sexta-feira, 11 de novembro de 2016

52 - História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia Livro X – Capítulos 01 a 04

LlVRO X
52
História Eclesiástica de Eusébio de Cesareia
Livro X – Capítulos 01 a 04

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I. Da paz que Deus nos outorgou
1.            Em todas as coisas se dêem graças a Deus Todo-poderoso e rei do universo e também mui numerosas ao Salvador e Redentor de nossas almas, Jesus Cristo, por meio do qual estamos continuamente suplicando que nos con­serve segura e firme a paz, ao abrigo tanto das perturbações de fora como das da mente.
2.            E ao acrescentar aqui este livro décimo da História Eclesiástica aos que já seguiram adiante, junto com as súplicas, vamos dedicá-lo a ti, Paulino, alta­mente sacro para mim, invocando-te como selo que sanciona a obra toda.
3.            É natural que, sendo um número perfeito, insiramos aqui o discurso perfeito e panegírico da restauração das igrejas, obedecendo ao Espírito divino, que exorta da seguinte maneira: Cantai ao Senhor um cântico novo, porque fez maravilhas. Salvou-o sua destra e seu santo braço. O Senhor deu a conhecer sua salvação; diante das nações revelou sua justiça[1].
4.            E, em verdade, respondendo ao oráculo que o ordenou, cantemos agora o cântico novo por meio deste livro, porque, efetivamente, depois daqueles espetáculos e relatos sombrios e espantosos, fomos agora considerados dignos de contemplar tais maravilhas e de celebrar grandes solenidades, como muitos de nossos antepassados, realmente justos e mártires de Deus, desejaram ver sobre a terra, e não viram; ouvir, e não ouviram[2].
5.            Mas eles, apressando-se com toda rapidez, alcançaram bens muito melhores, arrebatados até os próprios céus e ao paraíso das divinas delícias. Nós, por outro lado, ainda que confessando que os bens presentes são maiores do que merecemos, estamos demasiado estupefatos pela graça e magnificência de seu autor, e o admiramos com toda a força da alma, como é justo, venerando e atestando a verdade das predições da Escritura, na qual é dito:
6.             Vinde e vede as obras do Senhor, os prodígios que fez sobre a terra eliminando guerras até os confins da terra. Quebrará o arco e romperá a arma, e queimará o escudo no fogo[3]. Regozijando-nos nestas maravilhas, claramente realizadas para nosso bem, continuemos nosso relato.
7.             Havia desaparecido, da maneira que dissemos, toda a raça dos odiadores de Deus e repentinamente havia-se apagado da vista dos homens, tanto que uma vez mais tinha cumprimento a palavra divina que diz: Vi um ímpio prepotente a expandir-se como o cedro do Líbano. Passei, e eis que desaparecera; procurei-o, e já não foi encontrado[4].
8. Mas daí em diante, um dia esplendoroso e radiante, sem que nuvem alguma lhe fizesse sombra, ia iluminando com seus raios de luz celestial as igrejas de Cristo por todo o universo, e nem sequer aos de fora de nossa confraria nenhuma inveja impedia de participar, se não dos mesmos bens, pelo menos da irradiação e comunicação dos que nos foram outorgados por parte de Deus.

II. Da restauração das igrejas
1.             Assim pois, todos os homens viram-se livres da opressão dos tiranos, e uma vez afastados dos primeiros males, uns de uma maneira e outros de outra, iam confessando como único Deus verdadeiro ao que havia combatido em defesa dos homens piedosos. Mas sobretudo nós, os que havíamos posto nossas esperanças no Cristo de Deus, transbordávamos de um prazer indizível, e para todos florescia uma alegria divina em todos os lugares que pouco antes se achavam em ruínas pela impiedade dos tiranos, como se os víssemos reviver depois de uma longa e mortífera devastação. E os templos surgiam novamente desde os fundamentos até uma altura imprevista, e recebiam uma beleza muito superior à dos que antes tinham sido destruídos.
2.      Mas há ainda mais: os supremos imperadores, com suas contínuas legislações em favor dos cristãos, vinham a confirmar, ampliando-as e aumentando-as, as mercês da munificência de Deus. Também aos bispos repetiam-se cartas pessoais do imperador, honras e doações em dinheiro. Não será fora de lugar inserir a seu devido tempo no presente livro, como numa esteia sagrada, seus textos traduzidos do latim para o grego, com o fim de que se conservem na memória de toda nossa posteridade.

III. Das dedicações em todo lugar
1.            Além disto, oferecia-se o espetáculo tão desejado e esperado por todos nós: festas de dedicação em cada cidade, consagrações dos oratórios recém-construídos, concentrações de bispos para o mesmo, afluência de gente de terras longínquas. Disposições amistosas dos povos entre si e reunião dos membros do Corpo de Cristo[5] em convergência para uma única harmonia.
2.            Quer dizer, conforme a predição profética que misteriosamente indicava de antemão o porvir, juntava-se osso com osso, ligamento com ligamento, e ocorria assim, sem engano, tudo o que a palavra oracular anunciava mediante enigmas[6].
3.            Através de todos os membros corria um único poder do Espírito divino, e uma só era a alma de todos[7], e uma mesma a paixão pela fé. E um era o hino de proclamação de Deus que brotava de todos. Sim, também havia cerimônias perfeitas dos dirigentes, funções litúrgicas dos sacerdotes e ritos da Igreja dignos de Deus: aqui com salmodias e demais recitações dos textos que nos foram transmitidos da parte de Deus, e ali realizando serviços divinos e místicos. E também havia os símbolos inefáveis da paixão salvadora.
4.     De uma vez, gente de todas as idades, rapazes e moças[8], com toda a força de seu pensamento e com a mente e a alma em gozo, honravam a Deus, autor de todos os bens, com orações e ação de graças.
E todos os dirigentes presentes pronunciavam discursos panegíricos, cada um segundo suas faculdades, entusiasmando a assembléia.

