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História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VII – Capítulos 1-10
Prólogo
Na elaboração do livro sétimo da
História eclesiástica vai estar novamente conosco,
com suas próprias palavras, o grande[1]
bispo de Alexandria Dionísio, contando-nos
sucessivamente, por meio das cartas que nos deixou, cada um dos fatos de seu tempo. Minha narração vai começar deste ponto.
I - Da perversidade de Décio e de Galo
1. Décio, que não reinou um par de anos completos, pois em
seguida foi degolado junto com seus filhos,
foi sucedido por Galo. Neste tempo morre Orígenes, já cumpridos sessenta e nove anos de sua vida. Dionísio, por
sua parte, escrevendo a Hermamon, diz sobre Galo isto que segue:
"Mas acontece que Galo nem reconheceu o mal de Décio nem teve a precaução
de examinar o que o derrubou, mas veio a estatelar-se contra a mesma pedra que
estava diante de seus olhos. Quando o império andava bem e os assuntos se resolviam a um pedido, expulsou os santos varões
que perante Deus intercediam por sua
paz e por sua saúde, e em conseqüência, junto com eles, perseguiu também
as orações feitas em seu favor." Isto pois, sobre Galo.
II - Os
bispos de Roma nos tempos de Décio e de Galo
1. Na cidade de Roma, depois que Cornélio exerceu o episcopado
em torno de três anos, estabeleceu-se como seu sucessor a Lúcio, que no entanto
viveu em seu ministério algo menos que oito
meses, e ao morrer transmitiu seu cargo a Estevão. É a este que Dionísio
escreve sua primeira carta Sobre o batismo, já que na
época havia-se levantado um importante problema, a saber, se se deveria purificar de novo com o
batismo aos que se convertiam de uma
heresia qualquer. Havia prevalecido ao menos um costume antigo: usar com
estas pessoas apenas a oração com imposição de mãos.
III - De como Cipriano, com seus bispos, foi o primeiro a sustentar a
opinião de que deveriam ser purificados
pelo batismo os que se convertiam do erro herético
1. Cipriano, pastor da igreja de Cartago e primeiro dos de então[2],
cria que não se deveria admitir quem não
tivesse primeiramente sido purificado do erro mediante o batismo. Mas Estevão, por outro lado, julgando que não
se deveria juntar inovação nenhuma
contrária à tradição que havia prevalecido desde o princípio,
desagradou-se muito com ele.
IV
- Quantas cartas Dionísio compôs sobre este assunto
1. Dionísio tratou longamente do assunto com ele por carta, e no final
mostra-lhe que, uma vez acalmada a
perseguição, todas as igrejas de todas as partes rechaçaram a inovação de
Novato e recuperaram a paz umas com as outras. Escreve assim:
V - Da paz depois da perseguição
1.
"Mas
saiba agora, irmão, que se uniram todas as igrejas que anteriormente se achavam
separadas, as do Oriente e as de mais longe ainda, e que todos os que as
presidem em todas as partes têm o mesmo sentimento, extremamente contentes com esta paz inesperada. Demetriano em Antioquia, Teoctisto em Cesaréia, Mazabanes em Elia, Marino
em Tiro (com a morte de Alexandre)[3],
Heliodoro em Laodicéia (falecido Telimidro), Heleno em Tarso e todas as igrejas da Cilicia, assim como
Firmiliano e toda a Capadócia. Nomeei
somente os bispos mais eminentes, para não alongar minha carta nem
tornar pesado meu discurso.
2.
As duas
Sírias inteiras e a Arábia - às quais em todos os momentos socorrestes e às
quais agora tens escrito -, assim como Mesopotâmia, o Ponto e Bitínia, e para dizê-lo em uma palavra, todas, por toda parte, saltam de
alegria e glorificam a Deus por esta concórdia e amor fraterno."
3. Isto diz Dionísio. Quanto a Estevão, depois de ter
cumprido seu ministério durante dois anos, sucede-o Sixto. Escrevendo a este sua
segunda carta sobre o batismo, Dionísio
expõe conjuntamente a opinião e a sentença de Estevão e dos demais
bispos. Sobre Estevão diz o seguinte:
4. "Havia ele pois escrito anteriormente sobre Heleno
e também sobre Firmiliano e todos da Cilicia, da Capadócia e, evidentemente, da
Galácia e de todos os povos limítrofes, que daí em diante não estariam em
comunhão com eles, por esta mesma razão, porque - dizia - rebatizam os hereges.
