Biografia de Francisco de Assis
Tomás de Celano
1Celano - Capítulos 8 e 12
Biografia de Francisco de Assis
Tomás de Celano
1Celano - Capítulos 8 e 12
CAPÍTULO
8. Restauração da igreja de São Damião, - A vida das religiosas que ali moravam
18.
A primeira obra que o bem-aventurado Francisco empreendeu depois que se livrou
de seu pai terreno foi edificar uma casa para Deus. Mas não tentou construí-la
desde o começo: consertou o que era velho, reparou o que era antigo. Não desfez
os alicerces mas edificou sobre eles, reservando essa prerrogativa, mesmo sem
pensar, ao Cristo: ninguém pode pôr outro fundamento senão o que foi posto:
Cristo Jesus.
Voltou
pois ao lugar em que, como dissemos, fora construída antigamente uma igreja de
São Damião. Com a graça do Altíssimo, reparou-a cuidadosamente em pouco tempo.
Foi
esse o lugar feliz e abençoado em que teve auspicioso início a família
religiosa e nobre Ordem das Senhoras Pobres e santas virgens, quase seis anos
depois da conversão do bem-aventurado Francisco e por seu intermédio. Nela
estabeleceu-se Clara, natural de Assis, como pedra preciosa e inabalável,
alicerce para as outras pedras que haveriam de se sobrepor.
Pois
já tinha começado a existir a Ordem dos Frades quando essa senhora foi
convertida para Deus pelos conselhos do santo homem, servindo assim de estímulo
e modelo para muitas outras. Foi nobre de nascimento e muito mais pela graça.
Foi virgem no corpo e puríssima no coração; jovem em idade mas amadurecida no
espírito. Firme na decisão e ardentíssima no amor de Deus. Rica em sabedoria,
sobressaiu na humildade. Foi Clara de nome, mais clara por sua vida e
claríssima em suas virtudes.
19.
Sobre ela se ergueu o nobre edifício de preciosíssimas pérolas, cujo louvor não
cabe aos homens mas a Deus. Porque não conseguimos compreendê-la com nossa
inteligência estreita nem apresentá-la em pobres palavras.
Antes
de tudo, elas possuem a virtude da mútua e constante caridade, unindo a tal
ponto suas vontades que, vivendo em número de quarenta ou cinquenta em um mesmo
lugar, o mesmo querer e não querer parece fazer de todas um só espírito. Brilha
também em cada uma a joia da humildade, que conserva os dons recebidos do céu e
lhes merece outras virtudes. O lírio da virgindade e da pureza perfuma-as
todas, a ponto de esquecerem os pensamentos terrenos e desejarem apenas meditar
nos celestiais. Essa fragrância acende em seus corações tão grande amor pelo
Esposo eterno, que a sinceridade desse afeto sagrado apaga toda saudade da vida
passada. Distinguem-se a tal ponto pelo título da mais alta pobreza que quase
nunca se permitem satisfazer as necessidades extremas de comer e vestir.
20.
Adquiriram a graça especial da mortificação e do silêncio, a ponto de não
precisarem esforçar-se para coibir os sentidos e refrear a língua. Algumas
delas já se desacostumaram tanto de falar que, quando precisam, mal conseguem
expressar-se de maneira correta.
Em
tudo são adornadas pela virtude da paciência, de modo que nenhuma adversidade
ou moléstia chega a perturbá-las ou alterá-las. Afinal, chegaram a tal nível de
contemplação, que nela aprendem tudo o que devem fazer ou deixar de fazer e têm
a felicidade de saber deixar-se elevar para Deus, dedicando a noite e o dia aos
louvores divinos e à oração. Digne-se o eterno Deus, com sua santa graça, dar
conclusão ainda mais santa a esse santo começo.
Baste
por enquanto isso que dissemos sobre as virgens consagradas ao Senhor, devotas
servas de Cristo, pois sua vida admirável e a gloriosa instituição que
receberam do Papa Gregório, quando ainda era bispo de Ostia, pedem um tempo
especial e uma obra à parte.
CAPÍTULO 9. Francisco muda o hábito e repara a
igreja de Santa Maria da Porciúncula. Tendo ouvido o Evangelho, abandona tudo.
- Imagina e faz o hábito que os frades usam.
21.
Depois que o santo de Deus trocou de hábito e acabou de reparar a mencionada
igreja, mudou-se para outro lugar próximo da cidade de Assis. Aí começou a
reedificar outra igreja, abandonada e quase destruída, e desde que pôs mãos à
obra não parou enquanto não terminou tudo.
