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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro V
– Capítulos 18 a 23
XVIII - Em que termos Apolônio refutou aos catafrigas e quem ele
menciona
XIX - De Serapion sobre a
heresia dos frígios
XX - O que Irineu discute por escrito com os cismáticos de
Roma
XXI - De como
Apolônio morreu mártir em Roma
XXII - Que bispos eram célebres
naquele tempo
XXIII - Da questão então movida
sobre a Páscoa
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Leitura Bíblica: Mt 7.16; 12.33.
XVIII - Em que termos Apolônio
refutou aos catafrigas e quem ele menciona
1.
Como a heresia
chamada catafriga ainda estivesse florescendo por aqueles tempos na Frígia, também Apolônio, escritor eclesiástico,
empreendeu o trabalho de uma refutação.
Compôs contra eles um escrito próprio, no qual corrige, palavra por
palavra, as falsas profecias alegadas por eles e descreve como foi a vida dos líderes da heresia. Mas escuta isto que diz
sobre Montano, literalmente:
2. "Mas suas obras e seus ensinamentos mostram quem é este
novo mestre. Este é o que ensinou o
rompimento de matrimônios[1],
o que impôs leis de jejuns, o que deu o nome de Jerusalém a Pepuza e a Timio
(cidades insignificantes da
Frígia), porque queria reunir ali gente de todas as partes, o que estabeleceu arrecadadores de dinheiro, o que
inventava a aceitação de donativos
sob o nome de oferendas, o que assalariava os arautos de sua doutrina[2],
com a finalidade de que o ensinamento de sua doutrina se afirmasse por
meio da glutonaria."
3. Isto
sobre Montano. Mas um pouco mais abaixo escreve também sobre suas profetisas
como segue:
"Demonstramos portanto que estas primeiras profetisas em
pessoa são as que, desde o momento em que ficaram cheias do espírito,
abandonaram seus maridos. Como então
tratavam de enganar-nos chamando de virgem Priscila?"
4. Ainda segue dizendo:
"Não te parece que toda a Escritura
proíbe que um profeta receba donativos e dinheiro?
Portanto, quando vejo que a profetisa recebeu ouro e prata e vestidos
suntuosos, como posso não rechaçá-la?"
5. E um pouco mais abaixo, outra vez diz sobre
alguns de seus confessores o que segue:
"Mais ainda: também Temiso, que envolveu sua avidez com
mantos de aceitabilidade e que não suportou
as insígnias da confissão[3],
mas que depôs as correntes em troca
de muito dinheiro, quando por tudo isto devia humilhar-se, fez-se de
mártir e, compondo uma Carta católica, em imitação ao Apóstolo,
atreveu-se a catequizar aos que eram melhores crentes do que ele, a combater com palavras vazias de sentido e
a blasfemar contra o Senhor, os apóstolos e a santa Igreja."
6. E sobre outro, também dos que eles estimam como
mártires, escreve assim:"E para não falar demais, que nos diga a profetisa
o que há de Alexandre, o que a si mesmo chama de mártir, com o qual ela
banqueteia e que muitos inclusive adoram.
Não é preciso que citemos os latrocínios e demais crimes seus pelos quais foi castigado: estão conservados
no opistodomo[4].
7. "Quem pois perdoa a quem de seus pecados?
Qual dos dois: o profeta ao mártir
por seus latrocínios, ou o mártir ao profeta por sua avareza? Porque, tendo dito o Senhor: não possuireis nem ouro
nem prata nem duas túnicas[5], estes pecaram fazendo tudo ao contrário no que
tange à posse destas coisas proibidas. Efetivamente, vamos demonstrar que os
chamados entre eles de profetas e
mártires não somente caem sobre as posses dos ricos, mas também sobre as
dos pobres, dos órfãos e das viúvas.
8.
E se estão
seguros, que se apresentem aqui e se expliquem sobre estes pontos para que, no caso de serem convencidos,
deixem de continuar prevaricando. Efetivamente, há
que se examinar os frutos dos profetas,
9.
"já que
por seu fruto se conhece a árvore[6].
E para que todos que o desejem conheçam a história de Alexandre, foi julgado
por Emílio Frontino, procônsul de Éfeso[7],
não por causa do nome[8],
mas pelos roubos que ousou cometer, porque já era um delinqüente. Logo, juntando mentira a mentira em nome do Senhor, enganou os fiéis do lugar e foi
posto em liberdade, e sua própria comunidade de origem não o recebeu, por ser ladrão; os que queiram saber sua história têm o arquivo público da Ásia.
10.
O profeta não o conhece, apesar de
conviver com ele muitos anos. Nós, desmascarando-o, por ele colocamos em
evidência a natureza do profeta. Coisas semelhantes podemos demonstrar de
muitos; e se se atrevem, que suportem a prova".
