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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Irineu de Lyon (130-202)
Demonstração
da Pregação Apostólica (Cap. 29-38)
A
distribuição da terra
29. Quando
Moisés estava a ponto de terminar o curso de seus dias, Deus lhe disse: “Sobe a
esta montanha dos Abarim, sobre o monte Nebo, na terra de Moab, diante de Jericó,
e contempla a terra de Canaã, que eu dou como propriedade aos israelitas. Morrerás
no monte em que tiveres subido e irás reunir-te aos teus, assim como o teu irmão
Aarão, que foi reunido ao seu povo no monte Hor, pois fostes infiéis a mim no meio
dos israelitas, junto às águas de Meribacades, no deserto de Sin, não
reconhecendo a minha santidade no meio dos israelitas. Por isso contemplarás a
terra à tua frente, mas não poderás entrar nela, na terra que estou dando aos
israelitas”. Conforme a palavra do Senhor, Moisés morreu e lhe sucedeu Jesus
(Josué), filho de Num. Esse atravessou o Jordão, conduziu o Povo à Terra
Prometida e, vencidos e aniquilados os sete povos que a habitavam, a distribuiu
entre o Povo. Lá existia Jerusalém, onde reinou Davi e o seu filho Salomão, que
construiu o Templo em nome de Deus à imagem do tabernáculo feito por Moisés
como tipo (modelo) das realidades celestes e espirituais.
O
envio dos profetas
30. Lá em
Jerusalém foram enviados por Deus, por meio do Espírito Santo, os profetas, que
aconselhavam o povo e o convertia ao Deus Onipotente de seus pais; como arautos
da revelação de Nosso Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, anunciavam que à estirpe
de Davi havia de florescer o seu corpo, a fim de que fosse, segundo a carne,
filho de Davi – que era filho de Abraão – em virtude de uma longa cadeia de
gerações, e, segundo o Espírito, Filho de Deus, preexistente com o Pai, gerado
antes da fundação do mundo e aparecido como homem ao mundo inteiro nos últimos
tempos. Ele é o Verbo de Deus [enviado] “para levar o tempo à sua plenitude: a
de em Cristo encabeçar todas as coisas, as que estão nos céus e as que estão na
terra”.
A
desobediência e a Encarnação
31. [O Verbo]
Uniu, assim, o homem a Deus, e realizou a comunhão entre Deus e o homem, porque
não teríamos podido absolutamente obter participação alguma na incorruptibilidade
se ele, o Verbo, não tivesse vindo habitar entre nós. Pois, se a incorruptibilidade
tivesse permanecido invisível e oculta, não nos teria sido de utilidade alguma,
mas se fez visível a fim de que entrássemos em comunhão com ele. E porque, envolvidos
todos na criação originária de Adão, fomos vinculados à morte por causa de sua
desobediência, era conveniente e justo que, pela obediência de quem se fez
homem por nós, fossem rompidas as cadeias da morte. E porque a morte reinava
sobre a carne, era preciso que ela fosse abolida por meio da carne, para que o
homem fosse libertado de sua opressão. O Verbo, então, se fez carne para
destruir, por meio da carne, o pecado que, por obra da carne, adquiriu poder, o
direito de propriedade e domínio; e para que [o pecado] não existisse mais
entre nós. Por essa razão, Nosso Senhor tomou uma corporeidade idêntica à da
primeira criatura para lutar em favor dos progenitores e vencer em Adão aquele
que em Adão nos feriu.
Adão
e Cristo
32. Ora, de onde
provém a substância do primeiro homem? Da vontade e da sabedoria de Deus e da
terra virgem. “Porque Iahweh Deus não tinha feito chover sobre a terra – diz a
Escritura – e não havia homem para cultivar o solo”. Dessa terra, então,
todavia virgem, Deus tomou o barro e plasmou o homem, princípio do gênero
humano. [O Senhor,] recapitulando em si esse homem, princípio do gênero humano,
nascendo de uma virgem por vontade e sabedoria de Deus, reproduziu o mesmo
esquema de corporeidade para demonstrar a identidade da sua corporeidade com a
de Adão, e para refazer, como foi feito no início, o homem à imagem e
semelhança de Deus.
Eva
e Maria
33. Como, por causa de uma virgem
desobediente, o homem foi ferido, caiu e morreu, assim também, por causa de uma
virgem obediente à Palavra de Deus, [o homem] foi ressuscitado e recobrou a
vida. Pois o Senhor veio buscar a ovelha perdida, ou seja, o homem que se
perdeu. Por isso, não formou um corpo diverso, mas, por meio daquele que
descendia de Adão, conservou a semelhança daquele corpo. Adão, de fato, foi
recapitulado por Cristo, a fim de que o que é mortal fosse submerso na
imortalidade, e Eva em Maria, a fim de que uma virgem, tornada advogada de uma
virgem, dissolvesse e destruísse com a sua obediência de virgem a desobediência
de uma virgem. O pecado cometido por causa da árvore foi anulado pela
obediência cumprida sobre a árvore, obediência a Deus, pela qual o Filho do
homem foi pregado na árvore, abolindo a ciência do mal, e proporcionando e
doando a ciência do bem. O mal é desobedecer a Deus. O bem é, ao invés,
obedecer.
