sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Estudo 48 - História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia Livro VIII – Capítulos 01 a 9

Livro VIII
48
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro VIII – Capítulos 01 a 9
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Prólogo
Depois de haver escrito em sete livros inteiros a sucessão dos apóstolos, cremos que é um de nossos mais necessários deveres transmitir, neste oita­vo livro, para conhecimento também dos que virão depois de nós, os acon­tecimentos de nosso próprio tempo[1], pois merecem uma exposição escrita bem pensada. E nosso relato terá seu começo a partir deste ponto.

I - Da situação anterior à perseguição de nossos dias
1.     É uma tarefa gigantesca explicar como merecido quais e quão grandes foram, antes da perseguição de nosso tempo, a glória e a liberdade de que gozou entre todos os homens, gregos e bárbaros, a doutrina da piedade para com o Deus de todas as coisas, anunciada ao mundo por meio de Cristo.
2.     Ainda assim, prova disto poderia ser a acolhida dos soberanos para com os nossos[2], a quem inclusive entregavam o governo das províncias, dispensando-os da angústia de ter que sacrificar, pela muita amizade que reservavam a nossa doutrina.
3.     Que necessidade há de falar dos que estavam nos palácios imperiais e dos supremos magistrados? Estes consentiam que seus familiares - esposas, filhos e criados - agissem abertamente, com toda liberdade, com sua palavra e sua conduta, no referente à doutrina divina, quase permitindo-lhes inclu­sive gloriar-se da liberdade de sua fé. Consideravam-nos especialmente dignos de aceitação, mais ainda do que seus companheiros de serviço.
4.     Assim era o famoso Doroteo, o melhor disposto e mais fiel de todos para com eles e por isto o mais distinguido com honras, mais até do que os que ocupa­vam cargos e governos. E com ele o célebre Gorgonio e quantos foram con­siderados dignos da mesma honra que eles, por razão da palavra de Deus.
5.     Era visível também de que favor todos os procuradores e governadores jul­gavam dignos os dirigentes de cada igreja! E quem poderia descrever aquelas concentrações de milhares de homens e aquelas multidões das reuniões em cada cidade, igual às célebres concorrências aos oratórios? Por esta causa precisamente, já não contentes de modo algum com os antigos edifícios, levan­taram desde as fundações igrejas de grande amplidão por todas as cidades.
6.   Com o tempo isto avançava e cobrava cada dia maior vulto e grandeza, sem que inveja alguma o impedisse e sem que um mau demônio fosse capaz de fazê-lo malograr nem criar obstáculos com conjuros de homens, tanto a mão celestial de Deus protegia e custodiava seu próprio povo, porque em realidade o merecia.
7.             Mas desde que nossa conduta mudou, passando de uma maior liberdade ao orgulho e à negligência, e uns começaram a invejar e injuriar aos outros, faltando pouco para que fizéssemos a guerra mutuamente com as armas mesmo, e os chefes dilaceravam os chefes com as lanças das palavras, os povos se sublevavam contra os povos e uma hipocrisia e dissimulação sem nome alcançavam o mais alto grau de malícia, então o juízo de Deus, com parcimônia, como gosta de fazer, quando ainda se reuniam as assembléias, suave e moderadamente suscitava sua visita, começando a perseguição pelos irmãos que militavam no exército.
8.             E nós, como se estivéssemos insensíveis, não nos preocupamos sobre como tornar-nos benévola e propícia a divindade, mas como alguns ateus, que pensam que nossos assuntos escapam a todo cuidado e inspeção, íamos acumulando maldades sobre maldades, e os que pareciam ser nossos pasto­res rechaçavam a norma da religião, inflamando-se em mútuas rivalidades, e não faziam mais do que aumentar as rixas, as ameaças, a rivalidade e a inimizade e ódio recíprocos, reclamando encarniçadamente para si o objeto de sua ambição como se fosse o poder absoluto. Então sim, então foi quando, segundo diz Jeremias: obscureceu o Senhor em sua cólera a filha de Sion e precipitou do céu para baixo a glória de Israel, sem recordar-se do estrado de seus pés no dia de sua ira; antes, o Senhor submergiu nas profundezas todas as belezas de Israel e destruiu todas suas valas[3];
9.   E segundo o profetizado nos Salmos, destruiu o testamento de seu servo e com a ruína das igrejas profanou seu santuário, destruiu todas suas valas e plantou a covardia em suas fortalezas. E todos os caminhantes saqueavam ao passar as multidões do povo, e como se isto fosse pouco, converteu-se em ofensa para seus vizinhos. Porque exaltou a destra de seus inimigos e desviou o fio de sua espada e não o sustentou na guerra, mas até despojou-o de sua pureza, derrubou ao solo seu trono, encurtou os dias de seu tempo, e por último cobriu-o de ignomínia[4].