5.
E considera a
magnitude do assunto, porque, em realidade, haviam-se tomado decisões sobre isto nos maiores concílios de bispos,
segundo minhas informações, de modo que aos que provinham das heresias se fazia
passar novamente por um catecumenato e
depois os lavavam e purificavam novamente
da sujeira de seu antigo e impuro fermento[4].
E eu lhe escrevi perguntando-lhe sobre todos estes pontos."
6.
E depois de outras coisas, diz:
"E a nossos amados co-presbíteros Dionísio e
Filemon, que primeiramente pensavam como
Estevão e me escrevem sobre os mesmos assuntos, escrevi-lhes primeiro brevemente e agora com muito mais amplitude."
VI
- Da heresia de Sabelio
1. E isto é o que há sobre a questão mencionada.
Mas quando na mesma carta, falando também dos hereges sabelianos, assinala
que em seu tempo prevaleciam, diz o seguinte: "Porque acerca da doutrina
agora surgida em Ptolemaida de Pentápolis, doutrina
ímpia e que contém muitas blasfêmias sobre o Deus-Todo-poderoso, Pai de nosso Senhor Jesus Cristo, e também muita
incredulidade no que se refere a seu Filho unigênito, o primogênito de toda a
criação, o Verbo feito homem, assim
como também falta de sensibilidade para o Espírito Santo, como chegassem de todas as partes manifestos e
irmãos com a intenção de discuti-lo,
escrevi algumas coisas conforme minhas possibilidades e com ajuda de Deus,
explicando-as de uma maneira bastante didática, e delas te envio as
cópias."
VII - Do
abominável erro dos hereges, da visão que Deus enviou a Dionísio e da regra eclesiástica que este havia recebido
1. E na terceira das cartas sobre o batismo - a que o próprio Dionísio
escreve a Filemon, presbítero de Roma -, expõe-se o seguinte:
"Eu também li as obras e as tradições dos hereges,
e por breve tempo manchei minha alma com seus infames
pensamentos, mas disso tirei uma vantagem: poder refutá-los
por mim mesmo e abominá-los com muito mais força.
2.
Em realidade,
um irmão, um dos presbíteros, separava-me e me metia medo, porque me deixava envolver no pântano da maldade
daqueles; e de fato eu estava manchando minha alma e ele, como
comprovei, dizia a verdade.
3.
Uma visão
enviada por Deus veio a dar-me forças e uma voz se dirigiu a mim e me ordenou
dizendo expressamente: 'Leia tudo o que cair em tuas mãos, pois tu és bastante para emendar e provar cada coisa, e isto tens desde o princípio e foi causa de tua fé'. Eu
aceitei a visão, que concordava bem
com a sentença apostólica que diz aos mais robustos: Sede cambistas experimentados[5]."
4.
Logo, depois de dizer algumas
coisas sobre todas as heresias, acrescenta: "Eu
recebi esta regra e este modelo de nosso bem-aventurado papa[6]
Heraclas. Efetivamente, aos que
provinham das heresias, ainda que houvessem se separado da Igreja - e com maior razão aos que não haviam se
separado, mas que, sendo membros da
congregação somente em aparência, na realidade era-lhes atribuído estar relacionado com algum dos mestres hereges
-, expulsava-os da Igreja e não os
admitia, ainda que pedissem, até que houvessem exposto publicamente
tudo o que houvessem escutado entre os adversários;
então os admitia à assembléia, sem exigir para eles um novo batismo, uma vez que já haviam anteriormente
recebido dele o santo banho."
5.
E novamente,
depois de ter discutido longamente o problema, acrescenta o que segue:
"Aprendi também isto: que não somente os africanos
introduziram agora este costume, mas que
isto foi decidido muito antes, nos tempos dos bispos que nos precederam nas
igrejas mais populosas e nos concílios dos irmãos, em Iconio, em Sinade e em muitas partes. Não me
atrevo a subverter suas decisões e fazê-las entrar em luta e rivalidade,
porque não mudarás de lugar, diz-se, os marcos de teu vizinho que teus pais
puseram[7]."