Obediência
reparadora do Verbo
34. O Verbo,
preanunciando por meio do profeta Isaías os acontecimentos futuros – os profetas
são tais porque anunciam os acontecimentos futuros – assim se exprime: “O Senhor
Iahweh abriu-me os ouvidos e eu não fui rebelde, não recuei. Ofereci o dorso
aos que me feriam e as faces aos que me arrancavam os fios da barba; não
ocultei o rosto às injúrias e aos escarros”. Então, por força “da obediência”,
[o Verbo] anulou a antiga desobediência consumada sobre a árvore. Ele mesmo é o
Verbo de Deus onipotente, que, no estado de invisibilidade, se difundiu no universo
inteiro, que [o] abraça em comprimento, largura, altura e profundidade. Todas
as coisas, de fato, são governadas e administradas pelo Verbo de Deus. Nessas
dimensões, foi crucificado o Filho de Deus já impresso sobre o universo em
forma de cruz; fazendo-se visível, manifestou a universalidade de sua cruz,
demostrando claramente, na forma visível, a sua atividade consistente na
iluminação da altura, ou seja, os meandros da terra, na extensão do Oriente ao
Ocidente, no governo como um comandante da região do Oeste e da amplitude do
Sul, e no chamado ao conhecimento do Pai de todos os homens dispersos.
O
cumprimento da promessa de Abraão
35. Realizou-se,
assim, a profecia feita por Deus a Abraão, segundo a qual a sua descendência
seria como as estrelas do céu. Cristo cumpriu a promessa, nascendo da Virgem,
da estirpe de Abraão, e convertendo em luminárias do mundo os que nele acreditam,
e justificando os gentios com Abraão por meio da mesma fé. “Abraão creu
em Iahweh, e lhe foi tido em conta de
justiça”. Do mesmo modo, nós somos justificados em virtude da fé em Deus,
porque “o justo viverá por sua fidelidade”. A promessa de Abraão não foi feita
pelo cumprimento da Lei, mas por meio da fé. De fato, Abraão foi justificado
pela fé: “sabendo que ela não é destinada ao justo”. Da mesma forma, nós não
somos justificados pela Lei, mas pela fé, que recebeu o testemunho da Lei e dos
profetas, e que nos apresenta o Verbo de Deus.
Cristo,
nascido da Virgem da descendência de Davi
36. Deus manteve
as promessas feitas a Davi; havia-lhe prometido fazer surgir do fruto do seu
seio um Rei eterno, cujo reino não teria ocaso. Esse Rei é o Cristo, o Filho de
Deus tornado filho do homem, isto é, nascido, como fruto, da Virgem da descendência
davídica. A promessa, então, ganhou forma de fruto do ventre, isto é, de um
descendente da concepção própria de uma mulher – não “do fruto dos homens ou dos
rins” – isto é, do nascimento próprio do homem, para manifestar o que de único
e de especial havia na produção desse fruto do seio de uma virgem davídica, [fruto]
que devia ser o Rei eterno na casa de Davi, e cujo reino não terá ocaso.
A
destruição da morte e o dom da vida
37. Em tais
condições se realizava magnificamente a nossa salvação, [esse Rei] mantinha as
promessas feitas aos patriarcas e abolia a antiga desobediência. O Filho de Deus
se fez filho de Davi e filho de Abraão. Para cumprir as promessas e
recapitulá-las em si mesmo com a finalidade de nos restituir a vida, o Verbo de
Deus se fez carne através da Virgem, a fim de desatar a morte e vivificar o
homem, porque nós estávamos presos ao pecado e destinados a viver sob o império
da morte.
Nascimento,
morte e ressurreição de Cristo
38. Deus Pai,
pela sua imensa misericórdia, enviou o seu Verbo criador, que, vindo para nos
salvar, esteve nos mesmos lugares, na mesma situação e nos mesmos ambientes onde
perdemos a vida, e rompeu as cadeias que nos mantinham prisioneiros. Com a aparição
de sua luz desapareceram as trevas da prisão, santificou o nosso nascimento e, destruída
a morte, desligou aqueles mesmos laços que nos tinham prendido. Manifestou a
ressurreição, tornando-se ele mesmo o primogênito dos mortos, e levantou na sua
pessoa o homem caído por terra, ao ser elevado às alturas do céu até a direita
da glória do Pai, como Deus havia prometido por meio do profeta, ao dizer: “Naquele
dia levantarei a tenda desmoronada de Davi”, isto é, o corpo que provém de Davi.
Nosso Senhor Jesus Cristo realmente cumpriu essa empresa, realizando de modo glorioso
a nossa salvação, para nos erguer realmente e nos apresentar livres ao Pai. Ora,
se alguém não aceita o seu nascimento de uma Virgem, como aceitará a sua ressurreição
da morte? Porque não há nada de miraculoso, de estranho, de inesperado, se
alguém que não é nascido ressuscite da morte; nem podemos falar de
“ressurreição” para aquele que veio à existência sem passar pelo nascimento: na
verdade, quem não pode nascer é imortal e quem não foi sujeito ao nascimento
não será também sujeito à morte. Então, como pode ter fim o homem que não teve
início?
O que você
deseja destacar neste texto?
Como ele serviu
para sua espiritualidade?
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