II - Da destruição das igrejas
1. Tudo isto se cumpriu, efetivamente, em nossos dias, quando com nossos próprios olhos vimos os oratórios inteiramente arrasados, desde o telhado até os fundamentos, e as divinas e sagradas Escrituras entregues ao fogo nas praças públicas, e os pastores das igrejas ocultando-se aqui e ali vergonho­samente, ou presos indecorosamente e escarnecidos pelos inimigos quando, segundo outro oráculo profético, lançou o desprezo sobre os príncipes e os faz andar errantes por onde não há caminho[5].
2.     Mas não é tarefa nossa descrever as tristes calamidades que estes por fim passaram, pois tampouco é nosso deixar memória de suas mútuas dissensões e de suas loucuras de antes da perseguição, pelo que decidimos também não contar sobre eles mais do que aquilo que nos permita justificar o juízo de Deus.
3.     Por conseguinte, não nos deixamos levar a fazer memória dos que foram ten­tados pela perseguição ou dos que naufragaram por completo no assunto de sua salvação e por sua própria vontade se precipitaram nos abismos das ondas, mas à história geral vamos acrescentar unicamente aquilo que possa ser de proveito primeiramente a nós mesmos e logo também a nossa posteridade. Vamos, pois; comecemos já desde este ponto a descrever em resumo os combates sagrados dos mártires da doutrina divina.
4.     Era este o ano dezenove do império de Diocleciano e o mês de Distro -entre os romanos se diria o de março[6] - quando, estando próxima a festa da Paixão do Salvador, por todas as partes estenderam-se editos imperiais mandando arrasar até o solo as igrejas e fazer desaparecer pelo fogo as Escrituras, e proclamando privados de honras[7] a aqueles que delas desfrutavam e de liberdade aos particulares se permanecessem fiéis em sua profissão de cristianismo[8].
5.     Assim foi o primeiro edito contra nós, mas não muito depois vieram-nos outros editos nos quais se ordenava: primeiro, lançar nas prisões todos os presidentes das igrejas em todo lugar, e depois, forçá-los por todos os meios a sacrificar.

III - Do modo de conduzir-se dos que combateram na perseguição
1. Então, pois, precisamente então[9], numerosos dirigentes das igrejas, lutando animosamente em meio a terríveis tormentos, ofereceram quadros de grandes combates, mas foram milhares os outros, os que de antemão embotaram suas almas com a covardia, e assim facilmente se debilitaram desde a pri­meira acometida. Dos restantes, cada um foi alternando diferentes espécies de tormentos: um tendo seu corpo lacerado por açoites; outro castigado com as torturas insuportáveis do potro e dos garfos, nas quais alguns já perderam suas vidas.
2.             E outros, por sua vez, passaram pelo combate de formas muito diversas. A um efetivamente, os demais empurravam pela força, e aproximando-se dos infames e impuros sacrifícios, deixavam-no ir como se tivesse sacrificado, ainda que não o tivesse feito. Outro, ainda que de modo algum tivesse se aproximado nem tivesse tocado nada maldito, como os demais diziam que havia tocado, retirava-se em silêncio carregado com a calúnia; outro levantavam meio morto e o lançavam como se já fosse um cadáver;
3.             e ainda houve quem, deitado ao solo, era arrastado longo trecho pelos pés e era contado entre os que haviam sacrificado. Um gritava, e a altas vozes atestava sua negativa em sacrificar, e outro vociferava que era cristão e se gloriava de confessar o nome salvador; outro sustentava firme que ele nem havia sacrificado nem sacrificaria jamais.
4.             Mesmo assim, também estes foram lançados fora à força sob repetidos golpes na boca por parte do nutrido grupo de soldados que para este fim estava ali formado, e com bofetadas no rosto e nas faces foram reduzidos ao silêncio. Tão grande era o afã que os inimigos da religião tinham de aparentar, por todos os meios, que haviam conseguido seu intento. Mas nem tais métodos serviam contra os santos mártires. Que discurso seria suficiente para uma descrição exata dos mesmos?