11.
E novamente, em outro lugar da
obra, acrescenta o que segue, sobre os profetas de que se jactam:
"Se porventura negam que seus
profetas receberam presentes, que admitam isto: se for provado que os receberam, não são profetas, e nós
apresentaremos provas disto aos
milhares. É preciso comprovar todos os frutos do profeta. Um profeta, diga-me, tinge os cabelos? Um
profeta pinta de negro as sobrancelhas e pestanas? Um profeta é amigo de enfeites? Um profeta joga com
tabuleiros e dados? Um profeta empresta dinheiro a juros? Que confessem se é permitido ou não, e eu demonstrarei que entre eles
ocorreu."
12.
Este mesmo
Apolônio refere na mesma obra que, quando escrevia seu livro, haviam transcorrido já quarenta anos desde
que Montano empreendeu sua fingida profecia.
13.
E diz ainda que, estando Maximila
em Pepuza fingindo que profetizava, Zotico - que também foi mencionado pelo
escritor anterior - enfrentou-a tentando refutar o espírito que operava nela,
mas que foi impedido pelos que pensavam o
mesmo que aquela mulher. Menciona também um certo Traseas, um dos
mártires de então.
14.
Diz ainda,
como proveniente de uma tradição, que o Salvador ordenou a seus discípulos que não se afastassem de
Jerusalém em doze anos; utiliza também testemunhos tirados do Apocalipse de João e refere que o mesmo João
ressuscitou um morto com o poder divino em
Éfeso; e ainda diz outras coisas mediante
as quais corrigiu acertada e completamente o erro da citada heresia. Isto
disse Apolônio.
XIX - De Serapion
sobre a heresia dos frígios
1.
As obras de Apolinário contra a
referida heresia são mencionadas por Serapion,
que, segundo quer uma tradição, foi bispo da igreja de Antioquia nos
tempos a que nos referimos, depois de Maximino. Menciona-o numa carta particular dirigida a Carico e Pôncio, na
qual, refutando também ele a mesma heresia, acrescenta o que segue:
2.
"Mas, para que também saibais
que a influência desta enganosa tropa - a chamada
nova profecia- é abominada por todos os irmãos do mundo, enviei-vos
também uns escritos de Cláudio Apolinário, bispo beatíssimo que foi de
Hierápolis da Ásia."
3.
Na mesma
carta de Serapion conservam-se também as assinaturas de diversos bispos, um dos quais assina assim:
"Aurélio Cirinio, mártir: rogo que estejais bem";
e outro desta maneira:
"Elio Publio Júlio, bispo de Develto, colônia da
Tracia: vive o Deus dos céus, que o
bem-aventurado Sotas de Anquialo quis expulsar o demônio de Priscila, e
os hipócritas não o deixaram."
4. Também se conservam na carta aludida as
assinaturas autógrafas de muitos outros bispos que estão de acordo com
estes. Isto é o que há sobre eles.
XX - O que Irineu discute por escrito com os cismáticos de
Roma
1.
Contrariamente aos que em Roma
falsificavam o são estatuto da Igreja, Irineu compôs várias cartas: uma que
intitulou A Blasto, sobre o cisma; outra,
A Florino, sobre a monarquia ou que Deus não é o autor dos males, já que, ao que parece, Florino defendia esta
opinião, e como também estivesse seduzido
pelo erro de Valentim, Irineu compôs outro trabalho, Sobre a Ogdoada, na qual dá a entender que ele mesmo recebeu a primeira sucessão dos
apóstolos.
2.
Perto do
final da obra encontramos uma grata indicação sua que necessariamente temos que registrar no presente escrito, e que diz
desta maneira: "Conjuro-te que copies
este livro, por nosso Senhor Jesus Cristo e por sua vinda gloriosa, quando vier julgar os vivos e os
mortos, que compares o que transcreves
e o corrijas cuidadosamente conforme este exemplar de onde o copiaste. E
copiarás igualmente este conjuro e o porás na cópia."
3.
Advertência útil para quem a fez e
para nós, que a referimos, para que tenhamos aqueles antigos e realmente
sagrados varões como o melhor exemplo de solicitude diligentíssima.
4.
Na Carta a
Florino de que falamos acima, Irineu novamente menciona sua convivência familiar com Policarpo, dizendo:
"Estas opiniões, Florino, falando com
moderação, não são próprias de um pensamento são.
Estas opiniões destoam das da Igreja e lançam na maior impiedade aos que as obedecem; estas opiniões nem sequer os hereges que estão
fora da Igreja atreveram-se alguma vez a proclamar; estas opiniões não te foram
transmitidas pelos presbíteros que nos precederam, os que juntos freqüentaram a
companhia dos apóstolos.
