domingo, 16 de fevereiro de 2020

Quaresma e os Pais da Igreja


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QUARESMA E OS PAIS DA IGREJA
Estudo 1

E nós, meus irmãos, nós que recebemos do Invencível Combatente as sagradas práticas da Quaresma, saibamos repelir os desejos da carne e mortificar o corpo com jejuns, a fim de que cresçam as virtudes na nossa alma. Jejum das funestas paixões e prazeres, jejum de toda a injustiça, jejum do odioso espírito de rivalidade. Renunciemos, meus irmãos, aos festins, mas renunciemos mais ainda aos nossos vícios. Saibamos escolher a temperança. Abster-nos do vinho, a fim de que saibamos resistir à embriaguez dos prazeres. De que nos servirá, com efeito, jejuar durante quarenta dias se não respeitarmos a lei do jejum? De que nos serve fugir aos banquetes, se ocuparmos em discórdias os nossos dias? De que nos serve não comer o pão que nos cabe, se tirarmos a comida da boca do pobre? O jejum para o cristão que escolhe as privações deve ser alimento espiritual. O jejum para o cristão deve preparar a paz e não as lutas. De que te serve não comer carne, se da tua boca se soltam injúrias piores que qualquer alimento? De que te serve santificar o estômago com jejuns, se as mentiras te mancham a boca? Em verdade te digo, meu irmão, que não tens o direito de entrar na Igreja se continuas enredado e envolvido nas malhas mortais da usura voraz, que não tens o direito de invocar o teu Senhor se as tuas orações vêm do teu coração invejoso; que não tens o direito de bater no peito se nele se escondem os teus maus desejos. A moeda que deres ao pobre só será justa, quando fores pobre também. Eis, irmãos muito amados, a verdadeira fome religiosa, eis o alimento das almas tementes a Deus. As almas que santificaram o jejum pela castidade, que o tornaram alegre pela caridade, que o aformosearam pela paciência, que o acalentaram pela bondade, que lhe deram o seu justo preço pela humildade. Meus irmãos, vivamos a Quaresma de Cristo com todas as nossas forças e, pela prática daquelas virtudes, façamos que seja nossa, pelos dois gêmeos jejuns do corpo e do espírito, a graça divina. Amém (Máximo de Turim (380-465) – As práticas Quaresmais).
Nós, os novos batizados, os filhos do batistério que acabamos de receber a luz, damos-Te graças, Cristo Deus. Tu iluminaste-nos com a luz do Teu rosto, Tu revestiste-nos com a veste que convém às Tuas núpcias (Sl 4, 7; Mt 22, 11). Glória a Ti, glória a Ti, porque tal foi do Teu agrado.  Quem dirá, quem mostrará ao primeiro homem criado, Adão, a beleza, o brilho, a dignidade dos seus filhos? Quem contará também à infeliz Eva que os seus descendentes se tornaram reis, revestidos de uma veste de glória, e que com grande glória glorificam Aquele que os glorificou, brilhantes de corpo, de espírito e de veste? […] E quem os exaltou? Foi, evidentemente, a sua Ressurreição. Glória a Ti, glória a Ti, porque tal foi do Teu agrado. […] Tu és brilhante e radioso, Adão. […] Ao ver-te, o teu adversário definha e exclama: Quem é este que vejo? Não sei. O pó foi renovado (Gn 2, 7), as cinzas foram divinizadas. O pobre doente foi convidado, foi refrescado, entrou e sentou-se à mesa, foi conduzido ao banquete e tem a audácia de comer e o desplante de beber Aquele que o criou. E quem Lho deu? Foi, evidentemente, a sua Ressurreição. Glória a Ti, glória a Ti, porque tal foi do Teu agrado. Esqueceu as suas culpas antigas, não ostenta a menor cicatriz dos primeiros ferimentos. Abandonou os seus longos anos de paralisia na piscina, como tinha feito o paralítico, e deixou de trazer o leito aos ombros, mas traz às costas a cruz Daquele que teve piedade dele […]. Outrora, o Amigos dos homens lavou muitos homens nas águas, mas eles não brilharam assim; àqueles, porém, a Ressurreição tornou-os luminosos. Glória a Ti, glória a Ti, porque tal foi do Teu agrado. […]. Eis-te recriado, novo batizado, eis-te renovado; não curves as costas ao peso dos pecados. Possuis a cruz como cajado, apóia-te nela. Leva-a à tua oração, leva-a para a mesa, leva-a para o leito, leva-a para todo o lado como título de glória. […] Grita aos demônios: Com a cruz na mão, ergo-me, louvando a Ressurreição. Glória a Ti, glória a Ti, porque tal foi do Teu agrado (Romano, o Melodista (490-556) – A Quaresma é o caminho da renovação).

