Biografia de Francisco de Assis
Primeira
Biografia
Tomás
de Celano
1Celano
Tradução: Frei José David
Antunes, OFM
Fonte: http://editorialfranciscana.org
Introduções: www.franciscanos.org.br
e Frei David de Azevedo, OFM
I.
Quem foi Tomás de Celano?
O
primeiro biógrafo de Francisco nasceu por volta de 1185 na cidadezinha de
Celano, nas montanhas dos Abruços, não longe de Roma. Acolhido na Ordem, em
1215, pelo próprio Francisco, como ele conta (ICel 57) foi para a Alemanha como
missionário em 1221, como se lê no n. 19 da Crônica de Jordão de Jano.
Deve
ter entrado na Ordem já muito preparado, porque sua maneira de escrever
demonstra muito bons conhecimentos literários e um amplo domínio do latim. Não
foi sem motivo que papas e superiores recorreram a ele.
Em 1223
foi nomeado custódio de Worms, Mogúncia, Colônia e Espira, como diz Jordão de
Jano no n. 30, e passou a vice-provincial da Alemanha, na ausência de Cesário
de Espira. É provável que estivesse em Assis em 1228 para a canonização de
Francisco. Parece que pertenceu a uma equipe de copistas que a Ordem manteve em
Assis.
Passou
uns trinta anos trabalhando na biblioteca do Sacro Convento, em Assis, e dando
assistência às Clarissas de Tagliacozzo, nas Marcas de Ancona. Em 1256, assim
acreditam muitos críticos, completou a Legenda de Santa Clara Virgem. Pelo
estilo, há quem lhe atribua também a autoria da bula de canonização de Clara. É
possível que João de Celano, autor da Quasi stella matutina, fosse seu irmão.
Tem-se como certo que morreu em 1260, e está sepultado em Tagliacozzo.
II.
A grande obra de Celano
Com o
nome de Frei Tomás de Celano conhecemos cinco livros nas Fontes Franciscanas. A
Vida l (ICel), a Vida II (2Cel), o Tratado dos Milagres (3Cel), a Legenda Chori
(4Cel) e a Legenda de Santa Clara Virgem.
A
Primeira Vida foi escrita a pedido do Papa Gregório IX em 1228 e apresentada ao
pontífice no dia 25 de fevereiro de 1229. Por ordem do Capítulo Geral de Paris
influenciado por Boaventura, em 1266, foi lançada ao fogo, com todos os
exemplares de obras escritas sobre Francisco antes da Legenda Maior de São
Boaventura. Só veio a ser encontrada de novo em 1768, graças aos estudiosos
bolandistas e aos desobedientes do sistema religioso.
Em
1230, Celano escreveu também uma versão abreviada da Primeira Vida, que se
chamou Legenda ad usum chori, e foi usada pelos frades até 1263. A Vida Segunda
foi escrita em 1247, aproveitando material apresentado pelo ministro geral Crescêncio
de Iesi, que o tinha pedido a toda a Ordem. Dessa vez, Tomás de Celano
trabalhou com uma equipe, encarregando-se, porém, da redação final. A Vida
Segunda, destruída em 1266, só foi reencontrada em 1806.
O
Tratado dos Milagres foi escrito por ordem do ministro geral João de Farina,
entre os anos 1250 e 1253. Também foi destruído em 1266 e só foi reencontrado
em 1899. Esses quatro livros tiveram sua primeira edição crítica publicada em
1941, no vol. X da Annalecta Pranciscana.
III.
Vida I
Objetivos
da Vida I
Objetivos
segundo o mesmo Tomás de Celano diz no Prólogo, o seu objetivo é «relatar
ordenadamente e com afetuosa devoção a vida e os efeitos do nosso
bem-aventurado Pai S. Francisco, escolhendo sempre para meu mestre e guia a
verdade»; e fá-lo por mandato do «senhor e glorioso papa Gregório».
A Vida
Primeira é, pois, uma narrativa da vida de Francisco feita, não por iniciativa
pessoal, mas por encargo recebido da autoridade da Ordem e do próprio Papa.
Esta
circunstância, se pode talvez prejudicar a espontaneidade, acentua a
responsabilidade do trabalho. O fato de o encargo ter sido dado na altura da
canonização do Santo contribui também para determinar mais o fim que se tinha
em vista: apresentar o novo santo numa biografia séria, oficial e ao mesmo
tempo edificante.
Celano
divide o seu trabalho em três partes.
A
primeira – trinta capítulos – vai desde o nascimento de Francisco até 1224; e
insiste principalmente sobre os episódios da conversão e do comportamento santo
e prodigioso de Francisco.
