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Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Tertuliano de Cartago (155-220)
Apologia (Capítulo 24
- 27)
CAPÍTULO
XXIV A explanação inteira desse assunto pelas quais se deduz que eles não
são deuses, e que não existe senão um Deus - o Deus que adoramos - é
perfeitamente suficiente para nos isentar do crime de traição, principalmente
contra a religião romana. Pois, se está claro que tais deuses não existem, não
há religião, no caso. Se não existe religião - porque esses deuses não existem
- somos certamente inocentes de qualquer ofensa contra a religião.
Em vez disso, a responsabilidade
recai sobre vós. Por adorardes uma mentira, sois de fato culpados do crime de
que nos acusais, não simplesmente porque recusais a verdadeira religião do
verdadeiro Deus, mas porque ousais perseguí-Lo.
Mas, concedendo que esses seres
objetos de vossa adoração sejam realmente divindades, não se deve reconhecer
universalmente que há um Deus mais elevado e mais poderoso, como ordenador
principal do mundo, dotado de poder e majestade absolutos?
De modo usual, se atribui a Deus
um poder imperial e supremo, enquanto suas tarefas são distribuídas por muitas
divindades, como Platão descreve a respeito do supremo Júpiter habitando nos
céus, cercado por uma organização de divindades e demônios.
Convém-nos, portanto, mostrar
igual respeito aos procuradores, prefeitos e governadores do Império divino. E
por maior crime que alguém cometa, quando, entre nós, uma transgressão capital
está restrita à apelação da mais alta autoridade, ninguém além de César, tal
pessoa delega seus esforços e suas esperanças a outro, com o objetivo de obter
um maior favor do Imperador. Ele não sai declarando que o apelo a Deus ou ao
Imperador depende somente do Supremo Senhor.
Que um homem adore Deus, outro a
Júpiter; que um levante as mãos suplicantes para os céus, outro para o altar de
Fides; outro (se tendes esse ponto de vista) faça sua prece às nuvens, outro
aos objetos do teto; que um consagre sua própria vida a seu Deus, e outro a uma
cabra. Por ver que não dais importante valor à acusação de irreligião,
proibindo a liberdade religiosa ou a escolha livre de uma divindade, não sei
como não posso adorar de acordo com minha inclinação, mas sou obrigado a adorar
contra ela.
Nem também um ser humano gostaria
de receber homenagem prestada a contragosto, e assim os próprios egípcios
receberam permissão para o uso legal de sua ridícula superstição, liberdade
para fazer de pássaros e feras seus deuses, assim como para condenar à morte
quem quer que mate um deus dessa espécie.
Mesmo cada província e cada
cidade tem seu deus. A Síria tem Astartéia, a Arábia tem Dusares, os Nórdicos
têm Beleno, a África tem sua Celeste, a Mauritânia também suas próprias
dignidades.
Eu falei, penso, das Províncias
Romanas, e contudo não falei que seus deuses são romanos. Pois que eles não são
adorados em Roma, tanto quanto outros que são listadas como divindades em toda
a própria Itália por consagração municipal, como Delventino de Cassino,
Visidiano de Narnia, Ancária de Áusculo, Nórcia de Orvieto, Valência de
Ocrículo, Hóstia de Sátrio, o Pai Curls de Falisco, em honra do qual, também,
Juno recebeu seu sobrenome.
De fato, somente nós somos
proibidos de ter uma religião própria nossa. Ofendemos aos romanos, somos
excluídos de direitos e de privilégios dos romanos porque não adoramos os
deuses de Roma. Seria bom que houvesse um único Deus para todos, do qual todos
fôssemos adoradores, quiséssemos ou não.
Mas com vossa liberalidade
permitis adorar qualquer deus exceto o verdadeiro Deus, como se Ele não fosse o
Deus que todos devessem adorar, ao qual todos pertencem. »
CAPÍTULO
XXV Eu penso que
ofereci prova suficiente sobre a questão da falsa e da verdadeira divindade,
mostrando que a prova está não simplesmente fundamentada em debate ou
argumento, mas no testemunho dos próprios seres em quem pondes a vossa fé, de
modo que esse assunto não precisa mais de discussão.
Contudo, tendo começado a
naturalmente falar dos romanos, não posso evitar a controvérsia que é provocada
pela divulgada afirmação daqueles que afirmam que, como uma recompensa de sua
singular homenagem à religião, os romanos progrediram a tais alturas de poder
que se tornaram senhores do mundo.
E, portanto, são certamente
divinas os deuses que adoram, porque prosperam acima dos outros aqueles que
sobrepujam todos os outros na honra às divindades. Isso, certamente, é o preço
que os deuses pagaram aos romanos por sua devoção.
O progresso do Império deve ser
atribuído a Estérculo, a Mutuno e Larentina. Pois que dificilmente poderia
pensar que deuses estrangeiros estivessem dispostos a favorecer mais uma raça
estrangeira do que à sua própria, e entregar sua própria terra, na qual
nasceram, na qual se tornaram adultos, ficaram famosos, e, enfim, foram
enterrados, em benefício de invasores do outras plagas.