IV. Panegírico ante o esplendor de nossos assuntos
1.   E saiu ao meio um homem, um dos moderadamente dotados, que tinha composto um discurso[9]. Numa igreja abarrotada, e estando presentes muitos pastores que escutavam em silêncio e ordem, pronunciou o seguinte discurso, dirigindo-se pessoalmente a um só bispo[10], amigo de Deus e o melhor de todos, por cuja solicitude e zelo havia-se erigido em Tiro o mais notável
templo da Fenícia e arredores.

Panegírico sobre a edificação das igrejas, dirigido a Paulino, bispo de Tiro.
2.     "Amigos de Deus e sacerdotes revestidos com a santa túnica talar, com a celestial coroa da glória, com o crisma divino e com a vestimenta sacerdotal do Espírito Santo. E tu, jovem orgulho do santo templo de Deus, que, ainda que honrado por Deus com uma sabedoria de ancião, tens demonstrado, mesmo assim, magníficas obras e ações próprias de uma virtude jovem e em pleno vigor; tu, a quem o próprio Deus, que abarca todo o mundo, outor­gou como privilégio especial edificar sua casa sobre a terra e restaurá-la para Cristo, seu Verbo unigênito e primogênito, e para sua santa e divina esposa.
3.     Um queria chamar-te o novo Beseleel[11], arquiteto de um tabernáculo divino[12]; ou então Salomão, rei de uma Jerusalém nova e muito melhor, ou então, até mesmo novo Zorobabel que circunda o templo de Deus com uma glória muito melhor do que a primeira.
4.            Mas também vós, rebentos do sagrado rebanho de Cristo, lugar de boas doutrinas, escola de temperança e auditório de piedade, venerável e amado de Deus.
5.            Antes, quando conhecíamos os extraordinários milagres e os admiráveis benefícios do Senhor em favor dos homens apenas de ouvir, escutando as leituras sagradas, assim educados, era-nos possível dirigir hinos e cânticos ao Senhor e dizer: Oh Deus, com nossos ouvidos ouvimos! Nossos pais nos anunciaram a obra que tu realizaste em seus dias, nos dias antigos[13].
6.            Mas agora que já não conhecemos de ouvido nem por rumor de palavras o longo braço[14] e a destra celestial de nosso Deus, todo bondade e universal, mas, por assim dizer, nas obras e com nossos próprios olhos comprovamos que são fiéis e verdadeiras as maravilhas antigamente confiadas à memória, podemos entoar um segundo hino de vitória e alçar claramente nossas vozes dizendo: Como tínhamos ouvido dizer, assim o vimos na cidade do Senhor dos exércitos, na cidade de nosso Deus[15].
7.     Mas, em que cidade senão nesta, recém-fundada e edificada por Deus? Esta, que é Igreja do Deus vivo, coluna e sólido baluarte da verdade[16], acerca da qual outro oráculo divino já anunciava esta boa nova: Gloriosas coisas se têm dito de ti, cidade de Deus[17]. Posto que é nela onde o Deus santíssimo nos congregou pela graça de seu Unigênito, cada um dos convidados entoe hinos, e ainda a gritos diga: Alegrei-me quando me disseram: vamos à casa do Senhor[18]. E também: Senhor, eu amo a habitação de tua casa e o lugar em que tua glória acampa[19].
8.   E não somente um a um, mas também todos de uma só vez: com um só espírito e uma só alma, honremo-lo bendizendo-o assim, Grande é o Senhor e digníssimo de louvor na cidade de nosso Deus, em seu santo monte![20] Porque grande é, na verdade, grande é sua casa, alta e espaçosa, e fresca e formosa mais do que os filhos dos homens[21]. Grande é o Senhor, o único
que faz maravilhas[22]; grande o que faz grandes obras e insondáveis, gloriosas, descomunais, inumeráveis[23]; grande o que muda as estações e os tempos, o que depõe os reis e os estabelece[24], Ele que levanta da terra o pobre e alça do esterco o indigente[25]; derrubou poderosos de seus tronos e levantou da terra os humildes; encheu de bens os famintos[26], e quebrou os braços dos soberbos[27],
9.      confirmada assim, como digna de fé, a memória dos antigos relatos, e não somente para os fiéis, mas também para os infiéis, ele, o taumaturgo, executor de grandes obras, dono do universo, construtor de todo o mundo, todo-poderoso, bondade suprema, o um e único Deus! Cantemos a ele um cântico novo[28], respondendo interiormente ao que é único a fazer maravilhas, porque sua misericórdia é eterna; ao que feriu grandes reis e matou reis poderosos, porque sua misericórdia é eterna, porque em nossa humilhação lembrou-se de nós e nos livrou de nossos inimigos.
10.  Tomara nunca cessemos de aclamar com estes termos o Pai do universo! E quanto ao que é causa segunda de nossos bens, o introdutor do conhecimento de Deus, o mestre da verdadeira piedade, o destruidor dos ímpios e restaurador da vida, Jesus, salvador dos que estávamos desesperados, tomemos seu nome em nossas bocas e honremo-lo!
11.  Porque somente Ele, como Filho que é absolutamente único e santíssimo de um Pai santíssimo, por vontade do amor paterno aos homens, vestiu prazerosamente nossa natureza de homens, que jazíamos em profunda corrupção, e como médico excelentíssimo, por causa da salvação dos enfermos, "vê coisas terríveis e toca chagas repugnantes, e nas calamidades alheias colhe sofrimentos próprios", pois não somente nos salvou estando enfermos ou agoniados com terríveis chagas e feridas já putrefatas, mas inclusive aos que jazíamos entre os mortos Ele mesmo nos arrancou para si dos próprios abismos da morte, porque nenhum outro dos que estão no céu possui tanta força como para colocar-se ao serviço da salvação de tantos sem desprezo próprio.
12. Assim pois, somente Ele tocou nossa própria e gravíssima corrupção, somente Ele suportou nossos trabalhos, somente Ele tomou para si as penas de nossas iniqüidades[29]. E não nos levantou quando estávamos meio mortos, mas já completamente corrompidos e hediondos em tumbas e sepulcros. Assim antes como agora, com sua amorosa solicitude pelos homens, contra a esperança de todo o mundo e, portanto, da nossa, segue salvando-nos e fazendo-nos partícipes da abundância de bens do Pai, Ele, o vivificador, o que trouxe a luz, nosso grande médico, rei e Senhor, o Cristo de Deus.