IV - [Dos mártires de Deus dignos de serem celebrados, como encheram cada lugar com sua memória depois de cingir-se variadas coroas em defesa da religião
1.            Efetivamente, poder-se-ia relatar que foram inumeráveis os que mostraram um zelo admirável pela religião do Deus do universo, não somente desde o momento em que estourou a perseguição contra todos, mas muito antes, quanto ainda se mantinha a paz.
2.     Porque foi muito recentemente quando o que havia recebido o poder[10], como quem se levanta de um sono profundo, empreendeu-a contra as igrejas, ainda ocultamente e não às claras, no tempo que sucedeu a Décio e Valeriano. E não atacou de um golpe com uma guerra contra nós, mas ainda provou-a somente com os que estavam nas legiões, pois deste modo pensava que capturaria mais facilmente também os demais se primeiro saísse vitorioso na luta contra aqueles. Era de se ver então o grande núme­ro de soldados abraçando contentíssimos a vida civil e evitando assim converter-se em negadores de sua religião para com o Criador de todas as coisas.
3.             Efetivamente, assim que o general do exército - quem quer que então fosse - empreendeu a perseguição contra as tropas e se deu a classificar e depurar os funcionários militares, como lhes desse a escolha entre seguir gozando a graduação que lhes correspondia, se o obedeciam, ou ver-se, pelo con­trário, privados da mesma se se opunham às suas ordens, muitíssimos solda­dos do reino de Cristo, sem vacilar, preferiram a confissão de Cristo à glória aparente e ao bem-estar que possuíam.
4.      Nesse momento era raro que um ou dois destes recebessem não somente a perda da graduação, mas também a morte em troca de sua piedosa resistência, pois então o urdidor da conspiração ainda guardava certa moderação e ousava aventurar-se somente a um ou outro derramamento de sangue, já que ainda o assustava, segundo parece, a multidão dos fiéis e ainda vacilava em desatar uma guerra contra todos de uma só vez.
5.             Mas quando se lançou ao ataque mais abertamente, impossível expressar com palavras o número e a qualidade dos mártires de Deus que aqueles que habitavam as cidades e os campos podiam contemplar.

V - Dos mártires de Nicomedia
1. Assim pois, tão prontamente como se promulgou em Nicomedia o edito contra as igrejas, um que não era personagem obscuro[11], mas dos mais preclaros, segundo a estimativa das excelências de sua vida, empurrado pelo zelo de Deus, lançou-se com fé ardente, e depois de arrancar o edito que se achava em lugar visível e público, por considerá-lo ímpio e irreligioso, rasgou-o, apesar de haver na mesma cidade dois imperadores, o mais antigo de todos e o que depois dele ocupava o quarto posto no governo[12]. Mas este foi o primeiro dos que naquela ocasião se distinguiram desta maneira, e depois de sofrer em seguida o que era de supor por tal atrevimento, conservou a calma e a tranqüilidade até seu último suspiro.