6. A
quarta de suas cartas sobre o batismo ele escreveu a Dionísio em Roma, então
honrado com o presbiterado, mas que não muito depois recebeu também o episcopado
daquela igreja. Por esta carta pode-se reconhecer como este era um homem ilustrado e admirável, segundo atesta Dionísio
de Alexandria, que depois de outras coisas escreve-lhe fazendo menção ao
assunto de Novato nos seguintes termos:
VIII - Da
heterodoxia de Novato
1. Porque a Novaciano odiamos com razão, pois cindiu a Igreja, arrastou
alguns irmãos à impiedade e à blasfêmia, transmitiu também um
ensinamento sacrílego sobre Deus[8],
caluniou nosso bondoso Senhor Jesus Cristo acusando-o
de ser impiedoso[9] e, por
complemento a todo o dito, anulava o
santo batismo, subvertia a fé e a confissão[10]
que o precedem, e expulsava por completo o Espírito Santo dos mesmos,
ainda que houvesse alguma esperança de que permanecesse ou inclusive de que
voltasse a eles."
IX
- Do ímpio batismo dos hereges
1. Também sua quinta carta foi escrita ao bispo de Roma Sixto. Nela, depois
de dizer muitas coisas contra os hereges, expõe nos seguintes termos algo ocorrido em seu tempo:
"Porque de fato, irmão, também eu necessito conselho e peço teu
parecer para um assunto importante que me
foi apresentado, e temo equivocar-me.
2.
Efetivamente,
um dos irmãos admitidos à comunidade, fiel antigo, segundo críamos, formava parte da assembléia já muito antes de
minha ordenação -e antes de instalar-se o bem-aventurado Heraclas -,
achando-se junto aos recém-batizados, e
tendo escutado as perguntas e as respostas, acercou-se de mim chorando e lamentando-se, caiu aos meus
pés, e confessava e jurava que o batismo com que havia sido batizado
entre os hereges não era este nem tinha absolutamente nada em comum com ele, já
que aquele estava cheio de impiedade e blasfêmias.
3.
E dizia que
agora tinha a alma inteiramente trespassada pela dor e que não se atrevia sequer a levantar os olhos para Deus, tendo
começado naquelas palavras e práticas sacrílegas, e por
isto pedia poder obter esta purificação, esta acolhida, esta
graça puríssima.
4. Isto precisamente é o que eu não ousei fazer, e lhe
disse que bastava para isto a comunhão em que estava admitido
há tão longo tempo. Eu efetivamente não
poderia atrever-me a reconstruir desde o começo[11]
a alguém que ouviu a Eucaristia, respondeu com os outros ao
Amem, esteve de pé ante a mesa, estendeu suas mãos para
receber o sagrado alimento, recebeu-o e durante bastante tempo participou no corpo e no sangue de nosso Senhor. E
exortava-o a ter ânimo e a acercar-se e participar das coisas santas com fé
segura e boa esperança.
5.
Mas ele não
pára de chorar e treme ao acercar-se à mesa, e apenas depois de muitos pedidos consegue acompanhar-nos de pé nas
orações[12]."
6. Além
das cartas citadas, conserva-se também dele outra sobre o batismo, que ele e a comunidade que governava dirigem a
Sixto e à igreja de Roma. Nela expõe a doutrina acerca do problema
comentado, por meio de uma longa
demonstração. Também se conserva dele, depois destas, outra dirigida a
Dionísio de Roma, a que trata de Luciano. Isto é o que há sobre eles.
X - De Valeriano e sua perseguição
1.
Galo e sua equipe, depois de terem
detido o comando quase dois anos, foram
derrotados, sucederam-lhes no governo Valeriano e seu filho Galieno.
2.
Outra vez pois, nos é dado conhecer
o que conta Dionísio por sua carta dirigia
a Hermamon, na qual leva sua narrativa da seguinte maneira:
"E também a João foi igualmente
revelado; E foi-lhe dada, diz, uma boca que profere arrogâncias e
blasfêmias, e lhe foram dados poder e quarenta e dois meses[13].
3.
Mas ambas as
coisas[14]
são de admirar em Valeriano, e sobretudo deve-se considerar como era no princípio, como era favorável e benevolente para com os homens de Deus, porque nenhum outro imperador, nem mesmo aqueles que se diz que foram abertamente
cristãos, teve uma disposição tão favorável e acolhedora. No começo
recebia-os com uma familiaridade e uma
amizade manifestas, e toda sua casa estava cheia de homens piedosos e
era uma igreja de Deus[15].