13.     Mas então, vendo todo o gênero humano afundado em noite escura e em profundas trevas, por serem pervertidos por funestos demônios e pela ação dos espíritos inimigos de Deus, apareceu uma vez por todas e desatou as muitas e firmes amarras de nossas iniqüidades como se derrete a cera com os raios de sua luz[30].
14. Mas agora, ante tamanha graça e tão grande benefício, explodiu, por assim dizer, a inveja do demônio, odiento do bem e amigo do mal, que mobilizou contra nós todas suas hostes mortíferas. Primeiro, como cão raivoso que quebra seus dentes contra as pedras que lhe lançam e descarrega sua fúria, dirigida aos que o rechaçam, contra uns projéteis sem alma, dirigiu sua loucura selvagem contra as pedras dos oratórios e contra os materiais inanimados das casas, para fazer das igrejas - assim pelo menos acreditava para si - um deserto; depois, deixou escapar seus terríveis assobios e gritos de serpente, com ameaças de ímpios tiranos, ou com editos blasfemos de iníquos governantes, e finalmente, vomitou a morte, que é sua, e envenenou com peçonhas deletérias e mortais as almas por ele aprisionadas, e esteve a ponto de fazê-las morrer com sacrifícios mortíferos a ídolos mortos e atiçou contra nós toda a fera de forma humana e as bestas selvagens de toda espécie.
15. Mas novamente o anjo do grande conselho, o grande general do exército de Deus[31], depois do suficiente treinamento que demonstraram os maiores soldados de seu reino com sua paciência e sua constância em todos os tormentos, de novo surgiu assim, de repente, e varreu adversários e inimigos e reduziu-os a nada, até que parecesse que jamais tiveram nome, e, por outro lado, fez seus amigos e familiares avançarem além da glória diante de tudo, não somente dos homens, mas também dos exércitos celestes, do sol, da lua e das estrelas, do céu inteiro e do mundo.
16. De tal maneira que - coisa que nunca havia acontecido - os mais altos imperadores[32], conscientes da honra que d'Ele obtiveram, cuspiram no rosto dos ídolos mortos, pisotearam as criminosas cerimônias dos demônios e zombavam do antigo engano transmitido pelos seus antecessores; e ainda, reconheciam que há um só Deus, único e ele mesmo, benfeitor comum de
todos e deles próprios, e confessavam a Cristo como Filho de Deus, rei supremo de tudo; em esteias proclamavam-no salvador e, para memória imorredoura, fizeram também gravar com caracteres imperiais no meio da cidade que impera sobre as outras[33] da terra suas felizes empresas e suas vitórias contra os ímpios, de maneira que Jesus Cristo, nossos salvador, é o único dos que existiram desde os séculos a quem os próprios hierarcas da terra reconheceram, não mais como um rei comum saído dentre os homens, mas como verdadeiro Filho do Deus do universo, como a Deus o adoram.
17.     E com razão! Pois, que rei alguma vez alcançou tal grau de virtude que com seu nome preenchesse o ouvido e a língua de todos os homens da terra? Que rei estabeleceu leis tão piedosas e tão prudentes e teve também força bastante para fazê-las chegar aos ouvidos de todos os homens, desde o confim do mundo até o limite da terra habitada?
18.     Quem aboliu os bárbaros e selvagens costumes de povos selvagens com suas leis suaves e de amorosa humanidade? E quem, tendo sido combatido por todos durante séculos inteiros, demonstrou um vigor sobre-humano, tanto que a cada dia florescia e rejuvenescia durante toda sua vida?
19. E quem fundou um povo do qual nunca em todos os séculos se ouvira falar, e não o ocultou em qualquer rincão da terra, mas estabeleceu-o por todo lugar sob o sol? Quem protegeu seus soldados com armas de piedade, de tal maneira que suas almas nos combates contra os adversários pareciam mais fortes do que o diamante?
20. E que rei é tão poderoso e dirige uma campanha depois de morto? Levanta troféus vitoriosos contra os inimigos, e preenche todo lugar, região e cidade, grega ou bárbara, com dedicações de suas régias moradas e de templos divinos, como esses belíssimos ornamentos e oferendas que vemos neste templo? Porque também estes próprios objetos são realmente veneráveis e grandes, dignos de admiração e estupor, como provas claras que são da realeza de nosso Salvador. Porque também agora Ele falou, e as coisas se fizeram; Ele o mandou, e foram criadas[34] (e, quem resistiria à autoridade do rei e chefe universal, do próprio Verbo de Deus?). Isto, para uma conside­ração e uma interpretação exatas, necessitaria espaço e discurso próprios.
21. Em realidade, a quantidade e a qualidade do zelo dos que trabalharam não é julgada tão importante por aquele que chamamos Deus e que está contemplando o templo vivo que sois vós e vela pela casa de pedras vivas[35] e bem montadas, e assentada com toda segurança sobre o fundamento dos apóstolos e profetas, cuja pedra angular é Jesus Cristo[36], a quem rechaça­ram, não somente os construtores daquela antiga edificação que já não existe, mas também os da edificação de muitos homens subsistente até hoje, por serem maus arquitetos de más obras. Mas o Pai a provou, e tanto então como agora a estabeleceu como cabeça de ângulo desta nossa Igreja comum.
22.  Em conseqüência, se alguém pensa a respeito, quem poderia atrever-se a descrever este templo vivo do Deus vivo?[37], cujo material de construção sois vós mesmos? Refiro-me ao maior santuário e o mais digno de Deus por toda a verdade da palavra, cujo interior mais profundo é inacessível e invisível para o vulgo, porque realmente é santo, e santo dos santos. E quem será capaz mesmo de abaixar-se para olhar dentro do recinto sagrado, se não unicamente o grande pontífice de todos?, o único a quem é permitido esquadrinhar os mistérios de toda alma racional?