A
segunda compreende os dois últimos anos da vida e a sua morte.
A
terceira fala dos milagres por meio das intercessões a ele.
O
próprio Celano apresenta esta divisão com toda a clareza no Prólogo . Não
obstante a extensão desigual de cada uma das partes, a importância dada ao
último biénio da vida de Francisco denuncia claramente que o ponto de vista do
autor estava na santidade de seu herói – santidade ímpar na hagiografia cristã,
na medida em que, no milagre da estigmatização, se evidencia também uma acão
ímpar de Deus.
O Monte
Alverne foi o cume para onde, desde o início, Tomás de Celano dirigiu sempre o
olhar. A sua atenção está toda concentrada sobre a pessoa de Francisco.
A
fraternidade franciscana, como tal, muito pouco tempo ocupa o seu espírito.
Mesmo quando a ela se refere, por exemplo no capítulo XIII da 1ª parte, sobre a
aprovação da primeira Regra por Inocêncio III, ou no capítulo VI da 2ª parte,
sobre alguns desvios já então patentes, a objetiva está focando sempre a pessoa
de Francisco e não a Ordem
Fontes
Para executar o seu trabalho, Celano teve à
mão recursos de muito boa qualidade. Em primeiro lugar, a sua observação
direta. Embora não fosse um dos companheiros da primeira hora, nem dos mais
íntimos, foi contemporâneo de Francisco e conviveu certamente com ele, podendo
com fundamento referir e transmitir-nos coisas «que ouviu de sua própria boca».
Além
disso, pôde consultar outros irmãos, «testemunhas fiéis e dignas de todo o
crédito». Por altura da canonização de Francisco era natural que grande número
de irmãos se tivesse reunido em Assis, entre os quais estariam os primeiros
companheiros.
Tendo Celano
recebido por essa altura o encargo de escrever a obra, com toda a facilidade
podia ter conversado longamente com esses irmãos. Finalmente, Celano terá usado
também fontes escritas. Mesmo sem pensarmos em qualquer fonte primitiva,
anterior à Vida Primeira, é certo que Celano teve à mão alguns escritos do
mesmo Francisco: as Regras, o Testamento, o Cântico do Irmão Sol e algumas
Cartas. E muito provável é ainda que no Convento da Porciúncula houvesse já um
primeiro arquivo da Ordem, ao qual Celano teria tido acesso; como acesso pôde
ter, por certo, às peças que serviam para o processo da canonização do Santo.
Características do autor
Outras
circunstâncias, porém, existiram que se mostram mais ambivalentes. Entre elas,
as características do autor. Tomás de Celano era um poeta e um artista. Estas
prendas são um fator precioso para a qualidade literária dum texto biográfico;
e isso se pode apreender na arte com que Celano faz viver a «beleza dos campos»
e a «amenidade dos vinhedos», e na frescura do estilo e da narrativa,
deixando-nos páginas singularmente felizes, como aquelas em que nos descreve os
sonhos juvenis de Francisco, o sermão às avezinhas, a noite de Greccio, a cura
do menino de Todi e a morte de Francisco. Mas ser poeta e artista não são as qualidades
mais recomendáveis para um historiador. Celano era também pregador,
missionário, teólogo. Se, por um lado, a alma missionária o ajudava a meter-se
dentro do ideal apostólico de Francisco, também, por outro lado, o levava muito
naturalmente a buscar nos episódios um sentido moralizante ou mesmo a
retocá-los com esse fim. Se a sua cultura teológica lhe dava amplidão de
conhecimentos e profundidade de intuição para descobrir o sentido dos gestos e
da pessoa de Francisco na história da salvação, os seus esquemas teológicos
convidavam-no a fazer da sua biografia uma obra de tese, uma obra sistemática,
no qual a santidade aparecesse num crescendo desde os primeiros indícios da
graça até à consumação sublime no Alverne e na morte.
Uma
obra assim – uma obra de tese – é um mérito, mas é também um risco para a
objetividade histórica. Celano foi igualmente um hagiógrafo. Conhecia os
tópicos hagiográficos comuns no seu tempo. Teve certamente à mão, enquanto
redigia o seu trabalho, alguns modelos de hagiografia monástica, designadamente
as vidas de São Martinho de Tour, de São Bento de Núrcia e de São Bernardo de
Claraval, escritas respectivamente por Sulpício Severo, Gregório Magno e
Guilherme de S. Tierry.
