes de ocupar-se das disciplinas
helênicas, em toda ocasião o introduzia a
exercitar-se nos estudos sagrados, exigindo-lhe cada dia passagens de
memória e relações escritas.
9. Estes exercícios não desagradavam o menino, antes até, empenhava-se neles com ardor excessivo, ao ponto de que, não se contentando com os sentidos
simples e óbvios das Escrituras Sagradas, já desde então buscava algo mais e investigava visões mais
profundas, de forma que chegava a pôr em apuros seu pai perguntando-lhe o que queria significar o sentido
da Escritura divinamente inspirada.
10. Este aparentava repreendê-lo abertamente, exortando-o a não indagar nada
que excedesse sua idade nem mais adiante do sentido evidente, mas no seu íntimo regozijava-se enormemente e proclamava perante Deus, autor de todo bem, seu maior agradecimento por tê-lo feito digno de ser pai de tal
filho.
11. E conta-se que
muitas vezes, pondo-se junto ao menino que dormia, desnudava-lhe o peito como
se dentro dele habitasse um espírito divino, beijava-o
com referência e se considerava feliz por seu nobre rebento. Estas coisas e outras do mesmo estilo recordam-se sobre
a infância de Orígenes.
12. Quando seu pai
morreu mártir, ele ficou só com sua mãe e seis irmãos menores, quando ainda não contava mais de dezessete anos[4].
13. A fazenda paterna foi confiscada pelo tesouro imperial, e ele com os seus encontrou-se em
indigência das coisas necessárias para a vida. Mas foi considerado digno da
providência divina e encontrou proteção além de tranqüilidade em uma senhora riquíssima em meados da vida e muito
distinta, mas que rodeava de atenções
um homem muito conhecido, um dos hereges que então havia em Alexandria.
Este era antioquenho de origem, e a mencionada senhora tinha-o consigo como
filho adotivo e rodeava-o das maiores honras.
14.
Mas Orígenes, que por necessidade
estava habitualmente com ele, já desde aquela idade dava provas claras de sua
ortodoxia na fé, pois ainda que uma multidão incontável, não apenas de
hereges, mas também dos nossos, se reunia
junto a Paulo (assim se chamava o homem), porque lhes parecia eloqüente,
jamais se conseguiu que o acompanhasse na oração, guardando desde menino a
regra de Igreja e abominando - como diz textualmente sobre si mesmo em alguma
parte - os ensinamentos das heresias. 15.
Previamente iniciado por seu pai nas disciplinas dos gregos, depois da morte deste entregou-se por inteiro com maior zelo ao
estudo das letras, de forma que, não muito depois da morte do pai, tinha
já uma preparação suficiente em
conhecimentos gramaticais. Com sua entrega a estes estudos procurava em
abundância - para sua idade - o que era necessário[5].
III - De como Orígenes, sendo ainda
um rapaz, ensinava a doutrina de Cristo
1.
E estando entregue ao ensino -
segundo ele mesmo nos informa em algum de seus escritos - e não havendo em
Alexandria ninguém dedicado à instrução catequética, pois todos tinham sido
expulsos pela ameaça de perseguição[6], alguns gentios
acudiram a ele para escutar a palavra de Deus.
2.
Dá a entender que o primeiro deles
foi Plutarco, o qual, depois de uma vida honesta, foi adornado com o martírio
divino. O segundo foi Heraclas, irmão de Plutarco, que depois de dar ele mesmo
numerosos exemplos de vida filosófica e
disciplina, foi considerado digno do episcopado de Alexandria, depois de
Demétrio.
3.
Orígenes ia completar dezoito anos
quando foi posto à frente da escola catequética, momento em que, sob a perseguição
do governador de Alexandria Aquila,
realizava grandes progressos. Foi então também que seu nome se fez famoso entre todos a quem movia a fé, pela
acolhida e solicitude que mostrava para com todos os santos mártires
conhecidos e desconhecidos.
4.
Com efeito, não somente os assistia
quando estavam no cárcere e quando eram julgados, até a sentença final, mas
também depois desta, quando os santos
mártires eram conduzidos à morte, com extrema ousadia e expondo-se aos mesmos perigos. Tanto é que muitas vezes,
por aproximar-se resolutamente e atrever-se a saudar os mártires com um
beijo, faltou pouco para que a plebe de
pagãos que estava em redor, enfurecida, o apedrejasse, mas a cada vez,
com a ajuda da destra divina, escapou milagrosamente.
5.
E esta mesma e celestial graça o
guardou em outras ocasiões uma e outra vez - impossível
dizer quantas - quando se conspirava contra ele devido ao seu excesso de zelo e de ousadia em favor da doutrina de Cristo. A guerra que os infiéis
faziam contra ele era tal que se formaram esquadrões e postavam soldados em
torno da casa em que se achava, devido à multidão dos que dele
recebiam a instrução da fé sagrada.
