LlVRO X
52
História
Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro X
– Capítulos 01 a 04
I. Da paz que Deus nos outorgou
1.
Em todas as
coisas se dêem graças a Deus Todo-poderoso e rei do universo e também mui numerosas ao Salvador e Redentor de
nossas almas, Jesus Cristo, por meio do qual estamos continuamente suplicando
que nos conserve segura e firme a paz, ao abrigo tanto das perturbações de
fora como das da mente.
2.
E ao
acrescentar aqui este livro décimo da História Eclesiástica aos que já seguiram adiante, junto com as súplicas, vamos
dedicá-lo a ti, Paulino, altamente sacro para mim, invocando-te
como selo que sanciona a obra toda.
3.
É natural
que, sendo um número perfeito, insiramos aqui o discurso perfeito e panegírico da restauração das igrejas, obedecendo ao
Espírito divino, que exorta da seguinte maneira: Cantai ao Senhor um cântico
novo, porque fez maravilhas. Salvou-o sua destra e seu
santo braço. O Senhor deu a conhecer sua
salvação; diante das nações revelou sua justiça[1].
4.
E, em
verdade, respondendo ao oráculo que o ordenou, cantemos agora o cântico novo por meio deste livro, porque, efetivamente, depois daqueles
espetáculos e relatos sombrios e espantosos, fomos agora considerados dignos de
contemplar tais maravilhas e de celebrar grandes solenidades, como muitos de nossos antepassados, realmente
justos e mártires de Deus, desejaram ver sobre a terra, e não viram; ouvir, e
não ouviram[2].
5.
Mas eles,
apressando-se com toda rapidez, alcançaram bens muito melhores, arrebatados até os próprios céus e ao paraíso das
divinas delícias. Nós, por outro lado, ainda que confessando
que os bens presentes são maiores do que
merecemos, estamos demasiado estupefatos pela graça e magnificência de
seu autor, e o admiramos com toda a força da alma, como é justo, venerando e atestando a verdade das predições da
Escritura, na qual é dito:
6.
Vinde e vede as obras do Senhor, os
prodígios que fez sobre a terra eliminando
guerras até os confins da terra. Quebrará o arco e romperá a arma, e queimará o escudo no fogo[3]. Regozijando-nos nestas maravilhas, claramente realizadas para nosso bem, continuemos nosso relato.
7.
Havia
desaparecido, da maneira que dissemos, toda a raça dos odiadores de Deus e repentinamente havia-se apagado da vista dos homens, tanto que uma vez mais tinha cumprimento a palavra divina
que diz: Vi um ímpio prepotente a expandir-se como o cedro do
Líbano. Passei, e eis que desaparecera; procurei-o, e já não foi encontrado[4].
8. Mas daí em diante, um dia esplendoroso e radiante, sem que nuvem alguma
lhe fizesse sombra, ia iluminando com seus raios de luz celestial as igrejas de Cristo por todo o universo, e nem sequer aos de
fora de nossa confraria nenhuma inveja impedia de participar, se
não dos mesmos bens, pelo menos da irradiação e
comunicação dos que nos foram outorgados por parte de Deus.
II. Da
restauração das igrejas
1.
Assim pois,
todos os homens viram-se livres da opressão dos tiranos, e uma vez afastados dos primeiros males, uns de uma maneira
e outros de outra, iam confessando como único Deus
verdadeiro ao que havia combatido em defesa dos homens
piedosos. Mas sobretudo nós, os que havíamos posto nossas esperanças no Cristo
de Deus, transbordávamos de um prazer indizível,
e para todos florescia uma alegria divina em todos os lugares que pouco antes se achavam em ruínas pela impiedade
dos tiranos, como se os víssemos
reviver depois de uma longa e mortífera devastação. E os templos surgiam
novamente desde os fundamentos até uma altura imprevista, e recebiam uma beleza muito superior à dos que antes
tinham sido destruídos.
2. Mas há ainda mais: os supremos imperadores, com suas
contínuas legislações em favor dos cristãos, vinham a
confirmar, ampliando-as e aumentando-as, as mercês da munificência de Deus.
Também aos bispos repetiam-se cartas pessoais do imperador,
honras e doações em dinheiro. Não será fora de lugar inserir a seu devido tempo no presente livro, como numa esteia
sagrada, seus textos traduzidos do
latim para o grego, com o fim de que se conservem na memória de toda
nossa posteridade.
III. Das
dedicações em todo lugar
1.
Além disto,
oferecia-se o espetáculo tão desejado e esperado por todos nós: festas de dedicação em cada cidade, consagrações dos oratórios recém-construídos, concentrações de bispos para o
mesmo, afluência de gente de terras longínquas. Disposições amistosas dos povos
entre si e reunião dos membros do
Corpo de Cristo[5] em
convergência para uma única harmonia.
2.
Quer dizer,
conforme a predição profética que misteriosamente indicava de antemão o porvir, juntava-se osso com osso, ligamento
com ligamento, e ocorria assim, sem engano, tudo o que a
palavra oracular anunciava mediante enigmas[6].
3.
Através de
todos os membros corria um único poder do Espírito divino, e uma só era a alma de todos[7],
e uma mesma a paixão pela fé. E um era o hino
de proclamação de Deus que brotava de todos. Sim, também havia cerimônias perfeitas dos dirigentes, funções
litúrgicas dos sacerdotes e ritos da
Igreja dignos de Deus: aqui com salmodias e demais recitações dos textos que nos foram transmitidos da parte de Deus, e ali
realizando serviços divinos e místicos. E também havia os
símbolos inefáveis da paixão salvadora.
4. De uma vez, gente de todas as idades, rapazes e moças[8],
com toda a força de seu pensamento e com a mente e a alma em gozo, honravam a
Deus, autor de todos os bens, com orações e ação de graças.
E todos os dirigentes presentes pronunciavam discursos
panegíricos, cada um segundo suas faculdades, entusiasmando a assembléia.