Meu Deus, na Tua compaixão
derrama sobre mim o olhar do Teu amor
E recebe a minha ardente confissão.
Pequei mais do que todos os homens,
pequei só contra Ti, Senhor;
faz-me participar da Tua misericórdia,
meu Salvador, porque me criaste. […]
Meu Redentor, manchei a Tua imagem e semelhança (Gn 1, 26), […]
desfiz em farrapos o vestuário de perfeição
que o próprio Criador fabricou para mim e estou nu;
em seu lugar quis usar uma farpela rasgada,
obra da serpente que me seduziu (Gn 3, 1-5). […]
Fiquei fascinado com a beleza
da árvore que traiu a minha inteligência:
agora estou nu e coberto de vergonha. […]
O pecado me revestiu de túnicas de pele (Gn 3, 21),
agora que fui despojado
das vestes tecidas pelo próprio Deus. […]
E, como a prostituta, grito:
pequei contra Ti, só contra Ti.
Ó Salvador, acolhe as minhas lágrimas,
como aceitaste o perfume da pecadora (Lc 7, 36 ss.)
E, como o publicano, grito:
tem piedade de mim, ó Salvador.
Perdoa-me, porque de toda a descendência de Adão
ninguém pecou como eu. […]
Prostrado como Davi,
estou coberto de lama;
Mas assim como ele se lavou nas próprias lágrimas,
lava-me Tu também, Senhor!
Ouve os gemidos da minha alma
e os suspiros do meu coração;
acolhe as minhas lágrimas
e salva-me, meu Redentor.
Porque Tu amas os homens
e queres que todos se salvem.
Faz-me voltar à Tua bondade
e nela me recebe,
porque estou arrependido  (André de Creta – (650-740), monge e bispo  - Grande Cânon da Liturgia Bizantina da Quaresma).


QUARESMA E OS PAIS DA IGREJA
Estudo 2

Naamã era sírio e estava leproso, sem que ninguém o pudesse curar. Então, uma jovem prisioneira disse-lhe que havia em Israel um profeta que podia curá-lo da lepra. […] Já é tempo de descobrires quem era aquela jovem prisioneira. Era a figura da assembleia mais nova de entre as nações, isto é, da Igreja do Senhor. Antes, quando não possuía ainda a liberdade da graça, fora humilhada pelo cativeiro do pecado. Mas, a seu conselho, este povo que não era ainda um povo escutou a palavra dos profetas, da qual duvidara durante muito tempo. Em seguida, quando acreditou que devia segui-la, o povo foi purificado de todo o contágio do pecado. Naamã duvidara antes de ser curado; mas tu já foste curado e por isso não deves duvidar. Já antes te foi dito que não devias acreditar apenas no que vês ao aproximares-te do batistério, para que digas: «É este o «grande mistério que nem os olhos viram, nem os ouvidos ouviram, nem jamais passou pelo pensamento do homem» (1Cor 2, 9)? Eu vejo as águas que via todos os dias. Vão purificar-me estas águas a que tantas vezes desci sem nunca ter sido purificado?» Deves reconhecer que a água não purifica sem o Espírito. Por isso, leste que no batismo as três testemunhas são uma só: a água, o sangue e o Espírito (1Jo 5, 7-8); porque, se prescindires de uma delas, já não há sacramento do batismo. Que é a água sem a cruz de Cristo? É um elemento comum, sem nenhuma eficácia sacramental. Mas também é verdade que sem a água não há mistério da regeneração: «quem não renascer da água e do Espírito não entrará no reino de Deus» (Jo 3, 5). Também o catecúmeno acredita na cruz do Senhor Jesus, com a qual é assinalado; mas, se não for batizado em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, não pode receber o perdão dos pecados nem obter o dom da graça espiritual. Por isso o sírio Naamã mergulhou sete vezes, segundo a Lei; tu, porém, foste batizado em nome da Trindade. […] Proclamaste a tua fé no Pai e no Filho e no Espírito Santo. […] Morreste para o mundo, ressuscitaste para Deus e, de certo modo sepultado naquele elemento do mundo, morto para o pecado, ressuscitaste para a vida eterna (Rm 6, 4). (Ambrósio de Milão (340-397), bispo de Milão – A Quaresma é um caminho para o Batismo).

Kyrios
Senhor e Mestre da minha vida,
não me abandones ao espírito de preguiça, de desencorajamento
de dominação e de vã tagarelice.
Concede-me a graça de um espírito de castidade, de humildade,
de paciência e de caridade, a mim, Teu servo.
Sim, meu Senhor e meu Rei, que eu veja as minhas faltas
e não condene o meu irmão.
Tu, que és bendito pelos séculos dos séculos. Amém.
Ó Deus, tem piedade de mim, pecador.
Ó Deus, purifica-me que sou pecador.
Ó Deus, meu Criador, salva-me.
Perdoa-me os meus numerosos pecados!
Bendito Aquele que vem, o nosso Rei»
(Efrém, o Sírio – (306-373).

O dia de hoje, meus bem-amados, é da maior importância. É um dia que nos solicita um grande desejo, uma pressa imensa, um alento vivo, para nos conduzir ao encontro do Rei dos Céus. Paulo, o mensageiro da Boa Nova, dizia-nos: «O Senhor está perto. Não vos inquieteis» (Fil 4, 5-6). […] Acendamos, pois, as lamparinas da fé; à semelhança das cinco virgens sensatas (Mt 25, 1ss.), enchamo-las do óleo da misericórdia para com os pobres; acolhamos a Cristo bem despertos, e cantemos-Lhe com as palmas da justiça na mão. Beijemo-Lo, derramando sobre Ele o perfume de Maria (Jo 12, 3). Ouçamos o cântico da ressurreição: que as nossas vozes se elevem, dignas da majestade divina, e brademos com o povo, soltando esse grito que se escapa das bocas da multidão: «Hosana nas alturas! Bendito seja Aquele que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel». É razoável chamar-Lhe «Aquele que vem», porque Ele vem sem cessar, porque Ele nunca nos falta: «O Senhor está próximo de quantos O invocam em verdade» (Sl 144, 18). «Bendito seja Aquele que vem em nome do Senhor». O Rei manso e pacífico está à nossa porta. Aquele que tem o trono nos céus, acima dos querubins, senta-Se, cá em baixo, sobre uma burrinha. Preparemos a casa da nossa alma, limpemos as teias de aranha que são os mal-entendidos fraternos, que não haja em nós a poeira da maledicência. Difundamos às mãos-cheias a água do amor, e apaziguemos todas as feridas criadas pela animosidade; semeemos o vestíbulo dos nossos lábios com as flores da piedade. E soltemos então, na companhia do povo, esse grito que brota dos lábios da multidão: «Bendito seja Aquele que vem em nome do Senhor, o Rei de Israel». (Proclo de Constantinopla (390-446), bispo – A Quaresma prepara para o Dia de Ramos).