Dali passou a
outro lugar, chamado Porciúncula, onde havia uma antiga igreja de Nossa Senhora
Mãe de Deus, mas estava abandonada e nesse tempo não era cuidada por ninguém.
Quando o santo de Deus a viu tão arruinada, entristeceu-se porque tinha grande
devoção para com a Mãe de toda bondade, e passou a morar ali habitualmente. No
tempo em que a reformou, estava no terceiro ano de sua conversão. Por essa
época, usava um hábito de ermitão, cingido com uma correia, e andava com um
bastão e calçado.
22.
Leu-se certo dia, naquela igreja, a passagem do Evangelho que conta como o
Senhor enviou seus discípulos a pregar. O santo de Deus estava presente e
escutava atentamente todas as palavras. Depois da missa, pediu encarecidamente
ao sacerdote que lhe explicasse o Evangelho. Ele repassou tudo e Francisco, ouvindo
que os discípulos não deviam possuir ouro, prata ou dinheiro, nem levar bolsa
ou sacola, nem pão, nem bastão pelo caminho, nem ter calçados ou duas túnicas,
mas pregar o reino de Deus e a penitência, entusiasmou-se imediatamente no
espírito de Deus: "É isso que eu quero, isso que procuro, é isso que eu
desejo fazer de todo o coração".
Transbordando
de alegria, apressou-se o santo pai a concretizar o salutar conselho, e sem
demora pôs devotamente em prática o que ouvira. Tirou as sandálias, deixou de
lado o bordão e, contente com uma só túnica, substituiu a correia por uma
corda. Preparou depois uma túnica que apresentava o sinal da cruz, para afastar
com ela todas as fantasias demoníacas. Fê-la muito áspera, para crucificar a
carne com os vícios e os pecados. Fê-la muito pobre e mal acabada, para de
maneira alguma poder ser ambicionada pelo mundo.
E
procurou praticar com toda diligência e reverência também as outras coisas que
ouvira. Pois não era surdo ao Evangelho, antes guardava tudo com uma memória
admirável e tratava de executá-lo à risca.
CAPÍTULO 10. A pregação do Evangelho e o anúncio da
paz. Conversão dos seis primeiros frades
23.
Depois disso, começou a pregar a todos a penitência, com grande fervor de
espírito e alegria da alma, edificando os ouvintes com a linguagem simples e a
nobreza de coração. Sua palavra era um fogo devorador que penetrava o âmago do
coração e a todos enchia de admiração. Parecia todo transfigurado, e olhando
para o céu nem se dignava olhar a terra. E, coisa curiosa, começou a pregar
onde em criança aprendera a ler, no mesmo lugar em que haveria de ter sua
primeira gloriosa sepultura. Dessa maneira, um feliz começo augurou uma
conclusão ainda mais feliz. Onde aprendeu, aí também ensinou; e onde começou,
aí também chegou à conclusão feliz.
Em
todas as pregações, antes de propor aos ouvintes a palavra de Deus, invocava a
paz dizendo: "O Senhor vos dê a paz". Anunciava-a sempre a homens e
mulheres, aos que encontrava e aos que o procuravam. Dessa forma, com a graça
de Deus, muitos inimigos da paz e da salvação abraçaram a paz de todo o
coração, fazendo-se também eles filhos da paz, desejosos da salvação eterna.
24.
Entre estes, o primeiro que seguiu o santo foi um habitante de Assis, homem
piedoso e simples. Depois dele, também Frei Bernardo abraçou a missão de paz,
correndo alegremente a ganhar o reino dos céus em seguimento do santo de Deus.
Hospedara com frequência o bem-aventurado pai, tendo observado e provado sua
vida e procedimento. Atraído pelo aroma de sua santidade, concebeu o temor e
nasceu para a salvação do espírito.
Vira-o
passar em oração a noite inteira, quase sem dormir, louvando a Deus e sua
gloriosa Mãe. Admirava-se e dizia: "Verdadeiramente, este é um homem de
Deus". Por isso se apressou a vender todas as suas coisas e deu tudo não
aos parentes mas aos pobres. Tomando o caminho da perfeição, cumpriu o conselho
do santo Evangelho: "Se queres ser perfeito, vai e vende tudo que tens, e
distribui-o aos pobres. Terás um tesouro nos céus. E vem e segue-me".