IV. Panegírico ante o
esplendor de nossos assuntos
1. E saiu ao meio um homem, um dos moderadamente dotados, que tinha composto um discurso[9].
Numa igreja abarrotada, e estando presentes muitos pastores que escutavam em silêncio e ordem, pronunciou
o seguinte discurso, dirigindo-se pessoalmente a um só bispo[10],
amigo de Deus e o melhor de todos, por cuja solicitude e zelo
havia-se erigido em Tiro o mais notável
templo da Fenícia e arredores.
templo da Fenícia e arredores.
Panegírico sobre a edificação
das igrejas, dirigido a Paulino, bispo de Tiro.
2.
"Amigos de Deus e sacerdotes
revestidos com a santa túnica talar, com a celestial
coroa da glória, com o crisma divino e com a vestimenta sacerdotal do
Espírito Santo. E tu, jovem orgulho do santo templo de Deus, que, ainda que honrado por Deus com uma sabedoria de
ancião, tens demonstrado, mesmo assim, magníficas obras e ações próprias
de uma virtude jovem e em pleno vigor; tu, a
quem o próprio Deus, que abarca todo o mundo, outorgou como privilégio
especial edificar sua casa sobre a terra e restaurá-la para Cristo, seu Verbo unigênito e primogênito, e para
sua santa e divina esposa.
3.
Um queria chamar-te o novo Beseleel[11],
arquiteto de um tabernáculo divino[12];
ou então Salomão, rei de uma Jerusalém nova e muito melhor, ou então, até mesmo novo Zorobabel que circunda o
templo de Deus com uma glória muito melhor do que a primeira.
4.
Mas também vós, rebentos do sagrado
rebanho de Cristo, lugar de boas doutrinas,
escola de temperança e auditório de piedade, venerável e amado de Deus.
5.
Antes, quando conhecíamos os
extraordinários milagres e os admiráveis benefícios
do Senhor em favor dos homens apenas de ouvir, escutando as leituras sagradas, assim educados, era-nos
possível dirigir hinos e cânticos ao
Senhor e dizer: Oh Deus, com nossos ouvidos ouvimos! Nossos pais nos anunciaram a obra que tu realizaste em seus dias,
nos dias antigos[13].
6.
Mas agora que
já não conhecemos de ouvido nem por rumor de palavras o longo braço[14]
e a destra celestial de nosso Deus, todo bondade e universal, mas, por assim dizer, nas obras e com nossos próprios
olhos comprovamos que são fiéis e verdadeiras as
maravilhas antigamente confiadas à memória, podemos
entoar um segundo hino de vitória e alçar claramente nossas vozes dizendo: Como tínhamos ouvido dizer, assim o vimos
na cidade do Senhor dos exércitos, na cidade de nosso
Deus[15].
7. Mas, em que cidade senão nesta, recém-fundada e
edificada por Deus? Esta, que é Igreja do Deus vivo, coluna e sólido
baluarte da verdade[16], acerca
da qual outro oráculo divino já
anunciava esta boa nova: Gloriosas coisas se têm dito de ti, cidade de Deus[17]. Posto que é nela onde o Deus santíssimo nos congregou pela graça de seu Unigênito, cada um dos
convidados entoe hinos, e ainda a gritos diga: Alegrei-me
quando me disseram: vamos à casa do
Senhor[18]. E também: Senhor, eu amo a habitação de tua casa e o
lugar em que tua glória acampa[19].
8. E
não somente um a um, mas também todos de uma só vez: com um só espírito e uma só alma, honremo-lo bendizendo-o
assim, Grande é o Senhor e
digníssimo de louvor na cidade de nosso Deus, em seu santo monte![20]
Porque grande é, na
verdade, grande é sua casa, alta e espaçosa, e fresca e formosa mais do que os filhos dos homens[21]. Grande é o Senhor, o único
que faz maravilhas[22]; grande o que faz grandes obras e insondáveis, gloriosas, descomunais, inumeráveis[23]; grande o que muda as estações e os tempos, o que depõe os reis e os estabelece[24], Ele que levanta da terra o pobre e alça do esterco o indigente[25]; derrubou poderosos de seus tronos e levantou da terra os humildes; encheu de bens os famintos[26], e quebrou os braços dos soberbos[27],
que faz maravilhas[22]; grande o que faz grandes obras e insondáveis, gloriosas, descomunais, inumeráveis[23]; grande o que muda as estações e os tempos, o que depõe os reis e os estabelece[24], Ele que levanta da terra o pobre e alça do esterco o indigente[25]; derrubou poderosos de seus tronos e levantou da terra os humildes; encheu de bens os famintos[26], e quebrou os braços dos soberbos[27],
9. confirmada assim, como digna de fé, a memória dos antigos relatos, e não
somente para os fiéis, mas também para os infiéis, ele, o taumaturgo, executor
de grandes obras, dono do universo, construtor de todo o mundo, todo-poderoso,
bondade suprema, o um e único Deus! Cantemos a ele um cântico novo[28],
respondendo interiormente ao que é único a fazer maravilhas, porque sua
misericórdia é eterna; ao que feriu grandes reis e matou reis poderosos, porque
sua misericórdia é eterna, porque em nossa humilhação lembrou-se de nós e nos
livrou de nossos inimigos.
10.
Tomara nunca cessemos de aclamar
com estes termos o Pai do universo! E quanto ao que é causa segunda de nossos
bens, o introdutor do conhecimento de Deus, o mestre da verdadeira piedade, o
destruidor dos ímpios e restaurador da vida, Jesus, salvador dos que estávamos
desesperados, tomemos seu nome em nossas bocas e honremo-lo!
11. Porque somente Ele, como Filho que é absolutamente único e santíssimo de
um Pai santíssimo, por vontade do amor paterno aos homens, vestiu
prazerosamente nossa natureza de homens, que jazíamos em profunda corrupção, e
como médico excelentíssimo, por causa da salvação dos enfermos, "vê coisas
terríveis e toca chagas repugnantes, e nas calamidades alheias colhe
sofrimentos próprios", pois não somente nos salvou estando enfermos ou
agoniados com terríveis chagas e feridas já putrefatas, mas inclusive aos que
jazíamos entre os mortos Ele mesmo nos arrancou para si dos próprios abismos da
morte, porque nenhum outro dos que estão no céu possui tanta força como para
colocar-se ao serviço da salvação de tantos sem desprezo próprio.