QUARESMA E OS PAIS DA IGREJA
Estudo 3

Depois deste tempo consagrado à observância do jejum, a alma chega, purificada e esgotada, ao batismo. Recobra então as forças mergulhando nas águas do Espírito; tudo o que tinha sido queimado pelas chamas das doenças renasce do orvalho da graça do céu. Abandonando a corrupção do homem velho, o neófito adquire uma nova juventude […]. Através de um novo nascimento, renasce outro homem, sendo embora o mesmo que tinha pecado. Por meio de um jejum ininterrupto de quarenta dias e quarenta noites, Elias mereceu pôr fim, graças à água que veio do céu, a uma seca longa e penosa na terra inteira (1Rs 19, 8; 18, 41). Extinguiu a sede ardente do solo trazendo-lhe uma chuva abundante. Estes fatos produziram-se para nos servir de exemplo, para merecermos, após um jejum de quarenta dias, a chuva bendita do batismo, para que a água que vem do céu regue toda a terra, desde há muito tempo árida, dos nossos irmãos do mundo inteiro. O batismo, como uma rega de salvação, porá fim à longa esterilidade do mundo pagão. É, com efeito, de seca e de aridez espiritual que sofre todo aquele que não foi banhado pela graça do batismo. Através de um jejum do mesmo número de dias e noites, o santo Moisés mereceu falar com Deus, ficar, permanecer com Ele, receber das Suas mãos os preceitos da Lei (Ex 24, 18). […] Também nós, irmãos muito queridos, jejuamos com fervor durante todo este período, para que […] também para nós se abram os céus e se fechem os infernos (Máximo de Turim (380-465), bispo
Sermão 28 – Importância do Jejum na Quaresma).

Aproximaste-te, viste a pia batismal e viste também o bispo perto da pia. E sem dúvida surgiu na tua alma o mesmo pensamento que se insinuou na de Naaman, o sírio. Pois, embora tenha sido purificado, inicialmente ele duvidara. […] Temo que alguém tenha dito: «É apenas isto?» Sim, realmente é apenas isto: ali encontra-se toda a inocência, toda a piedade, toda a graça, toda a santidade. Viste o que conseguiste ver com os olhos do corpo […]; aquilo que não se vê é muito maior […], porque aquilo que não se vê é eterno […]. Que haverá de mais surpreendente do que a travessia do Mar Vermelho pelos israelitas, para não falarmos agora apenas do batismo? E, no entanto, todos os que o atravessaram morreram no deserto. Pelo contrário, aquele que atravessa a pia batismal, isto é, aquele que passa dos bens terrestres para os do céu […], não morre, mas ressuscita. Naaman era leproso. […] Ao vê-lo chegar, o profeta disse-lhe: «Vai, entra no Jordão, banha-te e ficarás curado.» Ele pôs-se a refletir em si mesmo e disse para consigo: «É apenas isto? Vim da Síria à Judeia e disseram-me: vai até ao Jordão, banha-te e ficarás curado. Como se não houvesse rios melhores no meu país!» Os servos diziam-lhe: «Senhor, por que não fazes o que diz o profeta? Fá-lo, experimenta.» Então ele foi até ao Jordão, banhou-se e ficou curado. Que significa isto? Viste a água, mas nem toda a água cura; mas a água que contém em si a graça de Cristo cura. Há uma diferença entre o elemento e a santificação, entre o ato e a eficácia. O ato realiza-se com água, mas a eficácia vem do Espírito Santo. A água não cura se o Espírito Santo não tiver descido e consagrado aquela água. Leste que quando nosso Senhor Jesus Cristo instituiu o rito do batismo, veio ter com João e este disse-Lhe: «Eu é que tenho necessidade de ser batizado por Ti. E Tu vens até mim?» (Mt 3,14). […] Cristo desceu; João, que batizava, estava a Seu lado; e eis que, como uma pomba, o Espírito Santo desceu. […] Por que desceu Cristo primeiro e em seguida o Espírito Santo? Por que razão? Para que o Senhor não parecesse ter necessidade do sacramento da santificação: é Ele que santifica; e é também o Espírito que santifica (Ambrósio de Milão (340-397), Bispo de Milão – Quaresma para o Santo Batismo).

