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História
Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro
VII – Capítulos 16- 23
XVI - A história de Astirio
1. Ali também[20] Astirio
é lembrado por sua grande franqueza, agradável a Deus. Era membro do senado romano, favorito dos imperadores e conhecido de todos por sua nobre linhagem e por suas
propriedades. Achava-se presente quando
se executou o mártir, e apoiando o ombro, levantou o cadáver sobre sua esplêndida e rica vestimenta e levou-o para enterrá-lo com grande
magnificência e dar-lhe digna sepultura. Os próximos e conhecidos deste homem que sobreviveram até nossos dias recordam
outras inúmeras façanhas suas, inclusive a que segue, grandiosa.
XVII[21]
1. Em Cesaréia de Filipo, que os fenícios chamam Paneas, diz-se
que, nas fontes que ali surgem, ao pé da montanha chamada Paneion, e das quais
nasce o Jordão, em certo dia de festa uma vítima imolada é ali lançada, e esta, por obra do demônio, torna-se invisível de
modo prodigioso. O fato é uma maravilha famosa para os que se acham presentes.
Pois bem, uma vez Astirio assistia o evento, e contemplando a multidão
afetada pelo fato, compadeceu-se de seu
erro, e levantando os olhos ao céu suplicou por Cristo ao Deus que está
sobre todas as coisas para que confundisse o demônio enganador do povo e que o fizesse deixar de enganar os homens. E
conta-se que assim que orou deste
modo, a vítima começou a nadar nas fontes e desta maneira cessou para
eles o prodígio, e daí em diante não se deu nenhum milagre em torno daquele
lugar.
XVIII - Dos sinais da
magnificência de nosso Salvador existentes em Paneas
1.
Mas já que
fizemos menção a esta cidade, creio que não é justo passar por alto um relato digno de memória inclusive para nossos descendentes. De fato, a hemorrágica, que pelos Evangelhos[22] sabemos
que encontrou a cura de seu mal por obra de nosso Salvador, diz-se que era
originária desta cidade e que nela se encontra sua casa, e que ainda
subsistem monumentos admiráveis da boa obra nela realizada pelo Salvador:
2.
Efetivamente,
sobre uma pedra alta, diante das portas de sua casa, alça-se uma estátua de mulher, em bronze, com um joelho dobrado
e com as mãos estendidas para a frente como uma
suplicante; e em frente a esta, outra do mesmo material, efígie
de um homem em pé, belamente vestido com um manto e estendendo sua mão para a
mulher; a seus pés, sobre a mesma pedra,
brota uma estranha espécie de planta, que sobe até a orla do manto de
bronze e que é um antídoto contra todo tipo de enfermidades.
3.
Dizem que esta estátua reproduzia a
imagem de Jesus. Conservava-se até nossos
dias, como comprovamos nós mesmos de passagem por aquela cidade.
4.
E não é estranho que tenham feito
isto os pagãos de outro tempo que receberam algum benefício de nosso Salvador,
quando perguntamos por que se conservam
pintadas em quadros as imagens de seus apóstolos Paulo e Pedro, e inclusive do
próprio Cristo, coisa natural, pois os antigos tinham por costume honrá-los deste modo, simplesmente,
como salvadores, segundo o uso pagão vigente entre eles[23].
XIX
- Do trono de Tiago
1. O trono de Tiago, primeiro que recebeu do Salvador e dos
apóstolos o episcopado da igreja de
Jerusalém e ao qual os livros divinos chamam inclusive de irmão de Cristo[24],
foi preservado até hoje. Os irmãos do lugar vêm rodeando-o de cuidados por sucessivas gerações e claramente mostram
a todos que veneração têm os antigos e continuam tendo os de hoje para
com os santos varões, por serem amados de Deus. Basta já disto.
XX - Das "cartas festivas[25]"
de Dionísio, nas quais fixa também um cânon sobre a Páscoa
1. Quanto a Dionísio, além de suas cartas já mencionadas, compôs por aquele tempo outras que ainda se conservam: as festivas. Nelas
tece palavras muito mais solenes acerca da festa da Páscoa.
Uma é dirigida a Flávio, e outra a Domécio
e Dídimo, na qual propõe inclusive um cânon de oito anos, alegando que não convém celebrar a festa da Páscoa senão depois
do equinócio da primavera. Além destas cartas escreveu
também outra a seus co-presbíteros de Alexandria, e ao
mesmo tempo a outras pessoas em termos distintos; estas quando ainda durava a
perseguição.
XXI - Do
que aconteceu em Alexandria
1. Apenas havia-se restabelecido a paz, e já estava de volta a Alexandria;
mas tendo eclodido outra sedição e uma
guerra, de modo que não lhe era possível visitar
a todos os irmãos da cidade, divididos como estavam em um e outro bando da
sedição, uma vez mais, na festa da Páscoa[26],
da própria Alexandria, como se estivesse do outro lado da
fronteira, entrou em comunicação com eles por carta.