12. Assim pois, somente Ele tocou nossa
própria e gravíssima corrupção, somente Ele suportou nossos trabalhos, somente
Ele tomou para si as penas de nossas iniqüidades[29].
E não nos levantou quando estávamos meio mortos, mas já completamente
corrompidos e hediondos em tumbas e sepulcros. Assim antes como agora, com sua
amorosa solicitude pelos homens, contra a esperança de todo o mundo e,
portanto, da nossa, segue salvando-nos e fazendo-nos
partícipes da abundância de bens do Pai, Ele, o vivificador, o que
trouxe a luz, nosso grande médico, rei e Senhor, o Cristo de Deus.
13. Mas então, vendo todo o gênero humano afundado em noite escura e em profundas trevas, por serem pervertidos por
funestos demônios e pela ação dos espíritos inimigos de Deus, apareceu
uma vez por todas e desatou as muitas e
firmes amarras de nossas iniqüidades como se derrete a cera com os raios
de sua luz[30].
14. Mas agora, ante tamanha graça e tão grande benefício,
explodiu, por assim dizer, a inveja do demônio, odiento do bem e amigo do mal,
que mobilizou contra nós todas suas hostes mortíferas. Primeiro, como cão
raivoso que quebra seus dentes contra as
pedras que lhe lançam e descarrega sua fúria, dirigida aos que o
rechaçam, contra uns projéteis sem alma, dirigiu sua loucura selvagem contra as
pedras dos oratórios e contra os materiais inanimados
das casas, para fazer das igrejas - assim pelo menos acreditava para si - um
deserto; depois, deixou escapar seus terríveis assobios e gritos de
serpente, com ameaças de ímpios tiranos, ou com editos blasfemos de iníquos governantes, e finalmente, vomitou a
morte, que é sua, e envenenou com
peçonhas deletérias e mortais as almas por ele aprisionadas, e esteve a ponto de fazê-las morrer com sacrifícios mortíferos
a ídolos mortos e atiçou contra nós
toda a fera de forma humana e as bestas selvagens de toda espécie.
15. Mas novamente o anjo do grande conselho, o grande
general do exército de Deus[31],
depois do suficiente treinamento que demonstraram os maiores soldados de seu reino com sua paciência e sua constância em todos os tormentos, de novo surgiu assim, de repente, e
varreu adversários e inimigos e reduziu-os a nada, até que parecesse que
jamais tiveram nome, e, por outro lado, fez
seus amigos e familiares avançarem além da glória diante de tudo, não somente dos homens, mas também dos
exércitos celestes, do sol, da lua e das estrelas, do céu inteiro e do
mundo.
16. De tal maneira
que - coisa que nunca havia acontecido - os mais altos imperadores[32],
conscientes da honra que d'Ele obtiveram, cuspiram no rosto dos ídolos
mortos, pisotearam as criminosas cerimônias dos demônios e zombavam do antigo engano transmitido pelos seus
antecessores; e ainda, reconheciam que há um só Deus, único e ele mesmo,
benfeitor comum de
todos e deles próprios, e confessavam a Cristo como Filho de Deus, rei supremo de tudo; em esteias proclamavam-no salvador e, para memória imorredoura, fizeram também gravar com caracteres imperiais no meio da cidade que impera sobre as outras[33] da terra suas felizes empresas e suas vitórias contra os ímpios, de maneira que Jesus Cristo, nossos salvador, é o único dos que existiram desde os séculos a quem os próprios hierarcas da terra reconheceram, não mais como um rei comum saído dentre os homens, mas como verdadeiro Filho do Deus do universo, como a Deus o adoram.
todos e deles próprios, e confessavam a Cristo como Filho de Deus, rei supremo de tudo; em esteias proclamavam-no salvador e, para memória imorredoura, fizeram também gravar com caracteres imperiais no meio da cidade que impera sobre as outras[33] da terra suas felizes empresas e suas vitórias contra os ímpios, de maneira que Jesus Cristo, nossos salvador, é o único dos que existiram desde os séculos a quem os próprios hierarcas da terra reconheceram, não mais como um rei comum saído dentre os homens, mas como verdadeiro Filho do Deus do universo, como a Deus o adoram.
17. E com razão! Pois, que rei alguma vez alcançou tal
grau de virtude que com seu nome preenchesse o ouvido e a língua de todos os homens
da terra? Que rei estabeleceu leis tão
piedosas e tão prudentes e teve também força bastante para fazê-las chegar aos ouvidos de todos os homens, desde o
confim do mundo até o limite da terra habitada?
18. Quem aboliu os bárbaros e selvagens costumes de povos selvagens com suas leis suaves e de amorosa humanidade? E quem,
tendo sido combatido por todos durante séculos inteiros, demonstrou um
vigor sobre-humano, tanto que a cada dia florescia e rejuvenescia durante toda
sua vida?
19. E quem fundou um povo do qual nunca em todos os
séculos se ouvira falar, e não o ocultou em qualquer rincão da terra, mas
estabeleceu-o por todo lugar sob o sol?
Quem protegeu seus soldados com armas de piedade, de tal maneira que suas almas nos combates contra os
adversários pareciam mais fortes do que o diamante?
20. E que rei é tão poderoso e dirige uma campanha depois
de morto? Levanta troféus vitoriosos contra os inimigos, e
preenche todo lugar, região e cidade, grega ou bárbara, com
dedicações de suas régias moradas e de templos divinos, como esses belíssimos
ornamentos e oferendas que vemos neste templo?
Porque também estes próprios objetos são realmente veneráveis e grandes,
dignos de admiração e estupor, como provas claras que são da realeza de nosso Salvador. Porque também agora
Ele falou, e as coisas se fizeram;
Ele o mandou, e foram criadas[34] (e, quem resistiria à autoridade do rei e chefe universal, do próprio Verbo de
Deus?). Isto, para uma consideração e uma interpretação exatas,
necessitaria espaço e discurso próprios.