Assim Cibele, se põe suas
afeições na cidade de Roma, como herdeira da progênie troiana salva dos exércitos
da Grécia, ela própria sendo, certamente, da raça troiana - como se previsse
sua transferência para o povo vingador pelo qual a Grécia, conquistadora da
Frígia, seria subjugada, e o preferisse mais do que a seu país natal
conquistado pela Grécia.
Por que, igualmente, em nossos
dias, a Mãe Magna (Cibele) deu uma notável prova de sua grandeza, conferindo
como que uma dádiva à cidade, quando, logo após a perda da estátua de Marco
Aurélio, em Sírmio, no dia 17 antes das Calendas de Abril, o mais sagrado de
seus sacerdotes havia oferecido, uma semana depois, libações impuras de sangue
retirado de seus próprios braços, e ordenado que preces usuais deveriam ser
feitas pela saúde do imperador, já morto.
Ó mensageiros tardios! Ó correio
dorminhoco! Por cuja falta Cibele não recebeu uma notícia atualizada da morte
imperial, para que os cristãos não tivessem oportunidade de ridicularizar uma
divindade tão indigna. Júpiter, de novo, nunca deveria ter permitido que sua
própria Creta caísse, de repente, diante das forças romanas, esquecido
totalmente daquele caverna amada e dos címbalos das festas de Cibele, e do doce
odor daquela que ali o amamentou.
Não queria Júpiter que seu
próprio túmulo fosse exaltado sobre o Capitólio inteiro, porque,
preferencialmente, a terra que cobriu suas cinzas poderia vir a ser a senhora
do mundo? Desejaria Juno a destruição da cidade Púnica, amada a ponto de
negligenciar Samos, e isso por uma nação primitiva? Sim, eu sei, "aqui
estavam seus exércitos, aqui estava sua carruagem, este reino, porque permitam
os fados, a deusa desejava e sonhava ser a senhora das nações".
A malfadada mulher e irmã de
Júpiter não tinha poder para prevalecer contra os fados! "Júpiter mesmo
foi ajudado pelo fado". E contudo os romanos nunca prestaram tal homenagem
aos fados!
Eles que lhes deram Cartago
contra o propósito e a vontade de Juno, assim como da abandonada meretriz
Larentina. É indubitável que senão poucos de vossos deuses tiveram poder na
terra como reis. Se, então, eles agora possuem mais poder de agraciar um
Império do que quando eles mesmos eram reis, de quem receberam suas honras
reais?
A quem Júpiter e Saturno
adoravam? A um Estérculo, suponho. Mas, os romanos primitivos junto com os
nativos adoraram depois também a quem nunca tinha sido rei? Nesse caso, então,
estavam sob o reinado de outros, a quem nunca sujeitaram, já que não se
elevaram à liderança divina. Esta, então, pertencia a outros, que podiam
presentear os reinos, já que havia reis antes daqueles deuses terem tido seus
nomes no rol das divindades.
Mas que loucura agora é atribuir
a grandeza do nome romano aos méritos da religião, já que foi depois que Roma
se tornou um Império, ou, se quiserdes, um reinado, que a religião que ela
professa promoveu seu imenso progresso! É agora o caso?
Foi sua religião a fonte da
prosperidade de Roma? Embora Numa Pompílio tenha estabelecido com ardor
observâncias supersticiosas, contudo a religião entre os romanos não constava,
contudo, de imagens ou templos.
Era frugal em seus modos, seus
ritos eram simples, não havia capitólios ascendendo aos céus; mas os altares
eram improvisados de turfa, os vasos sagrados eram utensílios de barro do
Sâmnio, deles vinha o odor de rosa, e não se viam imagens de Deus. Naquele
tempo a habilidade dos Gregos e Toscanos na confecção de imagens não tinha
ainda chegado à cidade com os produtos de sua arte.
Os romanos, portanto, não foram
conhecidos por sua devoção aos deuses antes de terem alcançado a grandeza.
Assim, sua grandeza não foi resultado de sua religião. Como poderia a religião
tornar grande um povo que deveu sua grandeza à sua irreligião? Pois que, se não
estou errado, reinos e impérios são adquiridos pelas guerras, e são ampliados
por vitórias. Mais do que isso, vós não podeis conquistar guerras e vitórias
sem a presa e muitas vezes a destruição de cidades. Isto é uma calamidade na
qual os deuses têm sua parte de responsabilidade.
Casas e templos sofreram, por
isso, igualmente. Há um indiscriminado morticínio de sacerdotes e cidadãos. A
mão da rapina se dirige igualmente ao tesouro sagrado e ao tesouro do povo.
Assim os sacrilégios dos romanos são tão numerosos como seus troféus. Eles se
vangloriam tanto de triunfos sobre os deuses como sobre as nações.