"E quanto a mim, por que
admirar-se de que me seja penoso comunicar-me inclusive por carta com os que moram longe, sendo que até conversar comigo
mesmo e deliberar com minha própria alma torna-se impossível?
3.
O certo é
que, na relação com minha própria entranha, isto é, com os irmãos que compartem meu teto e meus sentimentos, cidadãos
também de minha própria igreja, necessito correspondência epistolar, e ainda
esta não vejo como arranjar-me para transmiti-la, porque seria mais fácil
atravessar, já não digo para lá da fronteira, mas até do Oriente para o
Ocidente, do que chegar a Alexandria da própria Alexandria;
4. pois mais vasta e mais impraticável do que aquele enorme e não trilhado deserto que Israel atravessou em duas gerações[27]
é a avenida mais central da cidade. E
daquele mar que, partido e separado por dois muros, aqueles acharam
vadeável para seus cavalos, enquanto os egípcios eram afundados na mesma trilha, fazem imagem os portos agradáveis e
sem ondas, pois muitas vezes, pelos
assassinatos neles cometidos, parecem iguais a um mar Vermelho.
5.
E o rio que
banha a cidade, algumas vezes foi visto mais ressecado do que o deserto sedento e mais árido que aquele no qual, ao atravessá-lo, Israel
passou tanta sede que Moisés gritou
suplicando e por obra do único que faz maravilhas brotou bebida para
eles de uma rocha;
6.
e outras
vezes, ao contrário, tanto transbordou que inundou toda a várzea, as e ruas e os campos, até ameaçar com a vinda das águas dos tempos de Noé. E sempre corre manchado com sangue, por
homicídios e afogamentos, como nos
tempos de Moisés, quando converteu-se em sangue para o faraó e empestava.
7.
E que outra água poderia purificar
a água que tudo purifica? E como o vasto
oceano, intransponível para o homem, poderia derramar-se e purificar este
mar amargo? Ou como o grande rio que sai do Éden poderia lavar o sangue impuro, ainda que vazasse os quatro braços
em que se divide para um só: o Giom?[28]
8. E quando poderia tornar-se puro o ar infestado pelos
miasmas procedentes de todas as partes? Porque tais hálitos
emanam da terra, tais ventos do mar, tais
eflúvios dos rios e tais exalações dos portos, que o rocio poderia ser o pus de cadáveres que apodrecem em todos os elementos indicados.
9.
E logo o povo
se admira e está incerto de onde provém as contínuas pestes e as graves enfermidades, de onde as corrupções de
toda espécie e a variada e reiterada mortandade dos homens, e
por que a grande cidade não sustenta já
em si mesma aquela tão grande multidão de homens que antes alimentava, começando pelas crianças de peito até os anciãos de extrema velhice, passando pelo grande número de 'velhos
prematuros', como eram chamados. Ao
contrário, os quarentões e mesmo os setentões eram tão numerosos então, que agora seu número não chega a completar-se
ainda que estejam inscritos e
assinalados para a ração pública de víveres desde os quatorze até os oitenta anos;
e os que aparentam ser os mais jovens parecem contemporâneos dos mais velhos de
então.
10.
E desta
maneira, ainda que vendo constantemente diminuída e consumida a família humana
sobre a terra, não tremem, apesar de aproximar-se cada vez mais sua completa destruição."
XXII
- Da doença que sobreveio em Alexandria
1.
Depois disto,
quando a peste interrompeu a guerra e a festa se aproximava, novamente entrou em comunicação por carta com os irmãos, indicando-lhes os
padecimentos desta calamidade com estas palavras:
2.
"Certamente
aos demais homens[29] não parecerá tempo de festas a presente ocasião. Para eles, nem este nem outro o é; não me
refiro aos tempos de luto, mas nem sequer
dos que se poderiam crer sumamente alegres. Atualmente, ao menos, é certo que tudo são lamentações, tudo prantos, e os gemidos ressoam em toda a cidade por causa da multidão dos
mortos e dos que cada dia continuam morrendo;
3.
porque, como
está escrito dos primogênitos do Egito, assim também agora levantou-se um grande clamor, pois não há casa onde não
haja um morto[30]; e oxalá não
fosse mais do que um, porque em verdade são muitas e terríveis as coisas que sucederam inclusive antes disto.
4.
Primeiramente
nos expulsaram, e somos os únicos que, apesar de sermos perseguidos por todos e estarmos condenados a morrer,
celebramos a festa, inclusive então, e cada lugar de
tribulação de cada um se converterá em paragem
de assembléia festiva: campo, deserto, nave, albergue, cárcere. Mas a mais
esplendorosa de todas as festas foi celebrada pelos mártires perfeitos, premiados com o festim do céu.
5.
E depois
disto lançaram-se encima a guerra e a fome, que sofremos junto com os pagãos: suportamos todos os maus-tratos que nos
deram, mas entramos à parte no que eles faziam e
padeciam entre si, e mais uma vez gozamos da paz de Cristo, que
só a nós foi dada.
6.