21. Em
realidade, a quantidade e a qualidade do zelo dos que trabalharam não é
julgada tão importante por aquele que chamamos Deus e que está contemplando o templo vivo que sois vós e vela pela
casa de pedras vivas[35]
e bem montadas, e assentada
com toda segurança sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, cuja pedra angular é Jesus
Cristo[36], a quem rechaçaram, não somente os construtores daquela antiga edificação que já não
existe, mas também os da edificação de muitos homens subsistente até
hoje, por serem maus arquitetos de más obras. Mas o Pai a provou, e tanto então
como agora a estabeleceu como cabeça de
ângulo desta nossa Igreja comum.
22. Em conseqüência, se alguém pensa a respeito, quem poderia atrever-se a descrever este templo vivo do Deus vivo?[37],
cujo material de construção sois vós
mesmos? Refiro-me ao maior santuário e o mais digno de Deus por toda a
verdade da palavra, cujo interior mais profundo é inacessível e invisível para o vulgo, porque realmente é santo,
e santo dos santos. E quem será capaz mesmo de abaixar-se para olhar
dentro do recinto sagrado, se não
unicamente o grande pontífice de todos?, o único a quem é permitido esquadrinhar
os mistérios de toda alma racional?
23. Mas talvez também seja possível a outro ser o segundo, depois d'Ele, um apenas, único entre os iguais: o que foi
estabelecido chefe do exército aqui presente,
a quem o primeiro e grande pontífice em pessoa, depois de honrá-lo com o
segundo lugar dos ministérios sagrados daqui, instituiu como pastor de
vosso divino rebanho, e a quem coube pela sorte vosso povo por escolha e por juízo do Pai, que assim o constituía
seu servidor e intérprete, novo
Aarão e novo Melquisedeque feito semelhante ao filho de Deus, que permanece e que Deus conserva continuamente pelas
orações conjuntas de todos nós[38].
24. A este pois, e a ele somente, depois do primeiro e sumo
pontífice, é permitido, se não no primeiro posto, mas ao menos
no segundo, ver e inspecionar os mais recônditos
aspectos de vossas almas. Por sua experiência de longos anos, conhece-vos a cada um com exatidão; e por sua diligência e cuidado
vos tem a todos bem-dispostos na
ordem e na doutrina da piedade, e mais do
que todos os outros é capaz de explicar com razões que rivalizam com as obras
tudo o que ele mesmo levou a cabo com ajuda do poder divino.
25. Pois
bem, nosso primeiro e sumo pontífice diz: tudo o que vê o Pai fazer, o Filho também o faz[39]. E assim também este[40],
como se com os puros olhos de sua mente contemplasse o primeiro mestre,
quantas coisas o vê fazer também realiza, e valendo-se delas como exemplos e
arquétipos, tenta modelar suas imagens com a maior semelhança que lhe é
possível, nada
devendo àquele Beseleel a quem Deus mesmo havia preenchido com o espírito de sabedoria, de inteligência e de outros conhecimentos técnicos e científicos, chamando-o para ser artífice da construção do templo dos tipos celestes por meio de símbolos[41].
devendo àquele Beseleel a quem Deus mesmo havia preenchido com o espírito de sabedoria, de inteligência e de outros conhecimentos técnicos e científicos, chamando-o para ser artífice da construção do templo dos tipos celestes por meio de símbolos[41].
26. De igual maneira este homem, levando impresso em sua
alma o Cristo inteiro, o Verbo, a Sabedoria e a Luz, nos é
possível dizer com que grandeza de sentimentos,
com que mão liberal e insaciável de previsão e com que emulação de todos vós - pois vos traria grande orgulho a magnanimidade de vossas contribuições, não ficando de modo algum atrás
dele em seu próprio propósito - construiu este magnífico templo do Altíssimo,
semelhante por sua natureza ao modelo
melhor, quanto pode o visível sê-lo do invisível[42].
E este lugar - que também merece ser mencionado como o primeiro de todos -, ainda que por obra dos inimigos se achasse
sepultado sob montes de todo tipo de
imundícies, ele não o desdenhou nem cedeu à maldade dos culpados, apesar de ser-lhe possível ir a outro lugar -
havia milhares deles pela cidade - onde acharia facilidade para o
trabalho e estaria longe de problemas.
27. Ele mesmo foi o primeiro que se animou à tarefa. Logo,
infundindo força com seu entusiasmo a todo o povo e formando
com todos como uma grande e única mão, travou este primeiro
combate. Ele pensava que exatamente esta igreja que havia sido destruída pelos
inimigos, que havia penado a primeira e
havia sofrido as mesmas perseguições que nós e inclusive antes de nós,
que como uma mãe havia sido privada de seus filhos, esta igreja sobretudo tinha
que participar também no gozo do magnífico presente do Deus santíssimo.
28. Efetivamente, o grande pastor, depois de espantar as
feras, os lobos e todo tipo de bestas cruéis e selvagens, e depois de quebrar os
dentes dos leões, como dizem as divinas Escrituras[43],
novamente julgou conveniente juntar no
mesmo lugar seus filhos, e com perfeitíssimo direito levantou o aprisco de seu rebanho para envergonhar o inimigo e o
rebelde[44], e
para oferecer uma refutação da audácia dos ímpios em sua luta contra Deus.
29. E agora aqueles homens odientos de Deus já não
existem, porque tampouco existiam[45].
Depois de haver causado e de haver sofrido por sua vez perturbações por breve tempo, e depois de suportar um castigo
irrepreensível em justiça, eles mesmos se arruinaram por completo e
arruinaram seus amigos e suas famílias,
tanto que as predições gravadas outrora em esteias são reconhecidas agora como verdadeiras ante os
fatos. Por meio destes, a palavra divina afirma como verdadeiras as
outras coisas, mas também o que declara acerca daqueles:
30.