“A honra do jejum consiste não na abstinência da comida, mas em evitar as ações pecaminosas; quem limita o seu jejum apenas à abstinência de carnes o desonra. Praticas o jejum? Prova-me por tuas obras! Perguntas que tipo de obras? Se vires um inimigo, reconcilia-te com ele! Se vires um amigo tendo sucesso, não o inveje! Se vires uma mulher bonita, passe sem olhar! Que não apenas a boca jejue, mas também os olhos, e os ouvidos, e os pés, e as mãos, e todos os membros de nossos corpos. Que as mãos jejuem sendo puras da avareza e da rapina. Que os pés jejuem, deixando de caminhar para espetáculos imorais. Que os olhos jejuem, não se detendo sobre feições belas, ou se ocupando de belezas exóticas. Pois o que é visto é a comida dos olhos, mas se o que for visto for imoral ou proibido, macula-se o jejum e perturba toda a segurança da alma; mas se for moral e seguro, o que é visto adorna o jejum. Pois seria absurdo abster-se da comida permitida por causa do jejum, mas devem os olhos absterem-se até de tocar o que é proibido. Não comes carne? Então não se alimente de luxúria através dos olhos. Que também os ouvidos jejuem. O jejum dos ouvidos consiste em recusar-se a ouvir assuntos perversos e calúnias. ‘Não receberás notícias falsas’, já foi dito. Que a boca também jejue de falar coisas vergonhosas e de ficar reclamando. Pois que ganhas se te absténs de pássaros e peixes, e mesmo assim mordes e devoras teu próximo? O que tem fala maligna come a carne de seu irmão, e morde o corpo de seu próximo.” (João Crisóstomo (347-407). Orientação sobre o verdadeiro Jejum Quaresmal).























quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

124 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilias 36,37)

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124
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilias 36,37)



HOMILIA 36 - Lc 17.20,21, 33.
Sobre o que está escrito: “Aquele que quiser salvar sua alma perdê-la-á” até aquela passagem que diz: “O reino de Deus está entre vós”.

O homem espiritual
“Quem buscar”, diz Jesus, “salvar sua alma, perdê-la-á, e quem a tiver perdido, salvá-la-á.” Os mártires buscam salvar sua alma; perdem-na, para salvá-la.
Mas os que querem salvar sua alma e não a perdem, estes perderão ao mesmo tempo “seu corpo e sua alma na geena”.
Por isso, “não temais”, diz Jesus, “aqueles que podem matar o corpo, mas temei sobretudo aquele que pode perder a alma e o corpo na geena”.
Sobre este assunto, diremos algumas palavras segundo a capacidade de nosso espírito.
O homem animal não acolhe o que vem do espírito” e, portanto, não pode ser salvo.
“Semeia-se um corpo animal, ressuscita um corpo espiritual.”
Enfim, “aquele que se une ao Senhor torna-se com ele apenas um único espírito”.
Se, portanto, “aquele que se une ao Senhor”, como se tratasse de um animal, se encontra transformado por essa união em homem espiritual, e “é um único espírito” com o Senhor, também nós, então, percamos nossa alma, para que, unindo-nos ao Senhor, sejamos transformados em um único espírito com ele.

O reino de Deus e o reino dos pecados
O Salvador, interrogado pelos Fariseus, igualmente sobre o tempo do advento do reino de Deus, respondeu: “O reino de Deus não se deixa observar e não se diria: “ei-lo aqui, ou ei-lo aí. Pois o reino de Deus está entre vós”.
O Salvador não diz a todos: “O reino de Deus está entre vós”, porque os pecadores vivem voltados para o reino do pecado; não há ambiguidade alguma: no nosso coração impera ou o reino de Deus ou o reino do pecado.
Sejamos mais atentos, seja a nossos atos, seja a nossas palavras, seja a nossos pensamentos, e veremos, então, se é o reino de Deus que prevalece em nós ou o reino dos pecados.
Conhecendo essa oposição, o Apóstolo dá a alguns esta advertência: “Que o pecado não reine em vosso corpo mortal”.
Se algum de nós deseja o reino de Deus, já é governado por ele; se alguém é atormentado pelo ardor da avareza, é governado pela avareza.
Aquele que é justo tem como rainha a justiça.
Aquele que é tomado pela ambição da vanglória, reina para ele a popularidade.
A tristeza, o medo, o amor, o desejo, cada uma dessas várias perturbações domina aquele que as experimenta.
Conhecendo todas essas coisas e quão numerosos sejam os tipos de reinos, levantemo-nos e oremos a Deus, para que nos retire do reino do inimigo e possamos viver sob o reino de Deus todo-poderoso, isto é, sob o reino da Sabedoria, da Paz, da Justiça, da Verdade; todas compreendidas no Deus Filho Unigênito: “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

HOMILIA 37 - Lc 19.29-40
Sobre a passagem em que é dito que um jumentinho foi desatado pelos discípulos.

Às portas de Betânia
Foi lido no Evangelho segundo [São] Lucas como o Salvador, quando vinha “de Betfagé e de Betânia, perto do monte chamado das Oliveiras, enviou dois de seus discípulos” para desatar “o jumentinho” que estava amarrado, “sobre o qual nenhum homem nunca tinha montado”.
Tudo isso, ao que me parece, tem um sentido mais profundo que a significação da simples narrativa. O asno estava amarrado.
Onde? “Em frente a Betfagé e Betânia”. Betânia significa “casa da obediência”; Betfagé, “casa das mandíbulas”, um lugar reservado aos sacerdotes; pois as mandíbulas eram dadas aos
sacerdotes, como está prescrito na Lei.
O Salvador envia, pois, seus discípulos para lá onde se encontra a obediência, e em um lugar reservado aos sacerdotes, para aí desatar “o jumentinho sobre o qual nenhum homem nunca tinha montado”.