23.  Mas talvez também seja possível a outro ser o segundo, depois d'Ele, um apenas, único entre os iguais: o que foi estabelecido chefe do exército aqui presente, a quem o primeiro e grande pontífice em pessoa, depois de honrá-lo com o segundo lugar dos ministérios sagrados daqui, instituiu como pas­tor de vosso divino rebanho, e a quem coube pela sorte vosso povo por escolha e por juízo do Pai, que assim o constituía seu servidor e intérprete, novo Aarão e novo Melquisedeque feito semelhante ao filho de Deus, que permanece e que Deus conserva continuamente pelas orações conjuntas de todos nós[38].
24.  A este pois, e a ele somente, depois do primeiro e sumo pontífice, é permitido, se não no primeiro posto, mas ao menos no segundo, ver e inspecionar os mais recônditos aspectos de vossas almas. Por sua experiência de longos anos, conhece-vos a cada um com exatidão; e por sua diligência e cuidado vos tem a todos bem-dispostos na ordem e na doutrina da piedade, e mais do que todos os outros é capaz de explicar com razões que rivalizam com as obras tudo o que ele mesmo levou a cabo com ajuda do poder divino.
25. Pois bem, nosso primeiro e sumo pontífice diz: tudo o que vê o Pai fazer, o Filho também o faz[39]. E assim também este[40], como se com os puros olhos de sua mente contemplasse o primeiro mestre, quantas coisas o vê fazer também realiza, e valendo-se delas como exemplos e arquétipos, tenta modelar suas imagens com a maior semelhança que lhe é possível, nada
devendo àquele Beseleel a quem Deus mesmo havia preenchido com o espírito de sabedoria, de inteligência e de outros conhecimentos técnicos e científicos, chamando-o para ser artífice da construção do templo dos tipos celestes por meio de símbolos[41].
26.     De igual maneira este homem, levando impresso em sua alma o Cristo inteiro, o Verbo, a Sabedoria e a Luz, nos é possível dizer com que grandeza de sen­timentos, com que mão liberal e insaciável de previsão e com que emulação de todos vós - pois vos traria grande orgulho a magnanimidade de vossas contribuições, não ficando de modo algum atrás dele em seu próprio pro­pósito - construiu este magnífico templo do Altíssimo, semelhante por sua natureza ao modelo melhor, quanto pode o visível sê-lo do invisível[42]. E este lugar - que também merece ser mencionado como o primeiro de todos -, ainda que por obra dos inimigos se achasse sepultado sob montes de todo tipo de imundícies, ele não o desdenhou nem cedeu à maldade dos culpados, apesar de ser-lhe possível ir a outro lugar - havia milhares deles pela cidade - onde acharia facilidade para o trabalho e estaria longe de problemas.
27. Ele mesmo foi o primeiro que se animou à tarefa. Logo, infundindo força com seu entusiasmo a todo o povo e formando com todos como uma grande e única mão, travou este primeiro combate. Ele pensava que exatamente esta igreja que havia sido destruída pelos inimigos, que havia penado a primeira e havia sofrido as mesmas perseguições que nós e inclusive antes de nós, que como uma mãe havia sido privada de seus filhos, esta igreja sobretudo tinha que participar também no gozo do magnífico presente do Deus santíssimo.
28. Efetivamente, o grande pastor, depois de espantar as feras, os lobos e todo tipo de bestas cruéis e selvagens, e depois de quebrar os dentes dos leões, como dizem as divinas Escrituras[43], novamente julgou conveniente juntar no mesmo lugar seus filhos, e com perfeitíssimo direito levantou o aprisco de seu rebanho para envergonhar o inimigo e o rebelde[44], e para oferecer uma refutação da audácia dos ímpios em sua luta contra Deus.
29.  E agora aqueles homens odientos de Deus já não existem, porque tampouco existiam[45]. Depois de haver causado e de haver sofrido por sua vez perturbações por breve tempo, e depois de suportar um castigo irrepreensível em justiça, eles mesmos se arruinaram por completo e arruinaram seus amigos e suas famílias, tanto que as predições gravadas outrora em esteias são reconhecidas agora como verdadeiras ante os fatos. Por meio destes, a palavra divina afirma como verdadeiras as outras coisas, mas também o que declara acerca daqueles:
30.  "Os pecadores desembainharam uma espada; esticaram seu arco para abater o pobre e o indefeso, para degolar o reto de coração. Oxalá sua espada penetre em seus próprios corações e seus arcos se quebrem![46]; e novamente: Sua memória se perdeu com o eco, e seus nomes estão apagados para sempre e pelos séculos dos séculos, porque realmente, achando-se entre males gritaram, mas não havia quem os salvasse; gritaram ao Senhor, e não os escutou[47]. Mesmo assim, travaram-se-lhes os pés e caíram. Mas nós nos levantamos e nos endireitamos[48]. E ante os olhos de todos mostra-se verdadeiro o que se predizia com estas palavras: Senhor, em tua cidade reduzirás a nada sua imagem[49].
31.  Eles, que levantaram uma luta contra Deus parecida com a dos gigantes, tiveram um final igualmente catastrófico. Por outro lado, o fim daquela[50], deserta e rechaçada pelos homens, foi como se viu, o da paciência de Deus, segundo proclama a profecia de Isaías, que diz assim:
32.  "Exulta, deserto sedento! Que se alegre o deserto e floresça como lírio! E a terra árida florescerá e exultará. Fortalecei-vos, mãos lânguidas e joelhos desfalecidos! Consolai-vos, pusilânimes de coração, fortalecei-vos, não temais! Vede que nosso Deus responde com um juízo e julgará. Ele mesmo virá e vos julgará, porque - diz - brotou água no deserto, e uma torrente na terra sedenta, e a que estava sem água se converterá em lago, e na terra sedenta haverá um manancial de água[51].