5.
Porque sendo eu ainda criança, te
vi na casa de Policarpo na Ásia inferior[9],
quando tinhas uma brilhante atuação no palácio imperial[10]
e te esforçavas para ter crédito perante ele. E recordo-me mais dos fatos
de então do que dos recentes.
6.
(o que se
aprende em criança vai crescendo com a alma e vai se tornando um com ela), tanto que posso inclusive dizer o local em que o
bem-aventurado Policarpo dialogava
sentado, assim como suas saídas e entradas, seu modo de vida e o aspecto
de seu corpo, os discursos que fazia ao povo, como
descrevia suas relações com João e com os demais que haviam visto o
Senhor e como recordava as palavras de uns e de outros; e o que tinha ouvido
deles sobre o Senhor, seus milagres e seu ensinamento; e como Policarpo, depois de tê-lo recebido destas
testemunhas oculares da vida do Verbo, relata tudo em consonância com as
Escrituras.
7.
E estas coisas, pela misericórdia
que Deus teve para comigo, também eu escutava
então diligentemente e as anotava, mas não em papel, mas em meu coração, e pela
graça de Deus, sempre as estou ruminando fielmente e posso testemunhar
diante de Deus que, se aquele bem-aventurado e apostólico presbítero tivesse
escutado algo semelhante, teria lançado um grito, teria tampado os ouvidos e, dizendo como era seu costume: "Deus bondoso!
Até que tempos me conservaste, para ter que suportar estas
coisas!", teria até fugido do local em que estava sentado ou de pé quando
escutou tais palavras.
8. Isto pode-se também comprovar claramente pelas
cartas que escreveu, seja às igrejas vizinhas, confortando-as, seja a alguns
irmãos admoestando-os e exortando-os"
isto diz Irineu.
XXI - De como Apolônio morreu mártir em Roma
1. Por este tempo do reinado de
Cômodo, nossa situação mudou para uma maior
suavidade. A paz, com ajuda da graça divina, abarcava todas as igrejas de toda a terra habitada. Foi também quando a
doutrina salvadora ia pouco a pouco ganhando todas as almas de toda classe de
homens para o culto piedoso do Deus
de todas as coisas, tanto que inclusive muitos dos que em Roma sobressaíam por sua riqueza e linhagem
marchavam ao encontro de sua salvação com toda sua casa e toda sua
família.
2.
Mas o demônio
não podia suportar isto, inimigo do bem e invejoso como é por natureza, e em conseqüência
preparava-se novamente para o combate enquanto
maquinava variados atentados contra nós. Na cidade de Roma conduziu Apolônio ante os tribunais, varão famoso
entre os fiéis de então por sua educação e filosofia, e para acusá-lo
levantou um ministro seu qualquer, gente apropriada para estas tarefas.
3.
Mas em má hora o desgraçado
introduziu a causa, porque segundo um decreto
imperial[11],
não se permitia que vivessem os acusadores de tais homens, e na hora
foram-lhe quebradas as pernas, pois tal sentença foi formulada contra ele pelo
juiz Perennio[12].
4.
O mártir, por sua parte, amado de
Deus, apesar de o juiz rogar-lhe com muita insistência e pedir-lhe que desse
razão ante o senado, apresentou diante de
todos uma eloqüente apologia da fé pela qual dava testemunho, e morreu
decapitado, como por decreto do senado, já que uma antiga lei ordenava entre eles que não se deixasse ir os que
comparecessem uma vez ante o tribunal e não mudassem em absoluto de
propósito.
5.
Assim pois,
quem deseje ler as palavras de Apolônio ante o juiz e as respostas que deu ao interrogatório de Perennio,
assim como sua apologia dirigida ao senado, inteira,
poderá vê-lo na relação escrita dos antigos martírios que compilamos.
XXII - Que bispos eram célebres naquele tempo
1. No décimo ano do reinado de Cômodo, Victor
sucede a Eleutério, que havia exercido o episcopado durante treze
anos. E pelo mesmo tempo, havendo Juliano cumprido seu décimo ano, Demétrio
assume o cargo do ministério das
comunidades de Alexandria. E também por estas datas era ainda conhecido como bispo da igreja de Antioquia,
oitavo a partir dos apóstolos, Serapion,
do qual já fizemos menção anteriormente. Cesaréia da Palestina era
governada por Teófilo. E também Narciso, que esta obra já mencionou acima, ainda então exercia o ministério da
igreja de Jerusalém. Já em Corinto,
na Grécia, nestas mesmas datas, Baquilo era bispo; e na comunidade de Éfeso, Polícrates. E além destes - pelo menos
assim supomos -, nesta época
brilharam também muitos outros. Mas, como é natural, enumeramos em lista
por seus nomes somente aqueles cuja ortodoxia na fé chegou por escrito até nós.