Tínhamos
conseguido, tanto eles quanto nós, um brevíssimo intervalo quando irrompeu esta enfermidade, coisa mais temível para
eles do que todo temor, e portanto mais cruel do que qualquer
calamidade, e como escreve um particular escritor seu, 'única coisa que
sobrepujou toda previsão'[31].
Mas não é assim para nós, pois foi um exercício
e uma prova em nada inferiores às demais.
Efetivamente, em nada nos perdoou, ainda que tenha ceifado muitos entre os pagãos."
7.
E em
continuação acrescenta o que segue:
"Em todo caso, a maioria de nossos irmãos, por
excesso de seu amor e de seu afeto fraterno, esquecendo-se de si
mesmos e unidos uns com os outros, visitavam os enfermos sem precaução,
serviam-nos com abundância, cuidavam-nos em Cristo e até
morriam contentíssimos com eles, contagiados pelo
mal dos outros, atraindo sobre si a enfermidade do próximo e assumindo voluntariamente
suas dores. E muitos que curaram e fortaleceram outros, morreram, transferindo
para si mesmos a morte daqueles e convertendo então
em realidade o dito popular, que sempre parecia ser de mera cortesia: 'Despedindo-se
deles humildes servidores'.
8.
Em todo caso,
os melhores de nossos irmãos partiram da vida desde modo, presbíteros - alguns -, diáconos e laicos, todos muito
louvados, já que este tipo de morte, pela grande piedade e fé
robusta que envolve, em nada parece ser inferior mesmo ao
martírio.
9.
E assim tomavam com as palmas das
mãos e em seus seios os corpos dos santos,
limpavam-lhes os olhos, fechavam suas bocas e, agarrando-se a eles e abraçando-os, depois de lavá-los e envolvê-los
em sudários, levavam-nos sobre os
ombros e os enterravam. Pouco depois eles mesmos recebiam os mesmos cuidados,
pois sempre os que ficavam seguiam os passos dos que os precederam.
10. Já entre os pagãos foi o contrário: até afastavam os
que começavam a adoecer e repeliam até aos mais queridos, e lançavam os
moribundos para as ruas e cadáveres
insepultos ao lixo, tentando evitar o contágio e a companhia da morte,
tarefa nada fácil até para os que usavam mais engenho em esquivá-la."
11. E depois desta carta, quando a cidade já estava em
paz, enviou ainda uma carta festiva aos irmãos do Egito, e
logo voltou a escrever outras. Conservam-se
dele também uma Sobre o sábado e outra Sobre o exercício.
12. Comunicando-se uma vez mais por carta com Hermamon e
os irmãos do Egito, explica muitas coisas sobre a
perversidade de Décio e de seus sucessores, e menciona a paz
dos tempos de Galieno.
XXIII - Do império de
Galieno
1.
Mas nada é melhor do que ouvir como
foram estes acontecimentos: "Assim pois aquele[32],
traindo um de seus imperadores e atacando o outro, logo desapareceu com sua
pilhagem, sem deixar traços, e todos proclamaram e reconheceram Galieno, que
era ao mesmo tempo velho e novo imperador, pois era-o antes e veio depois deles[33].
2. Efetivamente, conforme o dito do profeta Isaías: Vede que chega o do
princípio, e o que agora surgir será novo[34].
Porque assim como uma nuvem, deslizando sob os raios do sol, por um momento
o cobre e sombreia e se mostra em lugar dele, mas logo, quando a nuvem passou
ou se desfez, novamente surge e reaparece o sol, que antes já havia saído,
assim Macriano pôs-se diante e aproximou-se em pessoa ao imponente poder
imperial de Galieno, mas já não é[35],
posto que não era, enquanto que este é o mesmo que era;
3.
e o poder imperial, como se tivesse
deposto sua vetustez e estivesse novamente purificado de sua anterior maldade,
floresce agora com maior vigor e é visto e ouvido muito mais longe e vai
penetrando por todas as partes".
4.
Logo, continuando, assinala também
o tempo em que escrevia isto com as palavras que seguem:
"Também me agrada examinar novamente os dias dos anos imperiais,
porque estou vendo que os mais ímpios, apesar de seu renome, ao fim de pouco
tempo caíram no anonimato, enquanto que ele[36],
mais santo e amado de Deus, tendo passado já seu sétimo ano, cumpre agora o
nono ano no qual celebraremos a festa[37]."
1.
O
que te chamou mais atenção neste texto?
2.
Como
ele contribuiu para sua espiritualidade?
[20]
Em Cesaréia da Palestina.
[31]
O autor "seu", isto é, dos outros, é Tucídides, cuja descrição da
peste em Atenas é famosa desde a antigüidade.
[33] Já o fora desde que seu pai o
associou ao império como co-augusto em 253, voltou a sê-lo em Alexandria por
breve intervalo.
[37] Galieno cumpria o sétimo ano de
seu império ao fim do ano 260, tempo longo para um imperador daquela época.
Para Dionísio há outro motivo para comentá-lo: o fim da perseguição. A Páscoa
de 262 anunciava-se especialmente alegre.
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