Difícil
seria que não cedesse à tentação de vazar a vida de Francisco dentro dos moldes
usados por autores tão qualificados, tanto mais que a mentalidade de então era
mais faminta de edificação que de verdade objetiva. Os editores de Quaracchi
apontam no aparato crítico a presença destas influências sempre que se tornam
notórias.
Finalmente,
o meio em que viveu. Celano não viveu a experiência dos primeiros anos do
Rivotorto e da Porciúncula. Quando ele entrou na Ordem, esta estava lançada em
plena expansão missionária. Ele mesmo foi enviado para a Alemanha e por lá
viveu três ou quatro anos. Teve ocasião de observar o modo como os povos
germânicos tinham captado o ideal franciscano, certamente um modo diferente
daquele que tinha sido vivido na Úmbria. Foi esta a experiência que o jovem
religioso teve da Ordem. Além disso, de regresso a Itália, Celano parece ter
vivido na órbita do governo central, e, portanto, em contato com a perspectiva
geral em que os problemas são vistos a partir dali. Devido a esta experiência,
compreende-se que a sua sensibilidade para a forma de vida dos tempos heróicos
fosse menor que a dos primeiros companheiros, mas em compensação tinha uma
visão mais aberta, mais ampla e mais realista.
Não
parece, pois, necessário pensar numa subordinação, controle e manipulação por
parte da autoridade para explicar a diferença entre ele e os primeiros
companheiros . De resto, se tivermos em conta que Celano é o primeiro a coligir
os fatos, não podemos senão admirar a quantidade de episódios pequeninos que
ele conseguiu recolher, nos quais se esboçam os traços característicos da vida
franciscana nesse período inicial. As figuras de Fr. Elias e do Cardeal
Hugolino (na altura Gregório IX) são envolvidas de admiração, mas tão pouco
regateia ele a sua veneração às figuras do outro lado: a Fr. Bernardo Quintavalle,
a Fr. Leão e a Santa Clara. É o fascínio simples de um espírito ainda imune de
rivalidades.
A
canonização de Francisco deveria ter produzido uma tal alegria em todos os
irmãos, que as diferenças de opinião teriam ficado praticamente esquecidas.
Concluamos.
Com as características resultantes do objetivo em vista, da cultura, da
experiência pessoal e do temperamento do autor, características que são ao
mesmo tempo qualidades e limitações – a Vida Primeira de Celano é uma obra
séria, de grande valor informativo e bem sucedida no seu intento; enaltece a
santidade de Francisco de Assis. Atingida pelo decreto maligno de 1266, a Vida
Primeira desapareceu totalmente e só foi reencontrada no século XVIII.
Publicada pelos Bolandistas[i] em
1768, foi de novo publicada em edição crítica pelos Editores de Quaracchi na
Analecta Franciscana., tomo X, pp. 1 a 117. As traduções que depois se fizeram
tiveram por base esta edição, que é a seguida também pela presente versão
portuguesa.
[i]
Os bolandistas (em latim: Bollandistæ) são um grupo
de jesuítas cujo
nome é uma homenagem ao seu fundador, o padre belga Jean
Bolland (por
vezes aportuguesado para
João Bolando) (1596-1665). Os bolandistas sofreram perseguições, principalmente
quando da supressão
dos jesuítas, mas sobreviveram. Por suas mãos passaram todos os martirológios.
Esta sociedade de padres foram constituído com a finalidade científica de
recolher e submeter a exame crítico toda a literatura hagiográfica existente,
completando o que haviam omitido os antigos compiladores, valorizando as fontes
relativas aos santos a
que se referem os martirológios,
distinguindo os dados historicamente verdadeiros dos falsos e lendários,
reconstruindo assim a história e
a espiritualidade dos
que a Igreja reconhece
como santos e beatos.
Tomás
de Celano
PRIMEIRA VIDA (1CEL)
PRÓLOGO
Em nome do Senhor. Amém.
Começa o prólogo à vida do
bem-aventurado Francisco.
1
1 Quero contar a vida e os feitos do
nosso bem-aventurado pai Francisco. Quero fazê-lo com piedosa devoção, guiado e
instruído pela verdade e em ordem, porque ninguém se lembra completamente de
tudo que ele fez e ensinou. Procurei apresentar pelo menos o que ouvi de sua
própria boca, ou soube por testemunhas comprovadas e de confiança. Fiz isso por
ordem do glorioso Papa Gregório, conforme consegui e procurei expressar, embora
em linguagem simples.
2 Oxalá mereça eu ser discípulo daquele
que sempre evitou a linguagem difícil e desconheceu os rodeios de palavras!
2.