Feito isso, juntou-se a Francisco na vida e no hábito. Esteve sempre com ele
até que, tendo aumentado o número dos irmãos, foi transferido para outras
regiões em obediência ao piedoso pai.
Sua
forma de conversão passou a ser modelo para os outros que se converteram:
vender as propriedades e dar aos pobres. São Francisco teve uma alegria enorme
com a chegada e a conversão de um homem de tanto valor, pois reconheceu que o
Senhor cuidava dele, já que lhe mandara um companheiro tão necessário e um
amigo tão fiel.
25.
Logo o seguiu outro cidadão de Assis, que teve vida muito louvável e, depois de
pouco tempo, terminou ainda mais santamente o que santamente começara.
Não
muito depois seguiu-o Frei Egídio, homem simples, reto e temente a Deus, que
teve uma longa vida, justa, piedosa e santa, e nos deixou exemplos de
obediência perfeita, de trabalho braçal, de recolhimento e de santa
contemplação. Depois desses, deixando fora um outro, Frei Felipe completou o
número sete. Seus lábios foram purificados pelo Senhor com a brasa da pureza,
para dizer a seu respeito coisas doces e melífluas. Entendia e interpretava as
Escrituras, sem as ter estudado, como aqueles que os príncipes dos judeus
desprezavam como ignorantes e iletrados.
CAPÍTULO 11. Espírito profético e advertências de
São Francisco
26.
O bem-aventurado Francisco se enchia cada vez mais da consolação e da graça do
Espírito Santo. Com todo o cuidado e solicitude, dava a seus novos filhos a
nova formação, ensinando-os a trilhar com passo seguro o caminho da santa
pobreza e da bem-aventurada simplicidade.
Certo
dia, admirando a misericórdia do Senhor nos muitos benefícios que executava por
seu intermédio, e desejando que o Senhor se dignasse mostrar-lhe como ele e os
seus deveriam progredir na perfeição, foi para um lugar de oração, como fazia
com frequência. Lá ficou bastante tempo rezando com temor e tremor, diante do
Senhor de toda a terra. Relembrando com amargura os anos que aproveitara mal,
repetia sem cessar: "Meu Deus, tende compaixão de mim que sou
pecador". Pouco a pouco começou a sentir o coração inundar-se de uma
alegria incontável e de uma suavidade sem tamanho. Também começou a sentir que
saía de si mesmo, dissipando-se os temores e as trevas que se tinham juntado em
seu coração por medo do pecado, e lhe foi infundida uma certeza da remissão de
todos os pecados e uma confiança de que viveria da graça. Arrebatado em êxtase
e absorvido totalmente em claridade, alargou-se a sua mente e pôde ver com
clareza os acontecimentos futuros. Quando a suavidade e a luz se afastaram,
ele, renovado no espírito, parecia transformado em um novo homem.
27.
Voltou todo alegre e disse aos irmãos: "Consolai-vos, caríssimos, e
alegrai-vos no Senhor. Não vos entristeçais por parecerdes poucos, nem vos
desanime a minha simplicidade ou a vossa, porque, como o Senhor me mostrou na
verdade, Deus nos vai fazer crescer como a maior das multidões e vai
propagar-nos até os confins da terra. Para vosso maior proveito, sou obrigado a
contar o que vi. Preferiria calar-me, se a caridade não me obrigasse a conta-lo.
Vi uma enorme multidão de homens vindo a nós e querendo viver conosco este
gênero de vida e esta Regra de santa religião. Parece-me ter ainda em meus
ouvidos o seu rumor, indo e vindo conforme a disposição da obediência. Vi o que
pareciam caminhos apinhados de gente vinda de quase de todas as nações: vêm
franceses, apressam-se espanhóis, correm alemães e ingleses e se adianta uma
multidão enorme de outras línguas diversas". Ouvindo isso, os frades se
encheram de salutar alegria, tanto pela graça que o Senhor concedera ao seu
santo como porque tinham sede ardente do bem do próximo, desejando aumentar em
número, para em Deus poderem ser salvos todos juntos.
28.
Disse-lhes o santo: "Irmãos, para agradecermos fiel e devotamente a Deus
nosso Senhor por todos os seus dons, e para que saibais o que há de ser de nós
e de nossos irmãos futuros, compreendei a verdade do que vai acontecer. No
começo desta nossa vida vamos encontrar alguns frutos doces e deliciosos.