VI - Dos mártires das casas imperiais
1. Acima de todos quantos foram celebrados alguma vez como admiráveis e famosos por sua valentia, assim entre os gregos como entre os bárbaros, esta ocasião fez destacar os divinos e excelentes mártires Doroteo e os servidores imperiais que o acompanhavam. Ainda que seus amos os tenham considerado dignos da mais alta honra e no trato não os deixavam atrás de seus próprios filhos, eles julgavam, com toda verdade, maior riqueza do que a glória e o prazer desta vida as injúrias, os trabalhos e os variados gêneros de morte inventados contra eles por causa de sua religião. Somente mencionaremos o fim que teve um deles e deixaremos a nossos leitores que por ele concluam o que sucedeu aos outros.
2.            Na mencionada cidade, um deles foi conduzido publicamente ante os imperadores já indicados; ordenaram-lhe, pois, que sacrificasse, e ao opor-se, mandaram pendurá-lo desnudo e lacerar todo seu corpo a força de açoites até que, rendido, fizesse o ordenado mesmo contra a vontade.
3.            Mas como ele se mantinha inflexível mesmo depois de padecer estes tormentos, e seus ossos já apareciam à vista, misturaram vinagre com sal e o derramaram nas partes mais laceradas de seu corpo. Mas também desdenhou estas dores, e então trouxeram ao meio umas brasas e fogo, e como se faz com a carne comestível, foram consumindo no fogo o resto de seu corpo, e não todo de uma vez, para que não morresse em seguida, mas pouco a pouco. Os que o haviam posto sobre a fogueira não podiam soltá-lo até que, ainda depois de tantos padecimentos, desse sinal de aceder ao mandado.
4.            Mas ele, solidamente aferrado a seu propósito, entregou vencedora sua alma em meio aos tormentos. Tal foi o martírio de um dos servidores imperiais, digno realmente do nome que levava: chamava-se Pedro.
5.            Ainda que não tenham sido menores os tormentos dos outros[13], em consi­deração às proporções do livro os omitiremos, e unicamente mencionaremos que Doroteo e Gorgonio, juntamente com muitos outros do serviço impe­rial, depois de passar por combates de todo gênero, morreram enforcados e alcançaram o prêmio da divina vitória.
6.            Neste tempo, Antimo, que então presidia a igreja de Nicomedia, foi decapi­tado por seu testemunho de Cristo. E a ele se juntou uma multidão compacta de mártires quando nesses mesmos dias, e sem saber-se como, deflagrou-se um incêndio no palácio imperial de Nicomedia. Ao suspeitar-se falsamente e correr o boato de que havia sido provocado pelos nossos, a uma ordem imperial, os cristãos daquele lugar, em tropel e amontoadamente, uns foram degolados a espada, e outros acabaram pelo fogo. Uma tradição diz que então homens e mulheres saltavam por si mesmos ao fogo com um fervor divino inefável. Os verdugos, por sua parte, amarravam outra multidão a umas barcas e a lançavam aos abismos do mar.
7.            Quanto aos servidores imperiais, depois de sua morte haviam sido confiados à terra com as honras correspondentes, mas os que se encaram como donos fizeram-nos exumar novamente, com a opinião de que estes também deveriam ser lançados ao mar, para que não acontecesse que jazendo em sepulcros fossem adorados e os considerassem - ao menos isto pensavam eles - como deuses. Tais foram os acontecimentos do começo da perseguição em Nicomedia.
8.            Mas não muito depois, havendo alguns tentado, na região chamada Melitene, e outros inclusive na Síria, atacar o império, saiu uma ordem imperial de que em todas as partes se encarcerasse e acorrentasse os dirigentes das igrejas.
9.            E o espetáculo a que isto deu lugar ultrapassa toda narração: em todas as partes se encerrava uma multidão inumerável, e em todo lugar os cárceres, anteriormente aparelhados, desde antigamente, para homicidas e violado­res de tumbas, transbordavam agora de bispos, presbíteros, diáconos, leitores e exorcistas, até que não sobrasse lugar ali para os condenados por suas maldades.
10.     Mais ainda, ao primeiro edito seguiu-se outro[14], em que se mandava deixar irem livres os encarcerados que tivessem sacrificado e passar pela tortura os que resistissem. Como, repito, neste caso alguém poderia enumerar a multidão de mártires de cada província, sobretudo da África, Mauritânia, Tebaida e Egito? Do Egito, alguns que inclusive haviam emigrado para outras cidades e províncias sobressaíram por seus martírios.