1 Dividi também em três pequenos livros
tudo que consegui ajuntar sobre o santo homem, distribuindo a matéria em
capítulos, para que a mudança dos tempos não confundisse a ordem dos fatos e
não pusesse a verdade em dúvida.
2 O primeiro livro segue, portanto, a
ordem cronológica, é dedicado principalmente à pureza de seu comportamento e de
sua vida, aos seus santos costumes e edificantes exemplos.
3 Aí foram colocados só alguns dos
muitos milagres que o Senhor Deus se dignou operar por meio dele enquanto viveu
na carne.
4 O segundo livro conta os
acontecimentos desde o penúltimo ano de sua vida até sua morte bendita.
5 O terceiro contém uma porção de
milagres - e omite vários outros - que o gloriosíssimo santo tem operado na
terra agora que está reinando com Cristo nos céus.
6 Também fala da devoção, da honra, do
louvor e da glória que lhe tributaram o feliz Papa Gregório, e com ele todos os
cardeais da santa Igreja Romana, devotissimamente, quando o canonizaram.
7 Graças a Deus onipotente, que sempre
se mostra admirável e bondoso em seus santos.
Fim do prólogo.
PRIMEIRO
LIVRO
Para louvor e glória de Deus
todo-poderoso Pai, Filho e Espírito Santo. Amém.
Começa a vida do nosso beatíssimo pai
Francisco.
Capítulo
1 - Como tinha conduta e mentalidade mundanas.
1.
1 Vivia na cidade de Assis, na região do
vale de Espoleto, um homem chamado Francisco. Desde os primeiros anos foi
criado pelos pais com arrogância, ao sabor das vaidades do mundo. Imitou-lhes
por muito tempo a via mesquinha e os costumes e tornou-se ainda mais arrogante
e vaidoso.
2 Esse péssimo costume difundiu-se por
toda parte, entre os que se dizem cristãos, como se fosse lei pública, tão
confirmada e preceituada em toda parte que procuram educar seus filhos desde o
berço com muito relaxamento e dissolução.
3 Apenas nascidas, mal começam a
baluciar e a falar, as crianças aprendem, por gestos e palavras, coisas
vergonhosas e verdadeiramente abomináveis. Na idade de abandonarem o seio
materno, são levadas não só a falar mas também a fazer coisas indecentes e
lascivas.
4 E nenhuma delas ousa, impressionada
pelo temor da idade, comportar-se honestamente, pois isso as poderia expor a
castigos severos.
5 Bem disse o poeta pagão: “Como
crescemos no meio dos hábitos de nossos pais, desde a infância acompanham-nos
todos os males”.
6 Este testemunho é bem verdadeiro, pois
quanto mais perniciosa é para as crianças a condescendência dos pais, tanto
mais elas se sentem felizes em lhes obedecer.
7 Quando crescem mais um pouco, caem por
si mesmas em práticas cada vez piores.
8 Uma árvore de raízes más só pode ser
má, e o que foi pervertido uma vez dificilmente poderá ser endireitado.
9 Quando chegam às portas da
adolescência, que poderão ser esses jovens?
10 Então, no turbilhão de toda sorte de
prazeres, sendo-lhes permitido fazer tudo que lhes apraz, entregam-se de corpo
e alma aos vícios.
11 Assim, escravos voluntários do
pecado, fazem de todos os seus membros instrumentos de iniquidade. Sem nada
conservar da religiosidade cristã em sua vida e em seus costumes, defendem-se
apenas com o nome de cristãos.
12 Esses infelizes muitas vezes até
fingem ter feito coisas piores do que de fato fizeram, para não passarem por
mais vis na medida em que são mais inocentes.
2.
1 Nesses tristes princípios foi educado
desde a infância o homem que hoje veneramos como santo, porque de fato é santo.
Neles perdeu e consumiu miseravelmente o seu tempo quase até os vinte e cinco
anos.
2 Pior ainda: superou desgraçadamente os
jovens da sua idade nas frivolidades e se apresentava mais generosamente como
um incitador para o mal e um rival em loucuras.
3 Todos o admiravam e ele procurava
sobrepujar aos outros no fausto da vanglória, nos jogos, nos passatempos, nas
risadas e nas conversas fúteis, nas canções e nas roupas delicadas e luxuosas.
4 Na verdade, era muito rico, mas não avarento,
antes pródigo; não ávido de dinheiro, mas gastador; negociante esperto, mas
esbanjador insensato. Mas era também muito humano, muito jeitoso e afável,
embora para sua própria insensatez.