"Os
pecadores desembainharam uma espada; esticaram seu arco para abater o pobre e o indefeso, para degolar o reto de coração. Oxalá sua
espada penetre em seus próprios corações e seus arcos se quebrem![46];
e novamente: Sua memória se perdeu com o eco, e seus nomes
estão apagados para sempre e pelos séculos dos séculos, porque realmente, achando-se
entre males gritaram, mas não havia quem os salvasse; gritaram ao Senhor, e não
os escutou[47].
Mesmo assim, travaram-se-lhes os pés e caíram. Mas nós nos levantamos e
nos endireitamos[48].
E ante os olhos de todos mostra-se verdadeiro o que se predizia com estas
palavras: Senhor, em tua cidade reduzirás a nada sua imagem[49].
31.
Eles, que levantaram uma luta
contra Deus parecida com a dos gigantes, tiveram um final igualmente
catastrófico. Por outro lado, o fim daquela[50],
deserta e rechaçada pelos homens, foi como se viu, o da paciência de Deus,
segundo proclama a profecia de Isaías, que diz assim:
32.
"Exulta, deserto sedento! Que
se alegre o deserto e floresça como lírio! E a terra árida florescerá e
exultará. Fortalecei-vos, mãos lânguidas e joelhos desfalecidos! Consolai-vos,
pusilânimes de coração, fortalecei-vos, não temais! Vede que nosso Deus
responde com um juízo e julgará. Ele mesmo virá e vos julgará, porque - diz - brotou água no deserto, e uma torrente na terra sedenta, e a que
estava sem água se converterá em lago, e na terra sedenta haverá um manancial
de água[51].
33.
E estas coisas, previstas
antigamente em palavras, estão referidas nos livros sagrados. Mas sua realidade
já não nos foi transmitida de ouvido, mas de fatos. Esta, a deserta, a sem
água, a viúva, a indefesa, aquela cujas portas haviam derrubado a machadadas
como bosques de lenha, a que em consenso destruíram com machados e achas e
na qual, depois de haver destruído seus livros, tocaram fogo ao santuário de
Deus, profanaram em terra o tabernáculo de seu nome; esta, da qual todos
arrancavam quando passavam pelo caminho depois que derrubaram sua cerca, a
que o javali devastara desde o bosque e a fera solitária destroçara, agora,
pelo poder milagroso de Cristo e quando Ele mesmo o quis, veio a ser como
um lírio, pois também então era castigada por vontade d'Ele, como o faria
um pai cuidadoso, porque o Senhor repreende a quem ama e açoita a quem
recebe como filho.
34. Assim pois, uma vez corrigida na
devida medida, outra vez foi-lhe ordenado de cima que se alegrasse, e
florescerá como lírio e exalará para todos os
homens um bom odor divino, porque, diz, brotou água no deserto, a corrente da divina regeneração do banho salvador.
E agora, a que há pouco era deserto converteu-se em. lago, e na terra
sedenta borbotou um manancial de água viva, e as mãos, antes
lânguidas, fortaleceram-se realmente. E prova grande e manifesta da força
dessas mãos são estas obras. Mas inclusive os
joelhos, noutro tempo estropeados e desfalecidos, recobrando sua habitual força para andar, marcham bem retos
pelo caminho do conhecimento de Deus e apressam seu passo até o
familiar rebanho do Pastor santíssimo.
35. E ainda que alguns tivessem suas almas embotadas pelas
ameaças dos tiranos, tampouco os deixa sem cura o Verbo salvador. Muito pelo
contrário, também estes ele cura e os exorta ao consolo de Deus, dizendo:
36. "Consolai-vos, pusilânimes de coração;
fortalecei-vos, não temais! A palavra que predizia que aquela
que se havia convertido em deserto por causa de Deus haveria de gozar de todos estes bens, foi ouvida por este nosso
novo e bom Zorobabel com o agudíssimo ouvido de sua mente, depois daquele amargo cativeiro e da abominação da desolação[52].
Não desdenhou as ruínas mortas. Em
primeiríssimo lugar, com súplicas e orações, e com o unânime sentimento de todos vós, aplacou o Pai, e tomando
como aliado e colaborador o único que
pode reanimar os mortos, levantou a que estava caída - depois de purificá-la e
curá-la previamente de seus males - e envolveu-a com uma veste, não com a antiga dos tempos remotos, mas
com aquela sobre a qual lhe instruíam
os divinos oráculos quando claramente dizem: E a glória desta nova
casa será maior do que a da primeira[53].
37. E assim, todo o terreno que demarcou era muito maior[54].
Por fora fortificou o recinto com um muro em toda a volta,
de maneira que fosse uma defesa segura para toda a
obra.
38. Abriu um vestíbulo amplo e de grande altura, que se
voltava aos próprios raios do sol nascente, e com isto
proporcionou aos que estão longe, fora dos muros
sagrados, o poder contemplar sem restrição o que há dentro, quase fazendo voltar-se a vista dos estranhos à fé para suas
primeiras entradas, de modo que ninguém pudesse passar ao largo sem que antes a dor
lhe penetrasse na alma pela recordação da
desolação passada e pela admiração da
extraordinária obra de agora. Talvez esperasse que alguém, afetado por isso,
se deixasse arrastar, e por seu próprio olhar se dirigisse à entrada.
39. Mas a quem entrou pelas portas não se permitiu de
imediato pisar com pés impuros e sujos os lugares santos do
interior, mas, separando o mais possível o
intervalo entre o templo e as primeiras entradas, adornou todo o derredor com quatro pórticos oblíquos, cercando assim o lugar
em forma mais ou menos quadrangular, com colunas que se alçam de todas as
partes e cujos intervalos se fecham em toda a volta com
barreiras de treliça de madeira, a uma altura conveniente.
O centro do átrio foi deixado livre para que se visse o céu, oferecendo assim
um ar puro e aberto aos raios do sol.
40. E ali colocou os símbolos das purificações sagradas: frente à fachada do
templo fez construir fontes que, com o abundante fluir de sua corrente, facilitam a purificação para os que avançam
dentro dos recintos sagrados. E este é o primeiro lugar dos que entram,
lugar que proporciona a todos ornamento e beleza, e aos que ainda necessitam as
primeiras iniciações, uma estância adequada.