33.  E estas coisas, previstas antigamente em palavras, estão referidas nos livros sagrados. Mas sua realidade já não nos foi transmitida de ouvido, mas de fatos. Esta, a deserta, a sem água, a viúva, a indefesa, aquela cujas portas haviam derrubado a machadadas como bosques de lenha, a que em con­senso destruíram com machados e achas e na qual, depois de haver destruído seus livros, tocaram fogo ao santuário de Deus, profanaram em terra o tabernáculo de seu nome; esta, da qual todos arrancavam quando passavam pelo caminho depois que derrubaram sua cerca, a que o javali devas­tara desde o bosque e a fera solitária destroçara, agora, pelo poder mila­groso de Cristo e quando Ele mesmo o quis, veio a ser como um lírio, pois também então era castigada por vontade d'Ele, como o faria um pai cuida­doso, porque o Senhor repreende a quem ama e açoita a quem recebe como filho.
34. Assim pois, uma vez corrigida na devida medida, outra vez foi-lhe orde­nado de cima que se alegrasse, e florescerá como lírio e exalará para todos os homens um bom odor divino, porque, diz, brotou água no deserto, a corrente da divina regeneração do banho salvador. E agora, a que há pouco era deserto converteu-se em. lago, e na terra sedenta borbotou um manan­cial de água viva, e as mãos, antes lânguidas, fortaleceram-se realmente. E prova grande e manifesta da força dessas mãos são estas obras. Mas inclusive os joelhos, noutro tempo estropeados e desfalecidos, recobrando sua habitual força para andar, marcham bem retos pelo caminho do conhe­cimento de Deus e apressam seu passo até o familiar rebanho do Pastor santíssimo.
35.     E ainda que alguns tivessem suas almas embotadas pelas ameaças dos tiranos, tampouco os deixa sem cura o Verbo salvador. Muito pelo contrário, também estes ele cura e os exorta ao consolo de Deus, dizendo:
36. "Consolai-vos, pusilânimes de coração; fortalecei-vos, não temais! A palavra que predizia que aquela que se havia convertido em deserto por causa de Deus haveria de gozar de todos estes bens, foi ouvida por este nosso novo e bom Zorobabel com o agudíssimo ouvido de sua mente, depois daquele amargo cativeiro e da abominação da desolação[52]. Não desdenhou as ruínas mortas. Em primeiríssimo lugar, com súplicas e orações, e com o unânime sentimento de todos vós, aplacou o Pai, e tomando como aliado e colaborador o único que pode reanimar os mortos, levantou a que estava caída - depois de purificá-la e curá-la previamente de seus males - e envolveu-a com uma veste, não com a antiga dos tempos remotos, mas com aquela sobre a qual lhe instruíam os divinos oráculos quando claramente dizem: E a glória desta nova casa será maior do que a da primeira[53].
37. E assim, todo o terreno que demarcou era muito maior[54]. Por fora fortificou o recinto com um muro em toda a volta, de maneira que fosse uma defesa segura para toda a obra.
38. Abriu um vestíbulo amplo e de grande altura, que se voltava aos próprios raios do sol nascente, e com isto proporcionou aos que estão longe, fora dos muros sagrados, o poder contemplar sem restrição o que há dentro, quase fazendo voltar-se a vista dos estranhos à fé para suas primeiras entradas, de modo que ninguém pudesse passar ao largo sem que antes a dor lhe penetrasse na alma pela recordação da desolação passada e pela admiração da extraordinária obra de agora. Talvez esperasse que alguém, afetado por isso, se deixasse arrastar, e por seu próprio olhar se dirigisse à entrada.
39.      Mas a quem entrou pelas portas não se permitiu de imediato pisar com pés impuros e sujos os lugares santos do interior, mas, separando o mais possível o intervalo entre o templo e as primeiras entradas, adornou todo o derredor com quatro pórticos oblíquos, cercando assim o lugar em forma mais ou menos quadrangular, com colunas que se alçam de todas as partes e cujos intervalos se fecham em toda a volta com barreiras de treliça de madeira, a uma altura conveniente. O centro do átrio foi deixado livre para que se visse o céu, oferecendo assim um ar puro e aberto aos raios do sol.
40.  E ali colocou os símbolos das purificações sagradas: frente à fachada do templo fez construir fontes que, com o abundante fluir de sua corrente, facilitam a purificação para os que avançam dentro dos recintos sagrados. E este é o primeiro lugar dos que entram, lugar que proporciona a todos ornamento e beleza, e aos que ainda necessitam as primeiras iniciações, uma estância adequada.
41.  Mas, superando inclusive o espetáculo de tudo isto, fez as entradas do templo ainda muito mais abertas, com numerosos vestíbulos interiores. Numa só face - novamente o que cai sob os raios do sol - colocou três portas, e delas quis que a do meio fosse, por muito, superior às outras duas em altura e largura, e adornou-as, antes de tudo, com placas de bronze, presas com ferros, e com variados desenhos em relevo, e sujeitou a esta, como a uma rainha, as outras duas na qualidade de escolta.
42.  De igual maneira dispôs também para os pórticos de um e de outro lado do templo o número dos vestíbulos; idealizou também, para ter mais luz de cima, diferentes aberturas sobre o edifício e as adornou rodeando-as com finos e multicoloridos trabalhos em madeira.
Quanto ao edifício basilical[55], consolidava-o com materiais mais ricos e abundantes, sem regatear gastos.
43.  Aqui me parece supérfluo andar descrevendo com palavras o comprimento e a largura do edifício, esta esplêndida formosura e sua grandeza, superiores a toda palavra, o aspecto brilhante das obras, assim como sua altura, que chega ao céu, e os preciosos cedros do Líbano colocados acima de tudo, dos quais nem o oráculo divino silencia a menção, pois diz: Revigoram-se as árvores do Senhor e os cedros do Líbano que ele plantou[56].
44.  Para que necessito eu agora andar compondo uma descrição exata da sapientíssima e arquitetônica disposição, assim como da soberba beleza de cada uma das partes, quando o testemunho da vista torna desnecessário o ensi­namento que chega aos ouvidos? Mas assim é que, depois de haver assim terminado o templo, adornou-o com tronos mui elevados para honrar os que presidem, e ainda com bancos dispostos em ordem para os comuns, segundo corresponde. E depois de tudo isto, pôs no meio o altar, como santo dos santos, e para que não fosse acessível à massa, cercou-o também com treliçados de madeira cuidadosamente adornados com finos trabalhos de arte até em cima, oferecendo assim um admirável espetáculo a quantos o vêem.
