Biografia de Francisco de Assis
Tomás de Celano
1Celano - Capítulos 13-15
CAPÍTULO 13. Escreve a Regra quando tem apenas onze
irmãos. O Papa Inocêncio a confirma. Visão da árvore
32.
Vendo o bem-aventurado Francisco que o Senhor aumentava cada dia o seu número,
escreveu para si e para seus irmãos, presentes e futuros, com simplicidade e
com poucas palavras, uma forma e Regra de vida, sendo principalmente expressões
do santo Evangelho, pois vive-lo perfeitamente era seu único desejo.
Acrescentou contudo algumas poucas coisas, absolutamente necessárias para o
andamento da vida religiosa. Depois, foi a Roma com todos os referidos irmãos,
desejando ardentemente que o Papa Inocêncio III confirmasse o que tinha
escrito.
Achava-se
naquela ocasião em Roma o venerando bispo de Assis, Guido, que estimava muito
São Francisco e todos os seus irmãos, e os venerava com particular afeto. Vendo
ali São Francisco e seus irmãos, e desconhecendo o motivo, não gostou. Temia
que quisessem abandonar sua terra, onde o Senhor já começara a fazer coisas
extraordinárias por meio de seus servidores. Gostava muito de ter esses homens
de valor em sua diocese e esperava muito de sua vida e de seus bons costumes. Mas
quando soube a causa e compreendeu os seus propósitos, alegrou-se muito no
Senhor e lhes prometeu seu apoio e influência.
São
Francisco também se apresentou ao senhor bispo de Sabina, João de São Paulo,
que se destacava entre os outros príncipes e dignitários da Cúria Romana por
"desprezar as coisas terrenas e aspirar às celestiais" Este o recebeu
com "bondade e caridade" e elogiou bastante sua resolução e seus
projetos.
.
Entretanto, prudente e discreto, interrogou-o sobre muitos pontos e tentou persuadi-lo
a passar para a vida monástica ou eremítica. Mas São Francisco recusou com
humildade e quanto lhe foi possível esse conselho, sem desprezar os argumentos,
mas por estar piedosamente convencido de que era conduzido por um desejo mais
elevado. Admirava-se o prelado com seu fervor, e temendo que fraquejasse em tão
altos propósitos, mostrava-lhe caminhos mais fáceis. Afinal, vencido por sua
constância, anuiu a seus rogos e procurou apoiar sua causa diante do Papa.
Regia
a Igreja de Deus naquele tempo o Papa Inocêncio III, homem ilustre, muito rico
em doutrina, celebérrimo orador e muito zeloso da justiça em tudo que se
referia ao culto da fé cristã. Informado do desejo daqueles homens de Deus,
depois de refletir, aceitou o pedido e deu-lhe despacho. Tendo-lhes feito
muitas exortações e admoestações, abençoou São Francisco e seus irmãos e lhes
disse: "Ide com Deus, irmãos, e conforme o Senhor se dignar inspirar-vos,
pregai a todos a penitência. Quando o Senhor vos tiver enriquecido em número e
graça, vinde referir-me tudo com alegria, e eu vos concederei mais coisas do
que agora e, com maior segurança, vos confiarei encargos maiores".
Na
verdade, o Senhor estava com São Francisco, onde quer que ele fosse,
alegrando-o com revelações e animando-o com benefícios. Certa noite, viu-se em
sonhos andando por um caminho, ao lado do qual havia uma árvore de grande
porte. A árvore era bela e forte, grossa e muito alta. E aconteceu que, estando
a admirar sua beleza e altura, o próprio santo tornou-se de repente tão alto
que tocava o cimo da árvore e com suas mãos conseguia vergá-la facilmente até o
chão. De fato, foi o que aconteceu quando Inocêncio III, a árvore mais alta e
mais respeitável do mundo, se inclinou com tanta benignidade ao pedido e à
vontade de Francisco.
CAPÍTULO 14. Volta de Roma para o vale de Espoleto. -
Uma pausa no caminho
34.