O jumentinho desatado
Que outro pode montar sobre um asno senão um homem? Quero tomar um breve exemplo para que possa ser compreendido o que vou dizer. Está escrito em Isaías: “A visão dos quadrúpedes na tribulação e na angústia”, e a sequência, até a passagem: “As riquezas das serpentes não lhes serão úteis”.
Cada um de nós deve examinar quantos bens das áspides, quantas riquezas dos asnos tenha carregado anteriormente.
Veremos como nem o homem espiritual nem a palavra de Moisés, nem a de Isaías nem a de Jeremias, ou de nenhum outro profeta montou sobre nosso asno.
Veremos que a Palavra de Deus e o Verbo repousaram sobre nós quando o Senhor veio dizer para desatar o jumentinho que havia sido amarrado, para que avançasse livremente.
Desatado, assim, o jumentinho é conduzido a Jesus, que havia dito, ao enviar seus
discípulos para desatá-lo: “Se alguém vos perguntar por que desatais o jumentinho, dizei-lhe: porque o Senhor precisa dele”.
Muitos eram os donos desse jumentinho, antes que o Senhor precisasse dele; mas, depois que o Senhor se tornou seu dono, deixaram de ser vários os seus senhores; pois “ninguém pode servir a Deus e à Riqueza”.
Quando somos escravos da maldade, estamos sujeitos às paixões e aos vícios.
O jumentinho é, pois, desatado “porque o Senhor precisa dele”. Ainda agora o Senhor precisa do jumentinho. Vós sois o jumentinho.
Em que o Filho de Deus precisa de vós? Que espera ele de vós? Ele precisa de vossa salvação, ele quer vos desatar dos laços dos pecados.

O jumentinho carrega Jesus
Os discípulos em seguida lançam “suas vestes sobre o asno” e fazem o Salvador assentar-se nele.
Eles tomam a Palavra de Deus e a impõem sobre as almas dos ouvintes; se despem de suas vestes e “estendem-nas sobre o caminho”.
As vestes dos Apóstolos estão sobre nós, suas boas obras são nossos ornamentos; os Apóstolos querem que andemos sobre seus vestuários. E a bem da verdade, o asno desatado pelos discípulos, e que carrega Jesus, avança sobre as vestimentas dos apóstolos, quando sua doutrina e sua vida são imitadas.
Quem de nós tem a felicidade de ser a montaria de Jesus, que, enquanto esteve na montanha, morava apenas com os apóstolos, mas,
quando se aproximou [o tempo] de sua descida, então acorreu a ele a turba popular?
Se Jesus não tivesse realizado sua descida, não teria podido a multidão acorrer a ele. Ele desceu e montou sobre o jumentinho, e todo o povo louvava a Deus com uma voz unânime.

Proclamar a glória de Deus
Vendo isso, os fariseus diziam ao Senhor: “Repreende-os”. A estes ele respondeu: “Se eles se calarem, as pedras gritarão”.
Quando nós falamos, as pedras silenciam;
quando nos calamos, as pedras gritam; “pois o Senhor pode destas pedras suscitar filhos para Abraão”.
Quando nos calaremos? Quando “a caridade de muitos tiver se resfriado”, quando aquilo que foi predito pelo Salvador tiver se cumprido: “Pensas tu que, quando o Filho do homem tiver vindo, encontrará fé sobre a terra?”.
Imploremos, pois, a misericórdia do Senhor, a fim de que, ao nosso calar, as pedras não cessem de gritar; mas falemos e louvemos a Deus no Pai, e no Filho, e no Espírito Santo: “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

O que você destaca no texto?
Como o texto serve para sua espiritualidade?

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

123 - Orígenes de Alexandria (185-253) As Homilias sobre São Lucas (Homilia 35)


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123
Estudo sobre os Pais da Igreja: Vida e Obra
Orígenes de Alexandria (185-253)
As Homilias sobre São Lucas (Homilia 35)



HOMILIA 35 - Lc 12.58,59
Sobre o que está escrito: “Quando te diriges com teu adversário”, e a sequência, até a passagem que diz: “até pagares o último centavo”.

Parábola do julgamento
Se não houvesse em nossa natureza um sentido inato para apreciar a justiça, jamais o Salvador teria dito: “Por que, porém, não julgais por vós mesmos o que é justo?”
Para que não nos estendamos muito longamente no exame desse pensamento, sobretudo porque questões muito mais difíceis estão atreladas a este capítulo, ser-nos-á suficiente apenas deter-nos no significado da passagem.
Estendamos as velas de nossas almas para Deus e roguemos a vinda de sua Palavra a fim de interpretar esta parábola da Escritura, que diz: “Quando tu vais com teu adversário diante de um príncipe, no caminho, encarrega-te de te livrares dele, para que ele não te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao executor e que sejas enviado para o cárcere. Em verdade, eu te digo que não sairás daí até que devolvas o último centavo”.
Vejo serem citados quatro personagens: o adversário, o príncipe, o juiz e o executor. E que o evangelista Mateus parece ter expressado um pensamento semelhante quando diz: “Faça acordo com teu adversário enquanto caminhas com ele”.
Busco saber se aí há o mesmo sentido que no texto de Lucas ou se há alguma proximidade, já que, no texto de Mateus, com efeito, uma personagem foi omitida e a outra, mudada.
“Príncipe” é omitido e, em vez do “executor”, “o guarda” foi inserido, enquanto “o adversário” e “o juiz” foram igualmente mencionados nos dois textos.
“Com o nosso adversário” vamos, então, encontrar “o príncipe”; enquanto estamos “a caminho”, é necessário que lutemos com coragem para que nos livremos dele.
Mas nos livrar de quem? De fato, a palavra é ambígua e pode tanto referir-se ao príncipe quanto ao adversário: “receando que”, seja o adversário, seja o príncipe, “te entregue ao juiz, e que o juiz te entregue ao executor”; e: “não sairás daí enquanto não devolveres o último centavo”, por cujas palavras Mateus diz: “até que devolvas o último quarto de asse”.
Os dois evangelistas conservaram a palavra “último”, porém pareceram estar em desacordo, porque este citou “quarto de asse”, aquele, a palavra “centavo”.