45.  Mas deve-se saber que tampouco descuidou do pavimento. Também este fez brilhar com todo tipo de adornos em pedra de mármore. E por último passou ao exterior do templo e construiu êxedras e edifícios muito grandes de um e de outro lado, habilmente ligados pela face ao edifício basilical, formando um todo e unidos com passadiços que vão ao edifício central. E todas estas construções levou-as a cabo nosso mui pacífico Salomão[57], o que edificou o templo do Senhor, para os que ainda estão necessi­tando a purificação e a ablução que se dão pela água e o Espírito Santo, de tal modo que já não é palavra, mas que foi feita realidade a profecia lida mais acima.
46.  Porque também agora ocorre em verdade que a glória desta nova casa será maior do que a da primeira.
Efetivamente, depois que seu Pastor e Senhor sofreu a morte por ela, uma vez por todas, e depois que na paixão transformou o corpo de imundície que por ela havia vestido em corpo brilhante e glorioso, e depois de livrar da corrupção a carne e levá-la à incorrupção, era necessário e conveniente que também esta Igreja colhesse de igual modo os frutos dos desígnios do Salvador. Posto que realmente recebeu d'Ele uma promessa de bens muito melhores que estes, deseja receber de maneira suficiente e pelos séculos vindouros a glória muito maior da regeneração na ressurreição de um corpo incorruptível em companhia do coro dos anjos de luz nos palácios de Deus, além dos céus e com o próprio Cristo Jesus, benfeitor e salvador universal.
47. Mesmo assim, enquanto isto, no tempo presente, a que antes se achava viúva e deserta, depois que pela graça de Deus está rodeada de flores, converteu-se realmente em um lírio, segundo diz a profecia, e tendo tomado novamente a veste nupcial e cingindo-se a coroa da divindade, por meio de Isaías aprende a dançar, enquanto com cantos de louvor apresenta os sacrifícios de ação de graças a seu rei e Deus.
48.  Ouçamo-la dizer: Alegre-se minha alma no Senhor, porque vestiu-me com uma veste de salvação e uma túnica de alegria. Cingiu-me uma diadema como a um esposo, e como a uma esposa enfeitou com jóias. E como terra que faz crescer suas flores, e como jardim que fará germinar suas-sementes, assim o Senhor fez germinar a justiça e o regozijo diante de todas as nações[58]. Ao som destas palavras, pois, ela dança.
49. Mas, em que termos lhe responde o Verbo celestial, o próprio Jesus Cristo? Ouve o Senhor dizer: Não temas porque te desonraram nem te inquietes porque te ultrajaram. Porque esquecerás tua vergonha perpétua e não te lembrarás mais do ultraje da viuvez. O Senhor não te chamou como mulher abandonada e diminuída nem como mulher odiada desde a juventude. Disse teu Deus: por breve tempo te abandonei, e em minha grande misericórdia terei misericórdia de ti. Num momento de indignação afastei meu rosto de ti, e numa misericórdia perpétua terei misericórdia de ti, disse o Senhor que te livrou[59].
50. Desperta, desperta, tu que bebes da mão do Senhor o vaso de sua ira. Porque o vaso da queda, o vaso de minha ira bebeste e o esgotaste, e não havia quem te consolasse de todos teus filhos que engendraste, e não havia quem te tomasse pela mão. Vede que tomei de tua mão o vaso da queda, o vaso de minha ira, e dele não mais beberás, e o porei nas mãos dos que te maltrataram, dos que te humilharam.
51. Desperta, desperta! Veste-te a força, veste-te tua glória. Sacode o pó e levanta-te. Senta-te. Desata as cadeias de teu pescoço[60]. Levanta teus olhos em torno, vê a todos teus filhos reunidos. Vede, juntaram-se e vieram a ti. Por minha vida, diz o Senhor, que te revestirás de todos eles como adorno e deles te cingirás como noiva. Porque teus desertos, e tuas ruínas e tuas terras assoladas agora serão apertadas para os que te habitam, e os que te devoravam serão lançados longe de ti.
52.  Porque te dirão ao ouvido teus filhos, os que tinhas perdidos: meu lugar é estreito, faça-me lugar para que possa habitar; e dirás em teu coração: quem me engendrou estes? Eu estava sem filhos e viúva, mas estes, quem os criou? Eu fiquei só e abandonada, de onde me vêm estes?[61]
53.  Isto profetizou Isaías. Isto se achava consignado desde longo tempo nos livros sagrados, acerca de nós, mas era necessário, de certa forma, que percebêssemos alguma vez nas obras a infalibilidade destas predições.
54.  Mas como o esposo, o Verbo, pronunciou estas palavras para sua própria esposa, a sagrada e santa Igreja, era razoável que o padrinho, aqui pre­sente, ajudado com as orações unânimes de todos vós e depois de oferecer vossas próprias mãos, despertasse esta, a deserta, a que jazia caída, a que não tinha esperança entre os homens. E pela vontade de Deus, rei universal, e pela manifestação do poder de Jesus Cristo, conseguiu levantá-la, e uma vez ressuscitada, preparou-a como lhe ensinava a descrição dos sagrados oráculos.
55.      Grandíssima maravilha esta e que excede toda admiração! Sobretudo para aqueles que fixam sua atenção somente na aparência do exterior. Mas ainda mais admiráveis que estas maravilhas são os arquétipos e seus protótipos inteligíveis, assim como seus divinos modelos; quero dizer a renovação do edifício divino e racional nas almas.
56.      Este edifício realizou-o a sua própria imagem o próprio Filho de Deus, e em tudo e por tudo o dotou de divina semelhança, de natureza imortal e de substância incorpórea, racional, livre de toda matéria terrena e por si mesma espiritual: depois de começar a constituí-la, uma vez por todas, no ser a partir do não ser, fez dela para si mesmo e para o Pai uma esposa santa e um templo sacratíssimo, o que bem claramente confessa e manifesta Ele mesmo quando diz: Habitarei neles e em meio deles passarei e serei seu Deus, e eles serão meu povo[62]; e a alma perfeita e purificada, assim criada desde o princípio, era tal que levava em si a imagem do Verbo celestial.