5 Porque era principalmente por isso que
muitos o seguiam, gente que fazia o mal e incitava para o crime. Cercado por
bandos de maus, adiantava-se altaneiro e magnânimo, caminhando pelas praças de
Babilônia
6 até que Deus o olhou do céu. Por causa
do seu nome, afastou para longe dele o seu furor e pôs-lhe um freio à boca com
o seu louvor, para que não perecesse de vez.
7 Desde então esteve sobre ele a mão do
Senhor e a destra do Altíssimo o transformou para que, por seu intermédio,
fosse concedida aos pecadores a confiança na obtenção da graça e desse modo se
tornasse um exemplo de conversão para Deus diante de todos.
Capítulo
2 - Como o Senhor visitou-lhe o coração por meio de uma doença e de uma visão
noturna
3.
1 De fato, quando ele ainda vivia no
pecado com paixão juvenil, arrastado pelas paixões da idade e incapaz de
controlar- se, poderia sucumbir ao veneno da antiga serpente. Mas a vingança,
ou melhor, a misericórdia divina, subitamente desperta sua consciência através
de uma angústia na alma e de uma enfermidade no corpo, conforme as palavras do
profeta: “Hei de barrar teu caminho com espinhos e cercá-lo de muralhas (cfr.
Is 48,9)”.
2 Prostrado por longa enfermidade, que é
o que merece a teimosia dos homens que não se emendam a não ser com castigo,
começou a refletir consigo mesmo de maneira diferente.
3 Já um pouco melhor, e apoiado em um
bastão, começou a andar pela casa para recuperar as forças. Certo dia, saiu à
rua e começou a observar com curiosidade a região que o cercava.
4 Mas nem a beleza dos campos, nem o
encanto das vinhedos, nem coisa alguma agradável de se ver conseguia
satisfazê-lo.
5 Ficou surpreso com sua mudança
repentina e começou a julgar estultíssimos os que amavam essas coisas.
4.
1 Desde esse dia, começou a ter-se em
menos conta e a desprezar as coisas que antes tinha admirado e amado.
2 Mas não inteiramente e de verdade,
porque ainda não estava livre das cadeias das vaidades, nem tinha sacudido do
pescoço o jugo da perversa servidão.
3 É muito difícil deixar as coisas com
que alguém se acostumou e não é fácil libertar-se do que uma vez se aceitou.
Mesmo depois de longa abstenção, o espírito volta ao que tinha aprendido e o
costume geralmente transforma o vício em segunda natureza.
4 Francisco ainda tentou fugir da mão de
Deus e, quase esquecido da correção paterna, diante de uma oportunidade, pensou
nas coisas que são do mundo e ignorou o conselho de Deus, prometendo a si mesmo
o máximo da glória mundana e da vaidade.
5 Pois um nobre de Assis não mediu
despesas para se armar militarmente e, inchado pela glória vã, decidiu marchar
para a Apúlia para ganhar mais dinheiro e honra.
6 Sabendo disso, Francisco, que era
leviano e não pouco audaz, alistou-se para ir com ele, porque era menos nobre
mas de ambição maior, mais pobre mas também mais generoso.
5.
1 Todo entregue a esse plano e pensando
com ardor na partida, certa noite, aquele que o tinha tocado com a vara da
justiça visitou-o numa visão noturna, com a doçura da sua graça. E o seduziu e
exaltou pelo fastígio da glória, porque ele tinha sede de glória.
2 Pareceu-lhe ver a casa toda cheia de
armas: selas, escudos, lanças e outros aparatos. Muito alegre, admirava-se em
silêncio, pensando no que seria aquilo.
3 Não estava acostumado a ver essas
coisas em sua casa, mas apenas pilhas de fazendas para vender.
4 E ainda estava aturdido com o
acontecimento repentino, quando lhe foi dito que aquelas armas seriam suas e de
seus soldados.
5 Despertando de manhã, levantou-se
alegre e, julgando a visão um presságio de grande prosperidade, ficou certo de
que sua excursão à Apúlia seria um êxito.
6 Pois não sabia o que dizer e ainda não
entendera nada do dom que lhe fora feito pelo céu.
7 Em um ponto, poderia ter percebido que
sua interpretação do sonho não era verdadeira porque, embora contivesse muita
semelhança com coisas já acontecidas, dessa vez seu espírito não estava tão
feliz como de costume.
8 Precisava até fazer algum esforço para
executar o que planejara e levar a cabo o seu plano.
9 É muito interessante esta menção de
armas logo aqui no começo. Muito oportunamente se oferecem armas ao soldado que
vai combater o forte armado e, como um outro Davi em nome do Senhor dos
exércitos, há de libertar Israel do antigo opróbrio dos inimigos.
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