4. Mas o mestre e chefe supremo dos magos do Egito
conseguiu persuadi-lo a se desembaraçar deles, e lhe ordenava
matar e perseguir os puros e santos varões,
porque eram contrários e obstáculo de seus infames e abomináveis encantamentos (pois são, efetivamente, e eram capazes,
com sua presença e com sua vista, e mesmo somente com sua respiração e o som de
suas vozes, de destruir as armadilhas dos pestíferos demônios), e lhe
sugeria realizar iniciações impuras,
sortilégios abomináveis e ritos de maus auspícios, assim como degolar pobres crianças, imolar filhos de
pais desafortunados, abrir entranhas de recém-nascidos e cortar e
despedaçar as criaturas de Deus, como se por isso tudo pudessem ser
felizes."
5. E a isto acrescenta o seguinte:
"Em conseqüência, Macriano ofereceu-lhes[16]
bons sacrifícios de ação de graças pelo
império que esperava. Ele, que no princípio havia estado à frente das contas universais do imperador, não teve um só pensamento razoável nem
universal, mas caiu sob a maldição do profeta que diz: Ai dos que profetizam segundo seu próprio coração e não vêem
o universal![17].
6. E
não compreendeu a providência universal nem temeu o juízo do que está antes
de tudo, através de tudo e sobretudo[18],
pelo que converteu-se em inimigo da Igreja universal, tornou-se alheio e
desterrou a si mesmo da misericórdia de Deus, e fugiu para muito longe de sua
própria salvação, mostrando nisto a verdade de seu próprio nome[19]."
7. E
depois de outras coisas volta a dizer:
"Valeriano, de fato, induzido por tais excessos,
viu-se objeto de insultos e ultrajes[20],
segundo a sentença de Isaías: E estes escolheram para si os caminhos e as
abominações que sua alma quis; pois eu não preferirei suas zombarias e hei de recompensar-lhes seus pecados[21].
8.
Ele[22],
por sua vez, enlouquecia pelo império, apesar de não merecê-lo; e não podendo revestir com os ornamentos imperiais seu corpo aleijado, propôs seus dois filhos, que assim receberam os
pecados paternos, pois foi bem clara
neles a predição feita por Deus: Eu, que castigo os pecados dos pais nos
filhos até a terceira e quarta geração dos que me odeiam[23].
9. Com efeito, ao lançar seus próprios malvados desejos, que se haviam frustrado, sobre as cabeças de seus filhos, também
lhes transferiu sua própria maldade e seu ódio a Deus[24]."
E isto é o que Dionísio diz sobre Valeriano.
[1] Dionísio de Alexandria será
freqüentemente chamado "Dionísio o Grande", esta é a primeira vez.
[2] Primeiro em categoria não em
tempo.
[3] Sobre Marino nada mais se sabe,
o texto entre parênteses deveria seguir ao nome de Mazabanes (deslize dos
copistas).
[4] 1 Co 5:7.
[5] Frase muito utilizada pelos
autores eclesiásticos, é atribuída a Cristo.
[6] É a primeira vez que se dá este
título ao bispo de Alexandria, na mesma época os presbíteros de Roma o davam
também a Cipriano. O bispo de Roma ainda tardará em recebê-lo.
[7] Dt 19:14.
[8] O rigor extremo e inflexível de
Deus para com os pecadores.
[9] Sem piedade, por negar o perdão
aos caídos.
[10] Profissão de fé.
[11] Isto é, rebatizar. Dionísio
parece convencido da validade do batismo daquele homem.
[12] Isto é, entre os penitentes que
ainda excluídos da comunhão eucarística participavam da oração comum.
[13] Ap 13:5.
[14] Não é possível saber quais, uma
pode ser a citação ao Apocalipse, a outra foi cortada da carta de
Dionísio.
[15] É a época de 253 a 257.
[16] Aos demônios.
[17] Ez 13:3.
[18] Ef 4:6: Cl 1:17.
[19] O nome Macriano derivaria de
makrós, i.é, longo, distante.
[20] Valeriano foi derrotado em 260
pelos persas, cujo rei Sapor (Xapur) I o fez sofrer todo tipo de vexames
Valeriano morreu no cativeiro.
[21] Ez 66:3-4.
[22] Macriano
[23] Ex 20:5.
[24] Os filhos de Macriano (Macriano
o Jovem e Quieto) não conseguiram impor-se, foram derrotados e mortos.
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