57.  Mas quando, por inveja e ciúmes do demônio, amigo do mal, converteu-se em sensual e amiga do mal por livre escolha dela mesma[63], ao retirar-se dela pouco a pouco a divindade e ficar como privada de um protetor, tornou-se presa fácil e vulnerável ao ataque dos que há longo tempo a queriam mal. Abatida pelas torres de assédio e os mecanismos dos adversários invisíveis e dos inimigos espirituais, derrubou-se em queda extraordinária, até não ficar de pé pedra sobre pedra de sua virtude, antes, toda ela jazia por terra, inteiramente morta e privada por completo de seus naturais pensamentos acerca de Deus.
58.  Em realidade, tendo caído esta, a mesma que havia sido feita à imagem de Deus, não a devastou esse javali que procede do bosque, visível para nós, mas certo demônio corruptor e selvagens feras espirituais que, depois de inflamá-la com paixões como com dardos acesos de sua própria maldade, puseram fogo ao santuário realmente divino, de Deus, e profanaram em terra o tabernáculo de seu nome, para logo, depois de enterrar a desgraçada sob montões de terra, privá-la de toda esperança de salvação.
59. Mas, quando já havia sofrido o merecido castigo de seus pecados, o que cuida dela, o Verbo salvador e emissor de luz divina, obedecendo ao amor do Pai, todo santidade para com os homens, novamente voltou a recebê-la.
60.     Então, tendo eleito em primeiro lugar as almas dos supremos imperadores[64], valendo-se deles, amantíssimos de Deus, limpou inteiramente a terra habitada de todos os indivíduos ímpios e funestos e até dos terríveis tiranos, odientos de Deus. Logo trouxe à luz do dia os homens bem conhecidos por Ele, que em outro tempo haviam-se consagrado com sua vida a Ele e andavam ocultando-se ao abrigo de sua proteção, como numa tempestade de males, e honrou-os mui dignamente com a magnificência do Pai. E logo, também por meio destes[65], purificou e limpou as almas pouco antes manchadas e cobertas de material de toda espécie e montes de terra, que eram as ordens ímpias, usando como enxadas e ancinhos os impressionantes ensinamentos de suas doutrinas[66].
61. E quando terminou a tarefa de deixar brilhante e radiante o solar de vossas mentes, as de todos, então o entregou adiante a este guia, sapientíssimo e mui amado de Deus. E ele, homem de grande discernimento e sensatez em tudo o mais, reconhecendo e discernindo bem a mente das almas que lhe couberam pela sorte, tendo-se posto a edificar, por assim dizer, desde o primeiro dia, esta é a hora que ainda não terminou, pois segue montando em todos vós o ouro brilhante, a prata acrisolada e pura, e até as pedras preciosas e de grande preço, tanto que com suas obras está cumprindo em vós a sagrada e mística profecia em que se diz:
62.     Vede que estou te preparando a pedra de carbúnculo, os fundamentos de safira, as ameias de jaspe e tuas portas de pedras de cristal e tua cerca de pedras escolhidas; e teus filhos serão ensinados de Deus, e tua prole terá grande paz. E serás edificado na justiça[67].
63. Ao edificar, efetivamente, na justiça, ele dividia as forças de todo o povo conforme o mérito: uns ele rodeava somente de uma cerca exterior amuralhando-os com uma fé sem erro (numeroso e grande é o povo incapaz de suportar uma construção mais forte!); outros, confiando-lhes as entradas da casa, mandava ficar às portas e guiar os que entravam, pois não sem razão
são considerados como os vestíbulos do templo; e outros apoiava nas primei­ras colunas do exterior que rodeiam o átrio em quadrilátero, fazendo-os avançar nos primeiros contatos com a letra dos quatro evangelhos. E outros ainda, vai juntando apertadamente a um e outro lado ao redor do edifício basilical, posto que ainda são catecúmenos, em estado de crescimento e de progresso, ainda que não muito separados nem muito longe da visão do mais interior, próprio dos fiéis.
64.      Tomando dentre estes últimos as almas puras, que como o ouro foram purifi­cadas no banho divino, também a algumas delas apoiava em colunas muito mais fortes que as do exterior, nas doutrinas íntimas e místicas da Escritura, enquanto vai iluminando as outras com aberturas que dão para a luz.
65.  E adorna o templo inteiro com o único e grandíssimo vestíbulo da glorificação do primo e único Deus, rei universal, e a cada lado do poder soberano do Pai apresenta os segundos raios de luz, Cristo e o Espírito Santo. Quanto ao resto, através do edifício inteiro, vai demonstrando com abundância e muita variedade a claridade e luminosidade da verdade em cada zona.
E depois de selecionar em todo lugar e de todas as partes as pedras vivas, sólidas e bem firmes das almas, com todas elas vai construindo a grande e régia casa, radiante e plena de luz, por fora e por dentro, pois não somente suas almas e suas mentes, mas também seus corpos, iluminam-se com o múltiplo e florido adorno da castidade e da sobriedade.
66.  Há ainda neste santuário tronos e inúmeros bancos e assentos: outras tantas almas sobre as quais pousam os dons do Espírito divino, como os que em outro tempo viram os sagrados apóstolos e seus acompanhantes, aos quais se manifestaram distribuídas línguas como de fogo que pousaram sobre cada um deles[68].
67.  Mas no principal de todos[69] assenta-se igualmente o próprio Cristo inteiro, enquanto que nos que vêm depois dele, em segundo lugar, somente participações do poder de Cristo e do Espírito Santo, em proporção com o lugar que a cada um compete. As almas de alguns inclusive podem ser bancos de anjos, dos que foram entregues a cada um como pedagogos e custódios.
68.  E o venerável, grande e único altar, qual poderia ser se não a absoluta pureza e santo dos santos da alma do sacerdote comum de todos? De pé, a sua direita, o grande pontífice do universo, Jesus mesmo, o unigênito de Deus, com olhar radiante e com as mãos voltadas, vai tomando de todos o aromático incenso e os sacrifícios incruentos e imateriais apresentados por meio de orações, e os envia ao Pai celestial e Deus do universo. Ele mesmo é o primeiro a adorar e o único a render ao Pai a adoração que lhe corresponde, e logo lhe suplica também que permaneça perpetuamente favorável e propício para com todos nós.