Muito contentes com a bondade e generosidade do grande pai e senhor, Francisco
e seus irmãos deram graças a Deus todopoderoso, que exalta os humildes e
conforta os aflitos. Foram logo visitar o túmulo de São Pedro e, terminada a
oração, saíram de Roma e tomaram o caminho do vale de Espoleto.
Durante
a viagem, conversavam sobre tantos e tão grandes dons de Deus clementíssimo:
como tinham sido cordialmente recebidos pelo vigário de Cristo, senhor e pai de
todo o povo cristão; como poderiam pôr em prática suas admoestações e
preceitos; como poderiam observar com sinceridade e guardar com firmeza a Regra
que tinham recebido; como fariam para viver diante de Deus com toda santidade e
religiosidade; como, finalmente, sua vida e costumes, pelo crescimento das
virtudes, poderiam servir de exemplo para os outros.
Mas,
enquanto os novos discípulos de Cristo discutiam bastante sobre esses assuntos,
como numa escola de humildade, o dia se adiantou e a hora passou. Chegaram a um
lugar solitário, muito cansados, e, com fome, não conseguiram nada para comer,
porque estavam longe de qualquer povoação. Subitamente, porém, por graça de
Deus, encontraram um homem com um pão. Deu-lho e se foi. Como não o conheciam,
ficaram profundamente admirados. Cheios de devoção, exortavam-se mutuamente a
ter maior confiança na misericórdia de Deus.
Reconfortados
pelo alimento, chegaram a um lugar perto de Orte, e ali ficaram quase quinze
dias. Para terem o que comer, alguns deles iam à cidade e levavam aos outros o
pouco que podiam recolher, mendigando de porta em porta. Comiam juntos, cheios
de alegria e dando graças. Se sobrava alguma coisa, não tendo ninguém a quem
dar, guardavam-na em um sepulcro que já servira para guardar corpos de mortos,
para comê-la depois. O lugar era deserto e abandonado e pouca gente, ou
ninguém, passava por ali.
35.
Grande era seu regozijo por nada verem, nem possuírem que os pudesse prender às
coisas vãs e agradáveis aos sentidos. Por isso iniciaram aí sua aliança com a
santa pobreza e, extraordinariamente consolados pela falta de todas as coisas
que são do mundo, decidiram permanecer sempre unidos a ela, como estavam ali.
Pondo de lado toda solicitude pelos bens terrenos, só lhes interessava a
consolação de Deus. Por isso resolveram com firmeza não se apartar dos braços
da pobreza por maiores que fossem as tribulações e tentações.
Embora
a amenidade daquele lugar, que bem lhes poderia debilitar o vigor do espírito,
não os estivesse prendendo, eles o abandonaram para que uma permanência mais
longa não tivesse nem exteriormente alguma aparência de posse, e, seguindo o
feliz pai, entraram no vale de Espoleto.
Fiéis cultores
da justiça, discutiam também se deveriam permanecer entre os homens ou
retirar-se para lugares desertos. Mas São Francisco, que não confiava em sua
sabedoria mas prevenia tudo com a santa oração, preferiu não viver apenas para
si mesmo, mas para aquele que morreu por todos, convencido de que tinha sido
mandado para conquistar para Deus as almas que o demônio se empenhava em
arrebatar.
CAPÍTULO 15. Fama de São Francisco. Conversão de
muitos. Como a Ordem se chamou dos Frades Menores. Instruções de São Francisco
aos que entram na Ordem
36.
Valoroso soldado de Cristo, Francisco percorria as cidades e povoados
anunciando o reino de Deus, proclamando a paz, pregando a salvação e a
penitência para a remissão dos pecados, sem usar os argumentos da sabedoria
humana, mas a doutrina e a força do Espírito.
Apoiado
na autorização apostólica que lhe tinha sido concedida, agia em tudo
destemidamente, sem adular nem tentar seduzir ninguém com moleza. Não sabia
lisonjear as culpas de ninguém, mas pungi-las. Não tentava desculpar a vida dos
pecadores, mas atacava-os com áspera reprimenda, tanto mais que tinha posto
primeiro em prática as coisas que estava dizendo aos outros. Sem medo de que o
repreendessem, anunciava a verdade destemidamente, de maneira que até os homens
mais letrados, que gozavam de renome e dignidade, admiravam seus sermões e em
sua presença sentiam-se possuídos de temor salutar. Acorriam homens e mulheres,
clérigos e religiosos, para verem e ouvirem o santo de Deus, que a todos
parecia um homem de outro mundo.