6.
Dia a dia a perseguição contra ele
se acirrava tanto que em toda a cidade já não havia lugar para ele: mudando de casa
em casa, de todos os lugares o expulsavam
por causa do grande número dos que por ele se aproximavam do ensinamento
divino. E a sua própria conduta prática tinha traços admiráveis de virtude da
mais genuína filosofia.
7. (Demonstrava pois o ditado, "tal como sua palavra, assim seu caráter,
e tal como seu caráter, assim sua palavra".) Esta era sobretudo a causa de
que, com a ajuda do poder divino, arrastasse milhares de pessoas a imitá-lo.
8.
E quando viu que os discípulos acorriam
ainda mais numerosos e que ele era o único encarregado pelo chefe
da igreja, Demétrio, da escola catequética, considerando que o
ensino da gramática era incompatível com o exercício das disciplinas divinas, rompeu sem vacilar com o estudo da gramática como
inútil
e contrário às ciências divinas.
9. Depois, com bom cálculo, para não precisar da ajuda de outros, desfez-se de todas as obras que até então tinha de literatura antiga[7], trabalhadas
com muito
gosto, e se contentava com os quatro óbolos que diariamente lhe levava aquele que as comprou. Durante muitos anos
continuou levando este tipo de vida de filósofo, arrancando de si mesmo
tudo que pudesse dar estímulo a suas paixões
juvenis, suportando durante todo o dia consideráveis fadigas ascéticas, e à noite consagrando a maior
parte do tempo ao estudo das divinas
Escrituras. Assim perseverava numa vida a mais filosófica possível,
seja em exercícios de jejum, seja reduzindo o tempo de sono, que de qualquer forma, nunca tomava sobre o leito, mas a
toda custa sobre o chão.
10. Acima de tudo
achava que era necessário guardar aquelas sentenças evangélicas do Salvador que exortava a não usar duas túnicas, nem
sandálias, e a não consumir-se com
as preocupações do amanhã[8].
11. E mais, com um ardor superior aos seus anos, mantendo-se firme no frio e na nudez[9]
e avançando em direção a uma pobreza extrema, enchia de admiração os que o
rodeavam. Também causava pena a muitos, que lhe suplicavam que compartisse de
seus bens, pois viam as dificuldades que passava
pelo ensinamento divino; mas ele em nada cedia a sua insistência.
12.
Conta-se por exemplo que durante
muitos anos pisou a terra sem usar calçado algum; e mais, absteve-se por muitos
anos do uso do vinho e de todo outro
alimento não necessário, ao ponto de arriscar-se a arruinar e estropear seu
peito. 13. Oferecendo tais exemplos de vida
filosófica a quantos o contemplavam, era natural que incitasse a maioria
de seus discípulos a um zelo semelhante ao seu, tanto que pessoas destacadas,
inclusive entre os gentios infiéis e dos que
procediam da ilustração e da filosofia[10], pouco a pouco
se submetiam ao ensinamento que ele dava, e tão sinceramente receberam
dele no fundo de suas almas a fé na palavra divina, que também eles
sobressaíram no momento de perseguição de então, de forma que alguns inclusive
foram detidos e acabaram no martírio.
IV - Quantos dos instruídos por
Orígenes foram elevados à categoria de mártires
1.
O primeiro destes, pois, foi Plutarco, mencionado pouco
acima. Quando este era conduzido à morte, novamente faltou pouco para que
aquele de quem estamos falando e que o assistia até o último instante de sua
vida fosse linchado ali mesmo pelos cidadãos, como culpado evidente daquela
morte. Mas também então a vontade de Deus continuava guardando-o.
2.
Depois de Plutarco, o segundo dos discípulos de Orígenes a
assinalar-se como mártir é Sereno, que por
meio do fogo deu prova da fé que havia recebido.
3.
O terceiro mártir da mesma escola
foi Heráclides, e depois dele, o quarto, Heron; aquele ainda
era catecúmeno, este neófito; ambos foram decapitados. Todavia, além
destes, da mesma escola houve outro Sereno, distinto do primeiro, quinto a
proclamar-se atleta da religião, de quem diz a tradição que, depois de suportar muitos tormentos, foi decapitado. E entre as
mulheres também Herais, ainda
catecúmena, terminou a vida "após receber - como diz ele mesmo em
alguma parte - o batismo de fogo".