69. Assim é o grande templo que o Verbo, o grande construtor do universo construiu por toda a terra habitada sob o sol, depois de ser Ele mesmo quem fabricou sobre a terra esta imagem espiritual do que há mais além das abóbadas celestes, para que seu Pai pudesse ser honrado e adorado através de toda a criação e de todos os seres viventes e racionais que há sobre a terra.
70.  Mas a legião sobre os céus, os modelos que ali há das coisas daqui, a assim chamada Jerusalém de cima, o monte Sion supraceleste e a supraterrena cidade do Deus vivo, na qual inúmeros anjos em assembléia e uma Igreja de primogênitos registrados nos céus estão celebrando com suas teologias inefáveis e para nós inconcebíveis seu criador e supremo Senhor do universo, nenhum mortal será capaz de cantá-lo como é devido, porque realmente nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais penetrou em coração humano o que realmente Deus preparou para os que o amam[70].
71.  Posto que fomos considerados dignos de ter parte nestes bens, assim homens como crianças e mulheres, pequenos e grandes, todos juntos e com um só coração e uma só alma, confessemos e aclamemos sem cessar jamais o autor de tão grandes bens para nós, o que perdoa propiciamente todas as nossas iniqüidades, o que sana todas nossas enfermidades, o que resgata nossas vidas da corrupção, o que nos coroa com misericórdia e compaixão, o que sacia de bens nosso desejo, porque não agiu conosco segundo nossos pecados nem nos pagou conforme nossas iniqüidades, já que tão longe quanto está o oriente do ocidente, assim afastou de nós nossas iniqüidades. Como um pai se compadece de seus filhos, assim o Senhor se compadeceu dos que o temem[71].
72.  Reavivemos a memória de todos estes bens não somente agora, mas também em todo momento sucessivo. Agora pois, tendo sempre ante os olhos, de noite e de dia, a todas as horas, e por assim dizer, a cada inspiração, o autor e diretor chefe da presente assembléia festiva e deste esplêndido e brilhante dia, amemo-lo e veneremo-lo com toda a força de nossas almas. E agora, ponhamo-nos de pé e supliquemo-lhe com voz forte e grande disposição, para que, abrigados até o fim sob seu redil, nos salve e nos outorgue como prêmio a inquebrantável, inamovível e eterna paz em Cristo Jesus, nosso Salvador, pelo que seja glorificado por todos os séculos dos séculos. Amém."

  1. O que mais te chamou atenção no texto?
  2. Qual a contribuição do texto para sua espiritualidade?







[1] SL 97 (98): 1-2.
[2] Mt 13:17.
[3] Sl 45(46):9-10.
[4] Sl 36 (37):35-36.
[5] Rm 12:5; 1 Co 12:12.
[6] Ez 37:7-10.
[7] At 4:32.
[8] Sl 148:12.
[9] Todos os comentaristas concordam que se trata do próprio Eusébio, então já bispo de Cesaréia.
[10] Ainda que o nome não seja citado, trata-se de Paulino.
[11] Também chamado Bezalel.
[12] Ex 31:2; 35:30-34.
[13] Sl 43:2 (44:1).
[14] Sl 135 (136):12.
[15] Sl 47:9 (48:8).
[16] 1 Tm 3:15.
[17] Sl 86 (87):3.
[18] Sl 121 (122):1.
[19] Sl 25 (26):8.
[20] Sl 47:2 (48:1-2)
[21] Sl 44:3 (45:2).
[22] Sl 71 (72): 18.
[23] Jó 9:10.
[24] Dn 2:21.
[25] Sl 112 (113):7.
[26] Lc 1:52-53.
[27] Jó 38:15.
[28] Sl 97 (98): 1.
[29] Is 53:4-5.
[30] Sl 57 (58):9.
[31] Js 5:14.
[32] Os augustos Constantino e Licínio.
[33] Só pode se referir a Roma e ao arco de Constantino.
[34] Sl 32 (33):9; 148:5.
[35] 1 Pe 2:5.
[36] Ef 2:20-21.
[37] 1 Co 3:16-17.
[38] Está se referindo ao bispo de Tiro, Paulino.
[39] Jo 5:19.
[40] Paulino.
[41] Ex 31:2-4; Hb 8:5.
[42] O edifício material é imagem visível da Igreja.
[43] Sl 57:7 (58:6).
[44] Sl 8:2-3.
[45] Ap 17:8,11.
[46] Sl 36 (37):14-15.
[47] Sl 17:42(18:41).
[48] Sl 19:9 (20:8).
[49] Sl 72 (73):20.
[50] A Igreja.
[51] Is 35:1-7. Para Eusébio o deserto de Isaías é imagem da Igreja.
[52] Dn 9:27.
[53] Ag 2:9.
[54] Eusébio começa a descrever os planos e a construção da igreja. É o mais antigo relato deste tipo, e ele fez o mesmo sobre outras igrejas. Devemos lembrar que Eusébio não era arquiteto, mas um orador comprometido com os recursos da retórica.
[55] A igreja propriamente dita.
[56] Sl 103 (104):16.
[57] Jogo de palavras com o nome Salomão, que significa "pacífico".
[58] Is 61:10-11.
[59] Is 54:4-8.
[60] Is 51:17-18; 22-23; 52:1-2.
[61] Is 49:18-21.
[62] 2 Co 6:16.
[63] O orador vai comparar a igreja material com o templo espiritual, às vezes com simbolismos difíceis de explicar satisfatoriamente.
[64] Os augustos, Constantino e Licínio.
[65] Os bispos que haviam permanecido fiéis.
[66] Alusão aos apóstatas arrependidos e admitidos à penitência.
[67] Is 54:11-14.
[68] At 2:3. Sem dúvida alusão ao bispo e seu presbitério.
[69] No bispo.
[70] 1 Co 2:9.
[71] Sl 102(103):3-5, 10, 12-13.

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