Depois serão oferecidos outros de menor sabor e doçura. No fim, serão dados
alguns cheios de amargor, de que não poderemos viver, porque sua acidez será
intragável para todos, apesar da aparência de frutos belos e cheirosos.
Entretanto, como vos disse, o Senhor fará de nós um grande povo. Mas no fim vai
acontecer como quando um pescador lança suas redes no mar ou em algum lago e
recolhe uma grande quantidade de peixes. Despeja-os na barca, mas, não podendo
levar todos por serem demasiados, escolhe os maiores e melhores para os cestos,
jogando os outros fora".
A grande
verdade que encerram essas palavras proféticas e a exatidão com que se
cumpriram são muito claras para os que pensam com imparcialidade. Foi assim que
o espírito da profecia repousou sobre São Francisco.
CAPÍTULO 12. Envia-os, dois a dois, pelo mundo.-
Logo se reúnem de novo
29.
Por esse tempo, ingressou na Ordem um outro homem de bem, chegando a oito o
número de irmãos. Então São Francisco chamou-os todos a si e, tendo-lhes falado
muitas coisas sobre o reino de Deus, o desprezo do mundo, a abnegação da
própria vontade e a mortificação do corpo, dividiu-os dois a dois pelas quatro
partes do mundo e lhes disse: "Ide, caríssimos, dois a dois, por todas as
partes do mundo, anunciando aos homens a paz e a penitência para a remissão dos
pecados; sede pacientes na tribulação, confiando que o Senhor vai cumprir o que
propôs e prometeu. Aos que vos fizerem perguntas respondei com humildade, aos
que vos perseguirem e caluniarem agradecei, porque através disso tudo nos está
sendo preparado um reino eterno".
Recebendo o
mandato da santa obediência com gáudio e muita alegria, eles se prostraram
suplicantes diante de São Francisco. Ele os abraçava e dizia com ternura a cada
um: "Põe teus cuidados no Senhor e ele cuidará de ti". Sempre repetia
essas palavras quando transmitia alguma obediência aos irmãos.
30.
Frei Bernardo e Frei Egídio foram para São Tiago de Compostela. São Francisco e
um companheiro escolheram outra região, e os outros quatro foram dois a dois
para os lados que restaram.
Pouco
tempo depois, São Francisco desejou revê-los e orou ao Senhor, que congrega os
dispersos de Israel, que se dignasse reuni-los outra vez sem demora. E assim
sucedeu, conforme o seu desejo: bem depressa, sem que ninguém os chamasse, eles
se encontraram, dando graças a Deus.
Reunidos,
manifestaram sua grande alegria por rever o piedoso pastor e se admiraram de
terem tido todos o mesmo desejo ao mesmo tempo. Contaram depois as coisas boas
que o misericordioso Senhor lhes tinha feito e pediram correção e castigo ao
santo pai pelas negligências e ingratidões que pudessem ter cometido,
cumprindo-os diligentemente.
Era
isso que costumavam fazer todas as vezes que chegavam a ele, e não lhe
ocultavam o menor pensamento e até os impulsos das paixões. Mesmo tendo
cumprido tudo que lhes fora ordenado, ainda se achavam servos inúteis. Essa
primeira escola de São Francisco tinha tal pureza de coração que, embora
soubessem fazer coisas úteis, santas e justas, não sabiam absolutamente
vangloriar-se por causa disso. Mas o santo pai, abraçando seus filhos com muita
caridade, começou a manifestar-lhes seus projetos e o que o Senhor lhe havia
revelado.
31.
Logo se uniram a eles outros quatro homens bons e idôneos, que seguiram o santo
de Deus. Espalhou-se um grande comentário no meio do povo, e a fama do homem de
Deus começou a se estender para mais longe. São Francisco e seus irmãos tinham
naquele tempo uma imensa alegria e um prazer especial, quando alguém, quem quer
que fosse, devoto, rico, pobre, nobre, plebeu, desprezado, benquisto, prudente,
simples, clérigo ou leigo, levado pelo espírito de Deus, ia receber o hábito da
Ordem.
Os
leigos se admiravam muito de tudo isso, e o exemplo de humildade levava-os a
corrigir suas vidas e a fazer penitência pelos pecados. Sua simplicidade e a
insegurança de sua pobreza não eram obstáculo nenhum para edificarem santamente
aqueles que Deus queria edificar, pois ele gosta de estar com os desprezados do
mundo e com os simples.
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