Os bons e os maus anjos
Devo tocar algumas verdades mais misteriosas, para que possamos compreender que o adversário e os outros três personagens, isto é, o príncipe, o juiz e o executor, representam cada um uma pessoa diferente.
Lemos – se se quer receber este tipo de escritura – que os anjos da justiça e os da iniquidade discutem sobre a salvação e a perda de Abraão, enquanto as duas turmas querem reivindicar a presença do patriarca para sua própria peleja.
Se isso desagrada a alguém, que esse alguém passe ao volume intitulado “O Pastor” e aí encontrará que para todo homem há dois anjos: um mau, que o incita ao mal, e um bom, que persuade a todas as coisas melhores.
Está escrito em outra parte que dois anjos assistem os homens, seja para a boa parte, seja para a má.
O Salvador faz também menção dos bons anjos, quando diz: “Seus anjos veem sempre a face de meu Pai, que está nos céus”.
Ao mesmo tempo, pergunta se os anjos dos pequeninos que pertencem à Igreja “veem sempre a face do Pai”, enquanto os anjos de outros não têm a liberdade de olhar o rosto do Pai.
Não se deve esperar, pois, que os anjos de todos sempre vejam “a face do Pai, que está nos céus”.
Se eu pertencer à Igreja, ainda que eu seja o menor de todos, o meu anjo tem a liberdade e a certeza de ver “a face do Pai, que está nos céus”.
Se, porém, eu estiver de fora e não for daquela Igreja “que não tem mancha nem ruga nem nenhum defeito dessa espécie”, e, por isso mesmo, ficar provado que sou estranho a tal congregação, meu anjo não tem a certeza de ter os olhos voltados para o “rosto do Pai, que está nos céus”.
Por isso, os anjos são solícitos para os bons, os quais sabem que, se nos tiverem dirigido bem e nos tiverem conduzido à salvação, eles próprios terão a certeza de ver “a face do Pai”.
Se, com efeito, através de seus cuidados e seu zelo, a salvação é adquirida para os homens, eles veem sempre “a face do Pai”.
Assim, se, pela negligência deles, o homem tiver vindo à queda, eles não ignoram que a coisa não será isenta de perigo para eles.
Do mesmo modo, um bom bispo e um excelente administrador da Igreja sabem que cabe a seu mérito e virtude que as ovelhas do rebanho a ele confiadas sejam guardadas.
Compreende, então, que assim o é para os anjos. É uma ignomínia para um anjo se o homem a ele confiado tiver pecado. Ao contrário, é uma glória para um anjo se o homem que lhe é confiado, seja ele o menor de todos os que houver na Igreja, fizer progressos.
Eles verão, com efeito, não uma vez ou outra, mas sempre “a face do Pai, que está nos céus”, enquanto os outros não a verão sempre.
Segundo o mérito daqueles que dirigem, os anjos contemplarão sempre ou nunca, ou então com maior ou menor intensidade a face de Deus.
Deus tem um conhecimento claro desse mistério, e, ainda que dificilmente, também o pode ter aquele que for encontrado tendo sido instruído por Cristo.

O adversário
Vejamos, pois, primeiramente, quem é “o adversário”, com o qual fazemos nosso caminho.
O adversário está sempre conosco, infelizes e miseráveis que somos. Cada vez que pecamos, nosso adversário exulta ao saber, visto que tem a faculdade de exultar-se e vangloriar-se, junto ao príncipe deste mundo, que o tinha enviado; razão pela qual, o adversário de um ou de outro, por exemplo, tornou tanto um quanto o outro sujeitos ao príncipe deste mundo, por causa de seus pecados, por causa de tantos pecados, por este delito ou por aquele.
Mas sucede, às vezes, que, se alguém estiver preparado com a armadura de Deus e protegido de todas as partes, o adversário tentará, evidentemente, infligir uma ferida, mas não terá a possibilidade de golpear.
O adversário caminha sempre conosco, nunca nos abandonará; ele busca a ocasião de nos colocar armadilhas e o modo de poder derrubar-nos, fazendo-nos submeter um mau pensamento no fundo de nosso coração.