Sem distinção
de idade ou sexo, corriam todos assistir as maravilhas que Deus estavam
realizando outra vez por seu servo neste mundo. Na verdade, parecia que,
naquele tempo, tanto pela presença como pela simples fama de São Francisco,
tivesse sido enviada uma luz nova do céu para a terra, espantando toda
escuridão das trevas, que a tal ponto tinha ocupado quase toda a região, que
mal dava para alguém saber onde se estava indo. Tão profundos eram em quase
todos o esquecimento de Deus e a negligência na observância de seus
mandamentos, que quase não se conseguia afastar alguém de seus inveterados
vícios.
37.
Brilhava como uma estrela fulgente na escuridão da noite e como a aurora que se
estende sobre as trevas. Dessa maneira, dentro de pouco tempo, tinha sido
completamente mudada a aparência da região, que parecia por toda parte mais
alegre, livre da antiga fealdade. Acabara a prolongada seca e brotara a messe
no campo áspero. Até a vinha descuidada se cobriu de brotos que espalhavam o
perfume do Senhor e, dando flores de suavidade, carregou-se de frutos de honra
e honestidade. Ressoavam por toda parte a ação de graças e o louvor, e por isso
foram muitos os que quiseram deixar os cuidados mundanos para chegar ao
conhecimento de si mesmos na vida e na escola do santo pai Francisco,
caminhando para o amor de Deus e o seu culto.
Começaram
a vir a São Francisco muitas pessoas do povo, nobres e plebeus, clérigos e
leigos, querendo por inspiração de Deus militar para sempre sob sua orientação
e magistério. O santo de Deus, como um rio caudaloso de graça celeste,
derramando a chuva dos carismas, enriquecia o campo de seus corações com as
flores das virtudes. Pois era um artista consumado que apresentava o exemplo, a
Regra e os ensinamentos de acordo com os quais, tanto nos homens como nas
mulheres, a Igreja de Cristo rejuvenescia e triunfava o tríplice exército dos
predestinados. A todos propunha uma norma de vida e demonstrava com garantias o
caminho da salvação em todos os graus.
38.Mas
o nosso principal assunto agora é a Ordem, que assumiu e sustentou tanto por
seu amor como por sua profissão. Que diremos? Foi ele mesmo quem fundou a Ordem
dos Frades Menores e assim lhe deu o nome: quando estavam escrevendo na Regra:
"e sejam menores", ao ouvir essas palavras disse: "Quero que
esta fraternidade seja chamada Ordem dos Frades Menores".
De
fato, eram menores, porque eram "submissos a todos", sempre
procuravam o pior lugar e queriam exercer o ofício em que pudesse haver alguma
desonra, para merecerem ser colocados sobre a base sólida da humildade
verdadeira e neles pudesse crescer auspiciosamente a construção espiritual de
todas as virtudes.
Em
verdade, sobre o fundamento da constância levantou-se a nobre construção da
caridade, na qual as pedras vivas, recolhidas em todas as partes do mundo,
tornaram-se templo do Espírito Santo. Que caridade enorme abrasava os novos
discípulos de Cristo! Quão forte era o laço que os unia no amor do piedoso
grupo! Quando se reuniam em algum lugar, ou quando se encontravam em viagem,
reacendia-se o fogo do amor espiritual, espargindo suas sementes de amizade
verdadeira sobre todo o amor. E como? Com castos abraços, com terno afeto, com
ósculos santos, uma conversa amiga, sorrisos modestos, semblante alegre, olhar
simples, ânimo suplicante, língua moderada, respostas afáveis, o mesmo desejo,
pronto obséquio e disponibilidade incansável.
39.