41. Mas, superando inclusive o espetáculo de tudo isto,
fez as entradas do templo ainda muito mais abertas, com
numerosos vestíbulos interiores. Numa só face
- novamente o que cai sob os raios do sol - colocou três portas, e delas quis
que a do meio fosse, por muito, superior às outras duas em altura e largura, e
adornou-as, antes de tudo, com placas de bronze, presas com ferros, e com variados desenhos em relevo, e
sujeitou a esta, como a uma rainha, as outras duas na qualidade de
escolta.
42. De igual maneira dispôs também para os pórticos de um e
de outro lado do templo o número dos vestíbulos;
idealizou também, para ter mais luz de cima, diferentes
aberturas sobre o edifício e as adornou rodeando-as com finos e multicoloridos
trabalhos em madeira.
Quanto ao edifício basilical[55],
consolidava-o com materiais mais ricos e abundantes, sem
regatear gastos.
43. Aqui me parece supérfluo andar descrevendo com palavras
o comprimento e a largura do edifício, esta
esplêndida formosura e sua grandeza, superiores a toda palavra,
o aspecto brilhante das obras, assim como sua altura, que chega ao céu, e os
preciosos cedros do Líbano colocados acima de tudo, dos quais nem o oráculo divino silencia a menção, pois diz: Revigoram-se
as árvores do Senhor e os
cedros do Líbano que ele plantou[56].
44.
Para que
necessito eu agora andar compondo uma descrição exata da sapientíssima e arquitetônica disposição, assim como da
soberba beleza de cada uma das partes, quando o testemunho da vista torna
desnecessário o ensinamento que chega aos ouvidos? Mas assim é que, depois de
haver assim terminado o templo, adornou-o com tronos mui elevados para
honrar os que presidem, e ainda com bancos
dispostos em ordem para os comuns, segundo corresponde. E depois de tudo
isto, pôs no meio o altar, como santo dos
santos, e para que não fosse acessível à massa, cercou-o também com treliçados de madeira cuidadosamente
adornados com finos trabalhos de arte até em cima, oferecendo assim um
admirável espetáculo a quantos o vêem.
45. Mas deve-se saber que tampouco descuidou do pavimento. Também este fez brilhar com todo tipo de adornos em pedra de
mármore. E por último passou ao
exterior do templo e construiu êxedras e edifícios muito grandes de um e
de outro lado, habilmente ligados pela face ao edifício basilical, formando um
todo e unidos com passadiços que vão ao edifício central. E todas estas construções levou-as a cabo nosso
mui pacífico Salomão[57],
o que edificou o templo do Senhor, para os que ainda estão necessitando a purificação e a ablução que se dão pela
água e o Espírito Santo, de tal modo que já não é palavra, mas que foi
feita realidade a profecia lida mais acima.
46. Porque também agora ocorre em verdade que a glória
desta nova casa será maior do que a da primeira.
Efetivamente, depois que seu Pastor e Senhor sofreu a
morte por ela, uma vez por todas, e depois que na paixão transformou o corpo de
imundície que por ela havia vestido em
corpo brilhante e glorioso, e depois de livrar da corrupção a carne e levá-la à
incorrupção, era necessário e conveniente que também esta Igreja colhesse de
igual modo os frutos dos desígnios do Salvador.
Posto que realmente recebeu d'Ele uma promessa de bens muito melhores
que estes, deseja receber de maneira suficiente e pelos séculos vindouros a
glória muito maior da regeneração na ressurreição de um corpo incorruptível em
companhia do coro dos anjos de luz nos palácios de Deus, além dos céus e com o próprio Cristo Jesus, benfeitor e
salvador universal.
47. Mesmo assim, enquanto isto, no tempo
presente, a que antes se achava viúva e deserta, depois que pela graça de Deus
está rodeada de flores, converteu-se
realmente em um lírio, segundo diz a profecia, e tendo tomado novamente a veste nupcial e cingindo-se a coroa
da divindade, por meio de Isaías aprende a dançar, enquanto com cantos
de louvor apresenta os sacrifícios de ação de graças a seu rei e Deus.
48. Ouçamo-la
dizer: Alegre-se minha alma no Senhor, porque vestiu-me com uma veste de salvação e uma túnica de alegria.
Cingiu-me uma diadema como a um
esposo, e como a uma esposa enfeitou com jóias. E como terra que faz
crescer suas flores, e como jardim que fará germinar suas-sementes, assim o
Senhor fez germinar a justiça e o regozijo diante de todas as nações[58].
Ao som destas palavras, pois, ela dança.
49.
Mas, em que termos lhe responde o
Verbo celestial, o próprio Jesus Cristo? Ouve o Senhor dizer: Não temas
porque te desonraram nem te inquietes porque te ultrajaram. Porque esquecerás
tua vergonha perpétua e não te lembrarás mais do ultraje da viuvez. O Senhor
não te chamou como mulher abandonada e diminuída nem como mulher odiada desde a
juventude. Disse teu Deus: por breve tempo te abandonei, e em minha grande
misericórdia terei misericórdia de ti. Num momento de indignação afastei meu
rosto de ti, e numa misericórdia perpétua terei misericórdia de ti, disse o
Senhor que te livrou[59].
50.
Desperta, desperta, tu que bebes da
mão do Senhor o vaso de sua ira. Porque o vaso da queda, o vaso de minha ira
bebeste e o esgotaste, e não havia quem te consolasse de todos teus filhos que
engendraste, e não havia quem te tomasse pela mão. Vede que tomei de tua mão o
vaso da queda, o vaso de minha ira, e dele não mais beberás, e o porei nas mãos
dos que te maltrataram, dos que te humilharam.
51.
Desperta, desperta! Veste-te a força,
veste-te tua glória. Sacode o pó e levanta-te. Senta-te. Desata as cadeias de
teu pescoço[60].
Levanta teus olhos em torno, vê a todos teus filhos reunidos. Vede, juntaram-se
e vieram a ti. Por minha vida, diz o Senhor, que te revestirás de todos eles
como adorno e deles te cingirás como noiva. Porque teus desertos, e tuas ruínas
e tuas terras assoladas agora serão apertadas para os que te habitam, e os que
te devoravam serão lançados longe de ti.