O príncipe
“Quando tu vais ao encontro do príncipe.” Quem é, pois, esse príncipe? “Quando o Altíssimo dividia os povos, quando ele espalhava os filhos de Adão, ele fixou os limites dos povos segundo o número dos anjos de Deus.
A parte de Deus foi seu povo, Jacó, e a extensão de sua herança, Israel.” Então, desde as origens, a terra foi dividida entre os príncipes, isto é, os anjos.
Daniel, de fato, atesta claramente que aqueles que Moisés tinha nomeado de anjos são chamados de “príncipes”, dizendo: “o príncipe do reino dos Persas”, diz ele, “o príncipe do reino dos gregos e Miguel, vosso príncipe”.
Os anjos são, portanto, os príncipes das nações. E cada um de nós tem um adversário unido a si; sua tarefa é conduzi-lo a um príncipe e dizer-lhe: “Príncipe do reino dos Persas”, por exemplo, “aquele que era teu súdito, eu o guardei, como ele era, para ti; nenhum dos outros príncipes pôde atraí-lo para si, nem sequer aquele que se gabava de ter vindo para isto: para arrancar os homens à dominação dos Persas ou dos gregos e de todas as nações, para fazer deles os súditos da herança de Deus.
O Cristo nosso Senhor venceu todos os príncipes e, atravessando suas fronteiras, atraiu para si os povos cativos, para a sua salvação.
Também tu pertencias ao partido de um príncipe. Jesus veio e te arrancou do poder do mal e ofereceu-te a Deus Pai.
Assim nosso adversário caminha, conduzindo-nos ao seu príncipe. Por isso, eu, crendo que todas as palavras das Escrituras têm uma razão de ser, penso que não foi em vão que, entre os gregos, “juiz” tenha sido citado com o artigo [definido] “o”, que é significante de singularidade, enquanto “príncipe” foi, pura e simplesmente, escrito sem artigo [definido].
“Quando, diz a Escritura, vais com teu adversário”, significativamente diz “teu”.
Não todos, com efeito, são adversários de todos; cada um tem seu adversário particular, que o segue por toda parte como um companheiro.
“Quando tu vais com teu adversário ao encontro de um príncipe”, a palavra príncipe não é precedida do artigo [definido] “o”, para que não parecesse indicar uma personagem determinada, mas a ausência do artigo [definido] mostra que se trata de um príncipe entre vários outros, o que é melhor entendido pelos gregos.
Com efeito, não cada um de nós tem um príncipe próprio, mas se alguém é egípcio, depende do príncipe do Egito; o sírio é súdito do príncipe dos sírios; e cada um é súdito do príncipe de sua nação. Basta-me ficar por aqui; não há necessidade alguma de estender essa discussão, enumerando igualmente todas as outras nações. Assim é dito: “Vede Israel segundo a carne”.
Para o sábio, ter começado é ter dito; talvez seja mesmo temerário ter começado a tratar de semelhante assunto em público.
Diz a Escritura, quem quer conduzir-te a seu príncipe e fazer-te mudar de mestre, “quando tu vais com teu adversário ao encontro de um príncipe, pelo caminho, esforça-te para que te livres dele”.
Se, com efeito, não lutares com todos os teus esforços para que sejas livrado dele, enquanto ainda percorres o caminho, antes que entres na casa de um príncipe, antes que tal príncipe te entregue ao juiz, em vão farás tuas tentativas depois que o adversário preparou-te para que fosses entregue.
“Esforça-te, pois, para que te livres” do teu adversário ou do príncipe, para quem te arrasta o adversário. Faz teu esforço para que tenhas a sabedoria, a justiça, a força, a temperança, e então se cumprirá a palavra: “eis o homem, seus trabalhos estão diante de seu rosto”.
Se não fizeres esforços, não poderás quebrar o pacto de teu adversário, cuja “amizade é inimizade contra Deus”. “Quando vais com teu adversário ao encontro de um príncipe, no caminho, esforça-te.”
Nessa passagem “no caminho, esforça-te” está oculta amiúde não sei qual verdade, e há um mistério.
O Salvador diz: “Eu sou o caminho, a verdade e a vida”. Se fizeres o esforço para te livrares do adversário, estarás no caminho. Quando te ativeres àquele que diz: “eu sou o caminho”, “esforça-te para te livrares” do adversário; não basta ter-se dedicado.
Se não fizeres o esforço, com efeito, para que te livres do adversário, escuta o que te acontecerá: o adversário “te arrasta ao encontro do juiz”, ou então o príncipe, quando te tiver recebido em sua casa pelo adversário, “te arrasta ao encontro do juiz”.
“Arrasta” é um termo bem escolhido para mostrar, de certo modo, como aqueles que se esquivam e não querem ser arrastados para a condenação são obrigados a comparecer diante dela.
Qual homicida, com efeito, comparece à corte judicial com passo ligeiro? Quem se apressa na alegria de ir à sua própria condenação e não é arrastado contra a sua vontade e insurgindo-se? Pois ele sabe que comparece para receber sua sentença de morte.