VII - Dos mártires egípcios da Fenícia
1.           Nós conhecemos dentre eles pelo menos os que brilharam na Palestina, e inclusive conhecemos os que se sobressaíram em Tiro da Cilicia. Vendo-os, quem não ficaria pasmo com os inumeráveis açoites e a resistência com que os suportaram estes atletas da religião verdadeiramente maravilhosos? E depois dos açoites, o combate com as feras devoradoras de homens, os ataques de leopardos, de ursos de diferentes espécies, de javalis e de touros feridos com ferro em brasa: como não pasmar-se da admirável paciência daquelas nobres pessoas frente a cada uma destas feras?
2.     Também nós nos achamos presentes a estes acontecimentos e observamos como o poder divino do próprio Jesus Cristo, nosso Salvador, de quem eles davam testemunho, se fazia presente e se mostrava claramente aos mártires: as feras devoradoras de homens tardaram muito tempo a atrever-se a tocar e até a aproximar-se dos corpos dos amigos de Deus, enquanto se lançavam contra os outros que as açulavam de fora, sem dúvida; os santos atletas foram os únicos a quem de modo algum tocaram, apesar de que se achavam de pé, desnudos, e lhes faziam gestos com as mãos, provocando-as contra si mesmos (pois assim lhes mandaram que fizessem). Inclusive quando se lançavam contra eles, novamente retrocediam, como rechaçadas por uma força mais divina.
3.             O fato de prolongar-se este espetáculo longo tempo causou grande assombro entre os espectadores, ao ponto de que, ante a inação da primeira fera, soltaram uma segunda e até uma terceira contra um só e mesmo mártir.
4.      Era para ficar atônito ante a intrépida constância daqueles santos em tais circunstâncias e ante a firme e inflexível resistência de seus corpos jovens. Ali pois, verias um jovem, da idade de vinte anos incompletos, de pé, sem correntes e com as mãos estendidas em forma de cruz, que com ânimo impassível e tranqüilo se entregava com a maior calma às orações de Deus, sem mover-se nem desviar-se o mínimo do lugar onde se achava, enquanto ursos e leopardos, respirando furor e morte, quase tocavam já sua carne; mas, não sei como, por uma força inefável e divina, a ponto já de fechar suas mandíbulas, novamente saíam correndo para trás. Assim era este homem.
5.             Também poderias ter visto outros (eram cinco no total) que foram lançados a um touro bravo. Aos de fora[15] que se aproximavam este os lançava ao ar com seus cornos e os despedaçava, deixando-os meio mortos para serem retirados; já quando se lançava furioso e ameaçador somente contra os santos mártires, nem podia aproximar-se deles; ainda que desse golpes aqui e acolá com suas patas e cornos, e respirasse furor e ameaça porque o açulavam com ferro em brasa viva, a providência sagrada o arrastava para trás. Assim, como este touro não lhes fizesse o mínimo dano, soltaram contra eles outras feras.
6.             Finalmente, depois de terríveis e variadas acometidas destas, todos eles foram degolados a espada e entregues às ondas do mar em vez de à terra e aos sepulcros.



VIII - Dos mártires do Egito
1. Assim foi também a luta dos egípcios que em Tiro empreenderam publica­mente seus combates pela religião.
Mas deles se poderia admirar ainda mais os que sofreram martírio em sua pátria, onde homens, mulheres e crianças, em número incontável, desprezando o viver passageiro, suportaram pelo ensinamento de nosso Salvador diferentes gêneros de mortes: uns, depois dos garfos, dos potros, dos açoites crudelíssimos e de infinitos e variados tormentos, que fazem estremecer só de ouvi-los, foram lançados ao fogo; outros foram tragados pelo mar; outros estendiam valentemente as próprias cabeças aos que as cortam; outros inclusive morriam em meio às torturas; a outros consumiu a fome, e outros por sua vez foram crucificados, uns como é costume fazer aos malfeitores, e a outros ainda pior, pregados ao contrário, a cabeça para baixo, e deixados com vida até que morressem de fome sobre o próprio patíbulo.