V - De Potamiena
1. Entre eles conta-se como sétimo Basílides, o que conduziu a
famosíssima Potamiena a sua execução. Muita
coisa se conta ainda hoje sobre ela entre seus compatriotas. Depois de
sustentar mil combates contra homens dissolutos em defesa da pureza de seu
corpo e de sua virgindade que a distinguiam
(pois assim como a força de sua alma, também a beleza de seu corpo estava em plena floração) e depois de
suportar inúmeros tormentos, por fim,
depois de torturas terríveis e que fazem estremecer só em nomeá-las, morreu ardendo viva juntamente com sua mãe,
Marcela.
2.
Conta-se que o juiz, cujo nome era Aquila, depois de fazê-la
atormentar cruelmente por todo o corpo, finalmente ameaçou entregá-la aos
gladiadores para ultraje de seu corpo, mas
ela, depois de refletir ensimesmada por breves instantes, ao ser questionada sobre o que decidia, deu tal
resposta, que aos ouvidos daqueles parecia soar como algo ímpio.
3.
Ainda falava quando recebeu os
termos de sua sentença. Basílides, um dos funcionários militares, tomou-a e a conduziu
para sua execução. Como a turba tentava
molestá-la com palavras indecentes, ele rechaçava e afugentava os
insolentes e mostrava para com ela a maior compaixão e humanidade. Ela, por sua
parte, aceitando a simpatia de que era alvo, exortava aquele homem a ter valor,
pois ela pediria a seu próprio Senhor nada mais que partir e em breve poderia
corresponder ao que ele havia feito por ela.
4. Dito isto,
enfrentou com nobreza seu fim enquanto derramavam o piche fervente sobre ela
lenta e paulatinamente pelos diversos membros de seu corpo, desde a planta dos
pés até o topo da cabeça.
5.
E assim foi o combate travado por
esta jovem digna de louvor. Não muito depois, Basílides, tendo seus companheiros
de milícia exigido juramento por algum
motivo, afirmou que de modo algum poderia jurar[11], porque era cristão
e o proclamava publicamente. A princípio, durante algum tempo, pensavam que
gracejava, mas como ele insistisse obstinadamente, conduziram-no ao juiz; e também perante este proclamou sua resistência
e foi lançado à prisão.
6. Quando seus irmãos em Deus chegaram-se a ele e trataram de informar-se sobre a causa desta repentina e maravilhosa decisão, conta-se que disse
que Potamiena
tinha lhe aparecido durante a noite, três dias depois de seu martírio, cingira-lhe a cabeça com uma coroa e
lhe havia dito que pedira ao Senhor
graça por ele, que havia obtido o pedido e que não tardando muito o tomaria consigo. Ante isto os irmãos
aplicaram-lhe o selo do Senhor[12], e no dia seguinte, depois de brilhar no testemunho
do Senhor, foi decapitado.
7. Conta-se mesmo que, pelas datas mencionadas, muitos outros cidadãos de Alexandria se acercavam em massa à doutrina de Cristo, porque em sonhos
lhes aparecera Potamiena, segundo diziam, e os convidara a isto. Mas baste já com isto.
1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui
para a sua espiritualidade?
Ícone:
Orígenes, cognominado Orígenes de Alexandria ou
Orígenes de Cesareia ou ainda Orígenes, o Cristão (Alexandria, Egipto, c. 185 —
Cesareia, 253 ), foi um teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e é um dos
Padres gregos. Um dos mais distintos discípulos de Clemente de Alexandria ,
Orígenes foi um prolífico escritor cristão, de grande erudição, ligado à Escola
Catequética de Alexandria, no período pré-niceno. Inspirados em Orígenes e na
Escola de Alexandria, muitos escritores cristãos desenvolveram suas obras. Orígenes
de Alexandria não deve ser confundido com o filósofo Orígenes, o Pagão
(210-280), mais jovem e também integrante da Escola de Alexandria, porém
discípulo de Plotino
[1] A fama
do filho deu nome ao pai.
[2] Esta
obra existiu: a Apologia de Orígenes, composta por Panfilo e Eusébio, da
qual só nos resta uma tradução
latina do primeiro livro.
[3] Eusébio
equivoca-se aqui, Demétrio já estava há doze ou treze anos no episcopado.
[4] Teria
cerca de quinze anos.
[5]
Certamente dava aulas particulares de gramática.
[6] Os
diretores da escola catequética tinham se retirado para longe de Alexandria, o
que demonstra o caráter localizado da perseguição.
[7] Talvez
seja exagero, já que ele abandonou o ensino como fim e não o estudo como meio.
[8] Mt
10:10; 6:34.
[9] 2 Co
11:27.
[10]
Filósofos gentios, no sentido próprio da palavra.
[11] Mt
5:33-34.
[12] Isto é,
o batismo.
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