52.
Porque te dirão ao ouvido teus
filhos, os que tinhas perdidos: meu lugar é estreito, faça-me lugar para que
possa habitar; e dirás em teu coração: quem me engendrou estes? Eu estava sem
filhos e viúva, mas estes, quem os criou? Eu fiquei só e abandonada, de onde me
vêm estes?[61]
53.
Isto profetizou Isaías. Isto se
achava consignado desde longo tempo nos livros sagrados, acerca de nós, mas era
necessário, de certa forma, que percebêssemos alguma vez nas obras a
infalibilidade destas predições.
54.
Mas como o esposo, o Verbo,
pronunciou estas palavras para sua própria esposa, a sagrada e santa Igreja,
era razoável que o padrinho, aqui presente, ajudado com as orações unânimes de
todos vós e depois de oferecer vossas próprias mãos, despertasse esta, a
deserta, a que jazia caída, a que não tinha
esperança entre os homens. E pela vontade de Deus, rei universal, e pela manifestação do poder de Jesus Cristo,
conseguiu levantá-la, e uma vez ressuscitada, preparou-a como lhe
ensinava a descrição dos sagrados oráculos.
55. Grandíssima maravilha esta e que excede toda
admiração! Sobretudo para aqueles que
fixam sua atenção somente na aparência do exterior. Mas ainda mais admiráveis que estas maravilhas são os arquétipos
e seus protótipos inteligíveis, assim como seus divinos modelos;
quero dizer a renovação do edifício divino e racional nas
almas.
56. Este edifício realizou-o a sua própria imagem o próprio Filho de Deus, e em tudo e por tudo o dotou de divina semelhança,
de natureza imortal e de substância
incorpórea, racional, livre de toda matéria terrena e por si mesma espiritual:
depois de começar a constituí-la, uma vez por todas, no ser a partir do não ser, fez dela para si mesmo e para o
Pai uma esposa santa e um templo sacratíssimo, o que bem claramente confessa e
manifesta Ele mesmo quando diz: Habitarei
neles e em meio deles passarei e serei seu Deus, e eles serão meu povo[62]; e a alma perfeita e purificada, assim criada desde
o princípio, era tal que levava em
si a imagem do Verbo celestial.
57. Mas quando, por inveja e ciúmes do demônio, amigo do
mal, converteu-se em sensual e amiga do mal por livre escolha dela mesma[63],
ao retirar-se dela pouco a pouco a divindade e ficar
como privada de um protetor, tornou-se presa fácil e vulnerável ao ataque dos
que há longo tempo a queriam mal. Abatida
pelas torres de assédio e os mecanismos dos adversários invisíveis e dos inimigos espirituais, derrubou-se em queda extraordinária, até não ficar de pé pedra sobre pedra de sua virtude,
antes, toda ela jazia por terra, inteiramente morta e privada por
completo de seus naturais pensamentos acerca de Deus.
58. Em realidade, tendo caído esta, a mesma que havia sido
feita à imagem de Deus, não a devastou esse javali que procede do bosque, visível
para nós, mas certo demônio corruptor e selvagens feras espirituais
que, depois de inflamá-la com paixões como
com dardos acesos de sua própria maldade, puseram fogo ao santuário
realmente divino, de Deus, e profanaram em terra o tabernáculo de seu nome, para logo, depois de enterrar a desgraçada sob
montões de terra, privá-la de toda esperança de salvação.
59. Mas, quando já havia sofrido o
merecido castigo de seus pecados, o que cuida
dela, o Verbo salvador e emissor de luz divina, obedecendo ao amor do Pai, todo
santidade para com os homens, novamente voltou a recebê-la.
60. Então, tendo eleito em primeiro lugar as almas dos
supremos imperadores[64],
valendo-se deles, amantíssimos de Deus,
limpou inteiramente a terra habitada de
todos os indivíduos ímpios e funestos e até dos terríveis tiranos, odientos de Deus. Logo trouxe à luz do dia os homens bem
conhecidos por Ele, que em outro tempo haviam-se consagrado com sua vida a Ele e
andavam ocultando-se ao abrigo de sua
proteção, como numa tempestade de males, e honrou-os mui dignamente com
a magnificência do Pai. E logo, também por
meio destes[65],
purificou e limpou as almas pouco antes manchadas e cobertas de material de
toda espécie e montes de terra, que eram as ordens ímpias, usando como enxadas
e ancinhos os impressionantes ensinamentos de suas doutrinas[66].
61. E quando terminou a tarefa de deixar brilhante e
radiante o solar de vossas mentes, as de todos, então o
entregou adiante a este guia, sapientíssimo e mui
amado de Deus. E ele, homem de grande discernimento e sensatez em tudo o
mais, reconhecendo e discernindo bem a mente das almas que lhe couberam pela
sorte, tendo-se posto a edificar, por assim dizer, desde o primeiro dia, esta é a hora que ainda não
terminou, pois segue montando em todos
vós o ouro brilhante, a prata acrisolada e pura, e até as pedras preciosas e de grande preço, tanto que com suas obras está
cumprindo em vós a sagrada e mística profecia em que se diz:
62. Vede que estou te preparando a pedra de carbúnculo, os
fundamentos de safira, as ameias de jaspe e tuas portas de pedras de cristal e
tua cerca de pedras escolhidas; e teus filhos serão ensinados de Deus, e tua
prole terá grande paz. E serás edificado na justiça[67].