IX - Dos mártires de Tebaida
1.  Mas os ultrajes e dores que suportaram os mártires de Tebaida ultrapassam toda descrição. Laceravam-lhes todo seu corpo empregando conchas em vez de garfos, até que perdessem a vida; atavam as mulheres por um pé e as suspendiam no ar com umas máquinas, com a cabeça para baixo e o corpo inteiramente desnudo e a descoberto, oferecendo a todos os obser­vadores o espetáculo mais vergonhoso, o mais cruel e mais desumano de todos.
2. Outros, por sua vez, morriam amarrados a árvores e ramos: puxando com umas máquinas juntavam os ramos mais robustos e estendiam até cada um deles as pernas dos mártires, e deixavam que os ramos voltassem a sua posição natural. Assim haviam inventado o esquartejamento instantâneo daqueles contra quem empreendiam tais coisas.
3. E tudo isto se perpetrava já não por uns poucos dias ou por uma breve temporada, mas por um longo espaço de anos inteiros, morrendo às vezes mais de dez pessoas, às vezes mais de vinte; em outras ocasiões, não menos de trinta, e alguma vez até cerca de sessenta; e ainda houve uma vez que em um só dia deu-se morte a cem homens, certamente com seus filhinhos e suas mulheres, condenados a vários e sucessivos castigos.
4. E nós mesmos, achando-nos no lugar dos fatos, vimos muitos sofrerem em massa e num só dia, uns a decapitação, e outros o suplício do fogo, até o ferro perder o fio de tanto matar e partir-se em pedaços por puro desgaste, enquanto os próprios assassinos se revezavam entre si pelo cansaço.
5. Então podíamos contemplar o ímpeto admirável e a força e fervor realmente divinos dos que creram e seguem crendo no Cristo de Deus. Efetivamente, ainda se estava ditando sentença contra os primeiros e já de outras partes saltavam para o tribunal ante o juiz outros que se confessavam cristãos, sem preocupar-se em absoluto com os terríveis e multiformes gêneros de tortura, mas sim proclamando impassíveis, com toda liberdade, a religião do Deus do universo e recebendo a suprema sentença de morte com alegria, regozijo e bom humor, ao ponto de cantar salmos, hinos e ações de graças ao Deus do universo até exalar o último alento.
6.             Admiráveis foram também estes, em verdade, mas mais admiráveis foram especialmente aqueles que, brilhando por sua riqueza e seu nome, por sua glória, sua eloqüência e filosofia, mesmo assim, tudo isto preteriram à verdadeira religião e à fé em nosso Salvador e Senhor Jesus Cristo.
7.      Assim era Filoromo, encarregado de certa magistratura importante da admi­nistração imperial de Alexandria, que por sua dignidade e cargo romanos, cada dia administrava justiça com escolta de soldados. E assim era Fileas, bispo da igreja de Tmuis, varão ilustre por seus cargos e funções públicas desempenhadas em sua pátria, não menos que por seus conhecimentos de filosofia.
8.             Estes homens, ainda que um grande número de parentes e de amigos, assim como outros magistrados ativos lhes suplicassem, e apesar de que o próprio juiz lhes exortasse a que tivessem compaixão de si mesmos e olhassem por seus filhos e mulheres, de modo algum se deixaram levar por tão fortes argumentos para escolher o amor à vida e desprezar as leis sobre a confissão e a negação de nosso Salvador, mas, resistindo a todas as ameaças e insolências do juiz com varonil e filosófica razão, mais ainda, com ânimo pleno de piedade e amor de Deus, foram ambos decapitados.



[1] Isto é, a grande perseguição, executada por Diocleciano.
[2] Por recurso retórico Eusébio exagera a boa vontade dos imperadores, esquece o que antes disse sobre Aureliano e seus predecessores. Depois da morte de Aureliano a Igreja tinha paz, mas nada mais.
[3] Lm 2:1-2.
[4] Sl 88 (89):40-46. Nos sete primeiros livros este salmo sempre prediz a destruição de Jerusalém, o juízo sobre os judeus; neste é aplicado à perseguição, juízo divino sobre os cristãos.
[5] Sl 106(107):40.
[6] Do ano de 303. A perseguição começou em 23 de fevereiro, mas o edito só foi exposto ao público no dia seguinte. Eusébio atém-se à Palestina, onde a perseguição chega em finais de março.
[7] Perda inclusive do direito de cidadania.
[8] Eusébio começa a descrever a perseguição sem dar-nos alguma razão para esta mudança na política de Diocleciano, antes tão favorável.
[9] Entre 7 de junho e 17 de novembro de 303, depois da promulgação do terceiro edito.
[10] Refere-se ao demônio, autor primeiro da perseguição.
[11] Não se conseguiu nunca identificá-lo.
[12] Augusto Diocleciano e César Galério.
[13] Os demais servidores imperiais companheiros de Pedro.
[14] São na realidade o segundo e terceiro editos, do segundo semestre de 303.
[15] Refere-se aos pagãos.

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