XXIII - Da questão
então movida sobre a Páscoa
1.
Por este
tempo levantou-se uma questão bastante grave, por certo, porque as igrejas de toda a Ásia, apoiando-se em uma tradição muito
antiga, pensavam que era preciso guardar
o décimo quarto dia da lua para a festa da Páscoa do Salvador,
dia em que os judeus deviam sacrificar o cordeiro e no qual era necessário a todo custo, caindo no dia
que fosse na semana, pôr fim aos
jejuns, sendo que as igrejas de todo o resto do mundo não tinham por costume realizá-lo deste modo, mas por
tradição apostólica, guardavam o
costume que prevaleceu até hoje: que não é correto terminar os jejuns em outro
dia que não o da ressurreição de nosso Salvador.
2.
Para tratar
deste ponto houve sínodos e reuniões de bispos, e todos unânimes, por meio de cartas, formularam para os
fiéis de todas as partes um decreto eclesiástico: que nunca se celebre o
mistério da ressurreição do Senhor de entre os mortos em outro dia que não no domingo, e que somente nesse dia guardemos o fim dos jejuns pascais.
3.
Ainda se
conserva até hoje um escrito dos que se reuniram naquela ocasião na Palestina; presidiram-nos Teófilo,
bispo da igreja de Cesaréia, e Narciso, da de Jerusalém. Também sobre o mesmo
assunto conserva-se outro escrito dos reunidos em Roma, que mostra Victor como
bispo; e também outro dos bispos do
Ponto presididos por Palmas, que era o mais antigo, e outro das igrejas da Gálía, das quais era bispo Irineu.
4. Assim
como também das de Osroene e demais cidades da região, e em particular de Baquilo, bispo da igreja de Corinto,
e de muitos outros, todos os quais,
emitindo um único e idêntico juízo, estabelecem a mesma decisão. Estes
pois, tinham como regra única de conduta a já exposta.
1. O que mais te chamou a atenção neste texto?
2. O que o texto contribui
para a sua espiritualidade?
Ícone da Capa: Irineu de Lião
Ireneu nasceu com toda a
probabilidade, em Esmirna (hoje Izmir, na Turquia) por volta do ano 135-140,
onde ainda jovem freqüentou a escola do Bispo Policarpo, que era discípulo do
apóstolo João. Não sabemos quando se transferiu da Ásia Menor para a Gália, mas
a transferência coincidiu certamente, com os primeiros desenvolvimentos da
comunidade cristã de Lião. Nesta cidade, no ano 177, encontramos Ireneu
incluído no colégio dos presbíteros. Precisamente naquele ano, ele foi enviado
para Roma, portador de uma carta da comunidade de Lião, ao Papa Eleutério.
A missão romana esquivou Ireneu
da perseguição de Marco Aurélio, que causou pelo menos quarenta e oito
mártires, entre os quais o próprio Bispo de Lião, Potino que, com noventa anos,
faleceu por maus-tratos, no cárcere. Assim, ao seu retorno, Ireneu foi eleito
Bispo da cidade. O novo Pastor dedicou-se totalmente ao ministério episcopal,
que se concluiu por volta de 202-203, talvez com o martírio.
Ireneu é antes de tudo um homem de fé e
Pastor. Do bom Pastor tem o sentido da medida, a riqueza da doutrina, o fervor
missionário. Como escritor, busca uma dupla finalidade: defender a verdadeira
doutrina contra os ataques heréticos, e expor com clareza a verdade da fé.
Correspondem exatamente a estas finalidades as duas obras que dele permanecem:
os cinco livros Contra as Heresias, e a Exposição da Pregação Apostólica (que
se pode também denominar o mais antigo “catecismo da doutrina cristã”).
[1] Montano
convocava a uma entrega total a obra do Espírito, ainda que às custas de romper
com o cônjuge.
[2] 1 Co
9:14.
[3] Ou seja,
do martírio.
[4] No
templo grego era a câmara mais interna, tem aqui o sentido de arquivo.
[5] Mt
10:9-10.
[6] Mt 7:16;
12:33.
[7]
Desconhecido.
[8] O nome
de Cristo.
[9] Inferior
ou baixa, significando costeira, não é denominação administrativa.
[10] Não
consta que por essa época (ca. 150-155) o imperador habitasse na Ásia.
[11] Eusébio
deve basear-se em algum presumido decreto imperial que tomou por autêntico.
[12] Tigidius
Perennis, prefeito do pretório entre 183 e 185.
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