O juiz
“Para que ele não te arraste à corte judicial.” A teu ver, quem é esse juiz? Eu não conheço outro juiz senão Nosso Senhor Jesus Cristo, do qual é dito em outra parte: “Ele porá as ovelhas à direita e os bodes à esquerda”.
E novamente: “Quem tiver confessado a mim diante dos homens, eu o confessarei também diante de meu Pai que está nos céus; quem, porém, tiver me negado diante dos homens, eu o negarei diante de meu Pai, que está nos céus”.
“Para que ele não te arraste à corte judicial, e o juiz te entregue ao executor.” Cada um de nós, através de cada pecado, sofre uma pena, e a intensidade da pena é medida segundo a qualidade e a natureza das faltas.
Devo trazer um testemunho da Escritura a respeito da pena e da multa pecuniária.
Um é condenado a pagar quinhentos denários e ele os deve, outro é condenado a cinquenta denários, quantias que a ambos é retirada pelo credor.
Depois, outro, segundo a Escritura, “foi-lhe apresentado, e esse devia dez mil talentos”; e ele foi condenado a pagar dez mil talentos.
Que necessidade há que eu continue com vários exemplos? Segundo a natureza e o número dos pecados, cada um recebe uma condenação a uma multa diferente. Se teu pecado é pequeno, serás golpeado com uma pena “de um centavo”, como escreve Lucas; ou “de um quarto de asse”, segundo Mateus.
É, entretanto, indispensável pagar também essa pequena quantia, da qual te mostraste devedor, pois tu não sairás do cárcere antes de teres pagado mesmo as menores quantias.
Todavia, aquele que é fiel não é golpeado com nenhuma pena, mas se enriquece a cada dia, “uma profusão de riquezas lhe pertence, enquanto o infiel não tem um óbolo sequer”.
Um é condenado por um denário; outro, por uma mina; outro, por um talento.
O juiz desse negócio, que conhece a importância de todos os pecados, também diria: “Essa falta é condenada por um talento; aquele pecado merece uma multa desse tipo”.
Pois está escrito: “Quando, porém, ele começasse o acerto de contas”. O cômputo deve ser calculado para todos nós.
Não há outro tempo para calcular o cômputo senão o tempo do julgamento, quando será conhecido como líquido o que nos tenha creditado e o que tenhamos feito de lucro ou de prejuízo. Entre nós haverá quem receba uma mina; quem um único talento; quem dois; quem cinco.
Que necessidade há de trazer à memória mais detalhes, visto que basta ter dito isto de modo geral, que haveremos de devolver o pagamento de nossas contas e que, se formos identificados como devedores, seremos arrastados à corte judicial e entregues pelo juiz ao executor?

O executor
Temos, cada um de nós, nossos próprios executores; mas toda multidão é entregue a vários executores, segundo o que está escrito em Isaías: “Meu povo, vossos executores vos pilham e os poderosos reinam sobre vós”.
Os executores são nossos mestres, se somos devedores. Se, porém, tivermos confiança, se pudermos dizer de cabeça erguida: “Guardei o preceito que ordena: ‘devolvei a todos o que lhes é devido; a quem o tributo, o tributo; a quem o temor, o temor, a quem as taxas, as taxas; a quem a honra, a honra” – se a todos eu tiver devolvido tudo o que lhes devia –, então vou encontrar o executor e respondo-lhe com pensamento intrépido: nada te devo.
O executor volta a seu cargo e lhe resisto; pois sei que, se não terei devido nada, ele não tem nenhum poder sobre mim; mas, se eu sou devedor, “meu executor me mandará para o cárcere”, segundo o processo que foi predito: o adversário me conduz ao encontro do príncipe; o príncipe, à corte judicial; o juiz me entregará ao executor; o executor me mandará para o cárcere.
Qual é a lei desse cárcere? Não sairei dele; o executor não me deixará sair se eu não tiver pago toda a minha dívida.
O executor nãotem o poder de me conceder o perdão de nem mesmo um “quarto de asse”, nem mesmo “a menor” quantia.
Há apenas um que pode perdoar aos devedores que não tenham com que saldar suas dívidas.
“Um”, diz a Escritura, “que devia quinhentos denários aproximou-se dele, e um que devia cinquenta; e como não tivessem com que quitar suas dívidas, a ambos perdoou”.
Quem perdoou era o Senhor; mas o Senhor não é o executor; o executor é o preposto pelo Senhor para exigir as dívidas.
Não foste digno que te perdoassem quinhentos ou cinquenta denários, nem mereceste ouvir: “Teus pecados te foram remidos”; serás mandado para o cárcere e lá serás obrigado a pagar pelo trabalho e pelas tarefas a cumprir; ou, então,penas e suplícios; e de lá não sairás, se não tiveres saldado o “quarto de asse” ou o “último lépton”, que em grego significa “leve”.
Entre nossos pecados, alguns são grossos, como está escrito: “O coração deste povo se tornou espesso”; outros, em comparação com os pecados mais graves, são leves e ínfimos.
Bem-aventurado primeiramente aquele que não peca e, em segundo lugar, se ele peca, quando se contará suas faltas, possa ele ter apenas um pecado leve.
Mas há igualmente diferenças entre as faltas leves e ínfimas, pois, se no domínio das faltas leves e ínfimas não houvesse mais e menos, nunca o Evangelho teria dito: “Tu não sairás de lá até que tenhas devolvido o último quarto de asse”.
Mas não posso dizer claramente isto: se fosse necessário entender a expressão “o último centavo” como referida a uma quantia de dinheiro – uma quantia bem pequena, quer dizer um denário, ou um escudo, ou um óbolo, ou um estáter –, qual a natureza do que pagaremos, se devemos uma grande quantia de dinheiro, como no caso daquele do qual está escrito que devia mil talentos; ou, enfim, a duração do tempo no qual ficaremos encerrados no cárcere, até que saldemos nossa dívida.
Com efeito, se aquele que deve pouco não sai do cárcere antes de ter pago “o mínimo quarto de asse”, o devedor responsável por uma grande quantia verá ser contado um número infinito de séculos para pagar sua dívida.
É por essa razão que devemos “nos esforçar, para que nos livremos de nosso adversário”, enquanto estamos no caminho, e unamo-nos ao Senhor Jesus: “a quem pertencem a glória e o poder nos séculos dos séculos. Amém”.

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