O fato é que, tendo desprezado todas as coisas terrenas e estando livres do
amor-próprio, consagravam todo o seu afeto aos irmãos, oferecendo-se todos para
atender às necessidades fraternas. Reuniam-se com prazer e gostavam de estar
juntos: para eles era pesado estarem separados, o afastamento era amargo e
partir era doloroso.
Nada
ousavam esses obedientíssimos soldados de Cristo antepor aos preceitos da
obediência. Antes de acabarem de receber uma ordem, já se preparavam para
cumprí-la. Como não sabiam fazer distinções de preceitos, precipitavam-se a
executar tudo que lhes era mandado, sem fazer reparos.
"Seguidores
da santíssima pobreza" porque não tinham nada, nada desejavam, e por isso
não tinham medo de perder coisa alguma. Estavam contentes com uma única túnica,
remendada às vezes por dentro e por fora: não lhes servia de enfeite mas de
desprezo e pobreza, para poderem mostrar claramente que nela estavam
crucificados para o mundo. Cingiam-se com uma corda e usavam calças de pano
rude, fazendo o piedoso propósito de ficar simplesmente assim, sem ter mais
nada.
Naturalmente
estavam seguros em qualquer lugar, sem nenhum temor, cuidado ou preocupação
pelo dia seguinte, nem se incomodavam com o abrigo que teriam à noite, mesmo
nas grandes dificuldades, freqüentes nas viagens. Pois, como muitas vezes nem
tinham onde se abrigar do frio mais rigoroso, recolhiam-se a um forno ou se
escondiam humildemente, à noite, em grutas ou cavernas.
Durante
o dia, os que sabiam trabalhavam com as próprias mãos, permanecendo nas casas
dos leprosos ou outros lugares de respeito, servindo a todos com humildade e
devoção. Não queriam exercer ofício algum que pudesse causar escândalo, mas,
fazendo sempre coisas santas e justas, honestas e úteis, davam exemplo de
humildade e de paciência a todos.
40.
Tinham adquirido tanta paciência que preferiam estar nos lugares onde os
perseguiam e não onde sua santidade fosse conhecida e louvada, e assim pudessem
conseguir os favores do mundo. Foram muitas vezes cobertos de opróbrios e de
ofensas, despidos, açoitados, amarrados, encarcerados, sem recorrer à proteção
de ninguém, e suportavam tudo varonilmente, vindo à sua boca apenas a voz do
louvor e da ação de graças.
Poucas
vezes, ou nunca, deixavam de louvar a Deus ou de rezar, mas estavam sempre
lembrando uns aos outros tudo que tinham feito, agradecendo a Deus pelas coisas
boas, gemendo e chorando pelas negligências e descuidos. Julgavam-se
abandonados por Deus se não fossem por Ele visitados com a piedade habitual no
espírito da devoção. Para não dormirem quando queriam rezar, usavam algum
expediente: uns se agarravam a cordas suspensas para que a chegada do sono não
perturbasse a oração, outros se cingiam com cilícios de ferro e ainda outros
rodeavam a cintura com instrumentos de madeira. Se alguma vez a abundância de
comida ou de bebida, como pode acontecer, perturbava sua sobriedade, ou pelo
cansaço do caminho passavam além da necessidade absoluta, mortificavam-se com
uma abstinência de muitos dias. Afinal, punham tanto esforço em reprimir as
tentações da carne, que muitas vezes não se horrorizavam de despir-se no gelo
mais frio, nem de molhar o corpo todo com o sangue derramado por duros
espinhos.
41.
Desprezavam tão fortemente todas as coisas terrenas que mal se permitiam
receber o que era extremamente necessário para a vida, e estavam tão
acostumados a passar sem as consolações do corpo, que não os assustavam os
maiores sacrifícios.
Em
tudo isso guardavam a paz e a mansidão com todas as pessoas. Fazendo sempre
coisas puras e pacíficas, evitavam cuidadosamente todo escândalo. Apenas
falavam quando era necessário e de sua boca nunca saía nada de inconveniente ou
ocioso: em sua vida e procedimento não se podia descobrir nada de lascivo ou
desonesto.
1. O
que te chamou mais atenção neste texto?
2. Como
ele contribuiu para sua espiritualidade cristã?