Apropriam-se tanto de despojos de
batalha, como de imagens das divindades cativas. Os pobres deuses se submetem a
ser adorados por seus inimigos, e ainda proporcionam um Império ilimitado
àqueles de cujas mãos receberam por retribuição mais injúrias do que homenagem
simulada. Mas as divindades inconscientes são desonradas impunemente,
exatamente como são em vão adoradas.
Certamente nunca podeis acreditar
que a devoção à religião fez evidentemente progredir a grandeza um povo que,
como disse, cresceu seja por injuriar a religião, seja ter uma religião
injuriada por seu crescimento. Igualmente, aqueles cujos reinos se tornaram
parte desse grande todo que é o Império do Romano, não eram sem religião,
quando seus reinos lhes foram tomados. »
CAPÍTULO
XXVI Examinai e
vede se Ele não é o dispenseiro dos reinos, aquele que é simultaneamente o
Senhor do mundo, por quem é governado, e que governa os próprios homens; se Ele
não fez as mudanças de dinastias, com suas indicadas seqüências, que existiu
antes de todos os tempos e determinou no mundo uma continuidade de tempos.
Se o soerguimento e a queda dos
países não são Sua obra, sob cuja soberania a raça humana primitivamente
existiu sem nenhuma país. Como explicais que incidis em tal erro? Porque a Roma
de simplicidade rural dos tempos primitivos é mais velha do que muitos de seus
deuses. Ela reinou antes que seu orgulhoso e imenso Capitólio fosse construído.
Os babilônios também se
constituíram em Império antes dos dias dos pontífices, e os medas antes dos
qüindecênviros. Os egípcios antes dos sálios.
A Assíria antes de Lupércio, e as
amazonas antes das Virgens Vestais. E para acrescentar outro ponto: se as
religiões de Roma lhe proporcionaram um Império, a antiga Judéia nunca teve um,
desprezando-o como fez com um e todos aqueles ídolos divinizados; a Judéia cujo
Deus, vós, romanos, certa vez honraram com vítimas, com presentes de seu
Templo, e com tratados de seu povo, ela nunca esteve sob vosso cetro, senão por
ocasião dessa última e final ofensa contra Deus, quando rejeitaram e
crucificaram Cristo. »
CAPÍTULO
XXVII Bastante
já foi dito nessas explicações para refutar a acusação de traição contra vossa
religião e porque não podemos ser considerados prejudiciais àqueles que não
existem... Portanto, quando somos convidados a sacrificar, recusamos
resolutamente, apoiados no conhecimento que temos, pelo qual estamos certos
sobre a realidade dos seres aos quais esses sacrifícios são oferecidos, sob a
profanação de imagens e a deificação de seres humanos.
Muitos, de fato, julgam isso um
ato de insanidade, pois estando em nosso poder oferecer logo o sacrifício e nos
livrarmos do castigo, mantemos nossas convicções; é que preferimos uma
persistência obstinada em nossa confissão, para nossa salvação. Vós nos
avisais, é certo, que assim estamos tirando vantagens de vós, mas sabemos de
quem procedem tais sugestões, quem está por trás disso, querendo vencer nossa
constância, e como faz todo esforço, agora com manhosa persuasão e depois com
perseguição sem piedade.
Não é outro senão o espírito,
meio demônio, meio anjo que, nos odiando por causa de sua própria separação de
Deus, levado pela inveja do favor que Deus nos tem demonstrado, vira vossas
mentes contra nós com influências ocultas, moldando-as e instigando-as a todas
as perversidades no julgamento, e àquela crueldade indevida que mencionamos no
começo de nosso trabalho, quando iniciamos esta discussão.
Porque, embora todo o poder dos
demônios e maus espíritos nos esteja sujeito, contudo, como escravos,
indispostos muitas vezes, estão cheios de medo: assim são eles também. Por
medo, também inspiram ódio.
Além disso, em sua condição
desesperada, já que estão condenados, causa-lhes algum conforto quando adiam o
castigo e usufruem de suas disposições malignas.
No entanto, quando nossas mãos
são levantadas contra eles, ficam subjugados de repente, submissos a seu lugar;
e àqueles a quem se opõem à distância, reservadamente pedem misericórdia.
Assim, nas sedes rebeladas, em
prisões ou minas, ou em qualquer um desses locais para penas escravas, são
aqueles que se revoltam contra nós, seus senhores, sabendo sempre que não são
ameaça para nós e, exatamente por isso, de fato, se entregam mais renhidamente
à destruição.
Nós lhes resistimos a
contragosto, como se fossem nossos iguais, e os enfrentamos perseverando
naquilo que eles atacam. Nosso triunfo sobre eles nunca é mais completo do que
quando somos condenados pela resoluta adesão à nossa fé. »
O
que você destaca no texto?
Como
ele serviu para sua espiritualidade?