63. Ao
edificar, efetivamente, na justiça, ele dividia as forças de todo o povo conforme o mérito: uns ele rodeava somente de uma
cerca exterior amuralhando-os com uma fé sem erro (numeroso e grande é o
povo incapaz de suportar uma construção
mais forte!); outros, confiando-lhes as entradas da casa, mandava ficar às portas e guiar os que
entravam, pois não sem razão
são considerados como os vestíbulos do templo; e outros apoiava nas primeiras colunas do exterior que rodeiam o átrio em quadrilátero, fazendo-os avançar nos primeiros contatos com a letra dos quatro evangelhos. E outros ainda, vai juntando apertadamente a um e outro lado ao redor do edifício basilical, posto que ainda são catecúmenos, em estado de crescimento e de progresso, ainda que não muito separados nem muito longe da visão do mais interior, próprio dos fiéis.
são considerados como os vestíbulos do templo; e outros apoiava nas primeiras colunas do exterior que rodeiam o átrio em quadrilátero, fazendo-os avançar nos primeiros contatos com a letra dos quatro evangelhos. E outros ainda, vai juntando apertadamente a um e outro lado ao redor do edifício basilical, posto que ainda são catecúmenos, em estado de crescimento e de progresso, ainda que não muito separados nem muito longe da visão do mais interior, próprio dos fiéis.
64. Tomando dentre estes últimos as almas puras, que como o
ouro foram purificadas no banho divino, também a algumas
delas apoiava em colunas muito mais fortes
que as do exterior, nas doutrinas íntimas e místicas da Escritura, enquanto vai iluminando as outras com aberturas que dão para a luz.
65. E adorna o templo inteiro com o único e grandíssimo
vestíbulo da glorificação do primo e único Deus, rei
universal, e a cada lado do poder soberano do
Pai apresenta os segundos raios de luz, Cristo e o Espírito Santo. Quanto ao resto, através do edifício inteiro, vai demonstrando com abundância e
muita variedade a claridade e luminosidade da verdade em cada zona.
E depois de selecionar em todo lugar e de todas as partes as pedras vivas,
sólidas e bem firmes das almas, com todas
elas vai construindo a grande e régia casa, radiante e plena de luz, por fora e
por dentro, pois não somente suas almas e suas mentes, mas também seus
corpos, iluminam-se com o múltiplo e florido adorno da castidade e da
sobriedade.
66. Há ainda neste santuário tronos e inúmeros bancos e
assentos: outras tantas almas sobre as quais pousam os dons do Espírito divino, como
os que em outro tempo viram os sagrados
apóstolos e seus acompanhantes, aos quais se manifestaram distribuídas línguas
como de fogo que pousaram sobre cada um deles[68].
67. Mas no principal de todos[69]
assenta-se igualmente o próprio Cristo inteiro, enquanto que nos
que vêm depois dele, em segundo lugar, somente participações do poder de Cristo e do Espírito Santo, em proporção com
o lugar que a cada um compete. As
almas de alguns inclusive podem ser bancos de anjos, dos que foram entregues a cada um como pedagogos e custódios.
68. E o venerável, grande e único altar, qual poderia ser
se não a absoluta pureza e santo dos santos da alma do sacerdote comum de todos? De
pé, a sua direita, o grande pontífice do
universo, Jesus mesmo, o unigênito de Deus, com olhar radiante e com as mãos voltadas, vai tomando de todos o aromático
incenso e os sacrifícios incruentos e imateriais apresentados por meio
de orações, e os envia ao Pai celestial e Deus do universo. Ele mesmo é o primeiro a adorar e o único a render ao Pai a
adoração que lhe corresponde, e logo lhe suplica também que permaneça
perpetuamente favorável e propício para com todos nós.
69. Assim é o grande templo que o Verbo,
o grande construtor do universo construiu
por toda a terra habitada sob o sol, depois de ser Ele mesmo quem fabricou sobre a terra esta imagem espiritual do
que há mais além das abóbadas celestes, para que seu Pai pudesse ser honrado e
adorado através de toda a criação e de todos os seres viventes e racionais que
há sobre a terra.
70.
Mas a legião sobre os céus, os
modelos que ali há das coisas daqui, a assim chamada Jerusalém de cima, o monte
Sion supraceleste e a supraterrena cidade do Deus vivo, na qual inúmeros anjos
em assembléia e uma Igreja de primogênitos registrados nos céus estão
celebrando com suas teologias inefáveis e para nós inconcebíveis seu criador e
supremo Senhor do universo, nenhum mortal será capaz de cantá-lo como é devido,
porque realmente nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou
em coração humano o que realmente Deus preparou para os que o amam[70].
71.
Posto que fomos considerados dignos
de ter parte nestes bens, assim homens como crianças e mulheres, pequenos e
grandes, todos juntos e com um só coração e uma só alma, confessemos e
aclamemos sem cessar jamais o autor de tão grandes bens para nós, o que perdoa
propiciamente todas as nossas iniqüidades, o que sana todas nossas
enfermidades, o que resgata nossas vidas da corrupção, o que nos coroa com
misericórdia e compaixão, o que sacia de bens nosso desejo, porque não agiu
conosco segundo nossos pecados nem nos pagou conforme nossas iniqüidades, já
que tão longe quanto está o oriente do ocidente, assim afastou de nós nossas
iniqüidades. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se
compadeceu dos que o temem[71].
72.
Reavivemos a memória de todos estes
bens não somente agora, mas também em todo momento sucessivo. Agora pois, tendo
sempre ante os olhos, de noite e de dia, a todas as horas, e por assim dizer, a
cada inspiração, o autor e diretor chefe da presente assembléia festiva e deste
esplêndido e brilhante dia, amemo-lo e veneremo-lo com toda a força de nossas
almas. E agora, ponhamo-nos de pé e supliquemo-lhe com voz forte e grande
disposição, para que, abrigados até o fim sob seu redil, nos salve e nos
outorgue como prêmio a inquebrantável, inamovível e eterna paz em Cristo Jesus,
nosso Salvador, pelo que seja glorificado por todos os séculos dos séculos.
Amém."
- O que mais te chamou atenção no texto?
- Qual a contribuição do texto para sua espiritualidade?
[54] Eusébio começa a descrever os
planos e a construção da igreja. É o mais antigo relato deste tipo, e ele fez o
mesmo sobre outras igrejas. Devemos lembrar que Eusébio não era arquiteto, mas
um orador comprometido com os recursos da retórica.
[63] O orador vai comparar a igreja
material com o templo espiritual, às vezes com simbolismos difíceis de explicar
satisfatoriamente.
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